Dongsheng Explica N°3 | Maio 2023

O mercado imobiliário da China está encrencado?

Nos últimos anos, a questão habitacional na China tem tido destaque na mídia ocidental. O rápido desenvolvimento urbano, os preços exorbitantes, a dependência dos governos locais da renda da terra e, o mais “preocupante”, a suposta falência da gigante imobiliária Evergrande — 13 anos anos depois que a crise das hipotecas subprime de 2007-2008 abalou a economia mundial —, despertaram a atenção de analistas financeiros de todo o mundo. Mas qual é a situação real do mercado imobiliário na China e o que o governo está fazendo?


Como foi tratada historicamente a questão habitacional?

Quando o povo chinês, liderado por Mao Zedong e pelo Partido Comunista da China (PCCh), fundou a República Popular da China (RPC) em 1949, o país era um dos mais pobres do mundo. Em 1950, apenas 10 países tinham PIB per capita menor que a China, e apenas 11% de seus 552 milhões de habitantes viviam em áreas urbanas. Com a aceleração do desenvolvimento industrial, as cidades também cresceram rapidamente. Após a reforma e abertura, a migração do campo para as cidades tornou-se um fenômeno constante. Em 2022, a população urbana da China alcançou 921 milhões, representando 65% da população total.1

Além disso, o número de cidades com mais de 1 milhão de habitantes cresceu de 90, em 2000, para 167 em 2020. Já as áreas urbanas com menos de 1 milhão de habitantes caíram de 172 para 130, sugerindo que a população urbana passou a se concentrar em centros maiores.2

A combinação entre uma população massiva com uma renda crescente e o boom das áreas urbanas impulsionou significativamente o desenvolvimento habitacional, que passou por grandes mudanças desde 1949.

Logo após a fundação da República Popular da China, a terra urbana foi nacionalizada e as moradias foram retiradas de circulação do mercado. Durante mais de 30 anos, a China teve um sistema socialista de bem-estar da moradia, no qual as unidades residenciais eram construídas por agências governamentais, instituições públicas ou empresas estatais, entre outros. No início dos anos 1980, 75% das famílias urbanas na China viviam em habitações públicas alugadas.

Com a reforma e abertura, o governo chinês decidiu desenvolver o setor imobiliário. A partir de 1978, a política de investimentos do Estado passou de um orçamento único do Estado para o investimento conjunto do Estado, empresas e indivíduos. Esta nova política estimulou o desenvolvimento do mercado imobiliário, principalmente após 1992, quando foi estabelecida a economia socialista de mercado. Em 1997, 9,64% do total do investimento em ativos sociais fixos foi em desenvolvimento imobiliário. O mercado imobiliário urbano foi formando-se de forma gradual e as condições de vida melhoraram significativamente, com a área de construção de moradias per capita aumentando de 6,7 metros quadrados, em 1978, para 17,8 metros quadrados em 1997.

Desde 2008, o crescimento econômico desacelerou e o setor imobiliário passou por ajustes. Nesse período, o governo prestou mais atenção ao papel das políticas de macrocontrole, como a tributação, e deu grande importância à construção de moradias subsidiadas para atender as necessidades de pessoas de renda média e baixa. A escala do mercado imobiliário da China ainda é enorme, mas seu crescimento desacelerou.

Quem conduz o desenvolvimento do mercado imobiliário na China?

Com a formação do mercado socialista, o capital privado no setor imobiliário aumentou rapidamente. Em 1993, havia apenas 505 construtoras privadas na China. Esse número cresceu para 18.259 em 2001, chegando a mais de 122 mil empresas até 2021. Pouco a pouco, a propriedade pública e coletiva de empresas de construção foi substituída por capital privado. Em 2021, o capital privado, tanto estrangeiro quanto nacional, representava 86% do valor agregado bruto na construção, totalizando 25,2 trilhões de yuans (R$ 17,8 trilhões), e empregava 89,6% das 52,8 milhões de pessoas que trabalhavam na construção.

As empresas de propriedade coletiva, que são unidades de nível municipal, de propriedade dos munícipes e administradas por comitês de vilarejos, atingiram um pico de 29.872 unidades em 1997, e têm decrescido desde então.

Fonte: Escritório Nacional de Estatísticas da China

Qual é a relação entre o setor imobiliário e os governos locais?

