Dongsheng Explica N°4

Por que não há favelas na China?

Xangai e Pequim, com mais de 20 milhões de habitantes cada, estão entre as “hipercidades” do Sul Global, junto a Delhi, São Paulo, Daca, Cairo e Cidade do México, bem maiores que as “megacidades” do Norte Global, como Londres, Paris ou Nova York1. Ao caminhar pelas ruas das cidades da China, nota-se rapidamente uma diferença marcante — a ausência de grandes favelas e de pessoas sem-teto, fenômenos tão comuns na maior parte do mundo.

Até algumas décadas atrás, as favelas não eram raras nas cidades chinesas. Existiam desde bairros precários da classe trabalhadora em Xangai, na década de 1930, até favelas na Hong Kong ocupada pelos britânicos, a partir da década de 1950. Como a China conseguiu se desenvolver reduzindo a precariedade habitacional massiva? Quais são as razões estruturais por trás disso?

Esta edição de Dongsheng Explica analisa como o governo chinês lida com a falta de moradia, como isso se relaciona com a construção socialista e como a China enfrenta os desafios impostos pelo rápido desenvolvimento econômico, a urbanização e a migração das últimas décadas.


Por que a urbanização em massa não produziu grandes favelas na China?

No final dos anos 1970, quando o processo de reforma e a abertura começou, 83% da população da China vivia no campo. Até 2021, a proporção da população rural diminuiu para 36%. Durante esse período de urbanização em massa, mais de 600 milhões de pessoas