Desde 1953, a propriedade da terra rural permaneceu coletiva, enquanto a propriedade da terra urbana se manteve pública. A partir da década de 1990, os governos locais começam a poder “vender” (transferir) o direito de uso da terra para entidades qualificadas. As receitas geradas a partir dessa prática, como impostos fundiários e renda de transferências de terras estatais, são agora comumente conhecidas como “financiamento fundiário”, e representaram 89% das receitas dos orçamentos públicos locais em 2018.

O professor Zhao Yanjing aponta que os governos locais usam o financiamento da terra para investir em infraestrutura e aperfeiçoar os serviços públicos, o que, por sua vez, aumenta o valor da terra. O governo investe a receita do financiamento da terra em construções urbanas como o desenvolvimento de serviços públicos, estradas, hospitais e escolas. Transforma, assim, a terra suburbana em novas áreas urbanas. À medida que a construção urbana se expande, os preços das moradias sobem, elevando também os preços dos terrenos.

Em 2019, a taxa de propriedade de residência urbana atingiu 96% na China, uma das mais altas do mundo. Em 2017, nos EUA era de 64,2%, e no Japão, de 61,9%. No Brasil e na África do Sul, essa taxa era de 72,5% e 69%, respectivamente. Entre as famílias com casa própria na China, 58,4% possuíam um imóvel, 31% possuíam dois imóveis e 10,5% possuíam três ou mais imóveis.

A grande demanda por moradia, que tem provocado um déficit habitacional principalmente nas grandes metrópoles, serviu para aumentar ainda mais os preços das casas. Ao mesmo tempo, como resultado da migração para as grandes cidades, muitos municípios menores e áreas rurais têm superávits habitacionais e deixam novos empreendimentos vazios. Estima-se que 50 milhões de unidades habitacionais estão disponíveis nestas cidades. Uma pesquisa do Instituto Beike revelou que a taxa média de desocupação da habitação ficou em torno de 12% em 2022.

Como o governo está lidando com os problemas desse setor?

Como essas hipotecas foram empacotadas em produtos derivativos nos mercados financeiros em formas como dívidas garantidas e obrigações de empréstimos, esse colapso trouxe, em seu rastro, a queda de outros mercados financeiros e deixou muitos bancos e outros tipos de instituições financeiras enfrentando um desastre.

A bolha do mercado imobiliário foi o gatilho da crise financeira de 2007-2008, especialmente no Norte Global (não apenas nos EUA, mas também na Grã-Bretanha, Espanha, Irlanda e outros países), resultado de empurrar hipotecas para pessoas que não teriam capacidade de pagá-las. Não foi apenas o chamado mercado de hipotecas subprime que, atingindo valores totalmente fictícios, colapsou. Mas no caso chinês, o Estado não permite esse tipo de especulação financeira e já está tentando evitar uma bolha para reduzir as chances de um colapso, ao invés de esperar a eclosão de uma crise para resgatar os bancos.

Em agosto de 2020, com um mercado imobiliário maduro, o governo chinês editou a regulamentação conhecida como “três linhas vermelhas“, fornecendo três indicadores fundamentais da saúde financeira das incorporadoras imobiliárias. A regulamentação limita a proporção da dívida em relação ao caixa, patrimônio e ativos dessas empresas, e promove o crescimento sustentável do setor. O governo convocou as empresas a reorganizar suas finanças até 2023, classificando-as como “verdes” caso atendam a esses critérios de finanças saudáveis e, assim, permitindo-lhes acesso a novos créditos.

A Evergrande, segunda maior incorporadora imobiliária da China, foi a que atraiu mais atenção. Até dezembro de 2020, a dívida do Grupo Evergrande era de US$ 300 bilhões, e sua relação passivo/ativo era de 84,7%, acima dos 70% estabelecidos nas três linhas vermelhas.3

Como a empresa lutava para pagar sua dívida e para evitar o uso indevido dos fundos, dois governos locais assumiram o controle da receita da Evergrande. Desde agosto de 2021, outras oito províncias solicitaram que a Evergrande colocasse a receita das pré-vendas em contas de custódia, enquanto a incorporadora, sem caixa, colocava em espera centenas de projetos inacabados. O governo chinês está assumindo o controle da receita da empresa e resolvendo os problemas antes que possa eclodir uma crise de dívida.

O limite de 5% na taxa de aumento anual dos aluguéis favoreceu as condições de vida de todas as famílias chinesas e desacelerou os aumentos explosivos de preços. O ponto principal da regulamentação é que “as casas são para morar, não para especular”, como disse o presidente Xi Jinping no 19º Congresso Nacional do PCCh.

Além de controlar a especulação de preços, o governo chinês tem promovido uma série de políticas para o desenvolvimento da habitação social, visando facilitar e garantir o acesso das novas gerações e dos grupos com menor poder aquisitivo à moradia. O governo de Xiamen, na província de Fujian, reduziu o preço de mercado de 4.000 apartamentos em 45%. O governo de Henan comprou 1.050 apartamentos da Evergrande, cuja construção havia sido interrompida devido aos problemas de liquidez.

Em termos gerais, entre 2021 e 2025, o governo chinês deve fornecer 6,5 milhões de novas moradias de aluguel de baixo custo em 40 grandes cidades, para facilitar o acesso à moradia a 13 milhões de jovens. As cidades do nível 1, como Pequim e Xangai, irão fornecer um total de 1,87 milhão de moradias de aluguel de baixo custo. Só em 2021, 936 mil unidades abrigaram 2 milhões de jovens em 40 cidades.

A desaceleração da demanda habitacional — resultado das incertezas durante a pandemia e do aumento das tensões geopolíticas — somada às novas regulamentações, restringiram alguns comportamentos especulativos no mercado. A rentabilidade das incorporadoras imobiliárias foi impactada. Como seu modelo de negócios é baseado no endividamento, ainda que seja frutífero durante o rápido crescimento do mercado, à medida que o setor amadurece, pode representar um sério risco para o sistema.

Diante da desaceleração da economia chinesa em 2022, o governo flexibilizou uma série de medidas e estimulou a economia do setor imobiliário: adiou o prazo para avaliação das três linhas vermelhas, estendeu o prazo para que os bancos reduzam a proporção de empréstimos hipotecários e créditos imobiliários pendentes em relação ao total de empréstimos, e cortando taxas de juros hipotecários da China.

Após 18 meses, na esteira deste estímulo, os preços das casas estão aumentando. Isso pode ser visto como um sinal de recuperação da demanda no mercado. Entretanto, o investimento imobiliário caiu 10% em 2022, e 5,7% nos dois primeiros meses de 2023. As “vendas” de terrenos caíram 29% nos dois primeiros meses deste ano, seguindo uma queda de 53% em 2022. Tais indicadores sugerem que o setor imobiliário precisará de mais tempo para voltar ao crescimento constante.

Conclusão

O mercado imobiliário da China seguiu um caminho paralelo ao da economia em geral: a uma velocidade e escala sem precedentes. Seu desenvolvimento, entretanto, atingiu uma fase mais madura nos últimos anos e o setor batalha para manter as taxas de crescimento anteriores. Os controles estabelecidos pelo governo para estabilizar a segurança financeira das incorporadoras imobiliárias, o freio à especulação e o desenvolvimento de projetos de habitação social para grupos de baixa renda e jovens que compram casas pela primeira vez, têm como objetivo tratar os imóveis como direito do povo, tanto para a moradia quanto para compartilhar os frutos do desenvolvimento, e chegaram a um ponto crucial.

O governo chinês demonstrou flexibilidade ao permitir que as empresas “respirem” em meio a um mercado difícil. Entretanto, eles não estão dispostos a permitir especulações a longo prazo, especialmente quando, devido ao seu tamanho, isso poderia levar a choques devastadores na economia em geral. Este processo deve levar a um modelo de negócios mais sustentável, a menos especulação com as moradias e à eliminação das “frutas podres” no imenso setor imobiliário da China.


  1. Esse percentual é inferior ao de países desenvolvidos, como a Coreia do Sul (81%), Estados Unidos (83%) ou Japão (92%), e também ao de países em desenvolvimento, como África do Sul (68%), México (81%), Brasil (87%) e Argentina (92%).
  2. Na China, as definições de “áreas urbanas” incluem cidades e municípios cujas autoridades básicas são os comitês residenciais; enquanto as “áreas rurais” são definidas como os distritos e vilas que têm como base os comitês de vilarejos.
  3.  Valores muito baixos dessa relação indicam que há capital ocioso e valores muito altos indicam endividamento excessivo.

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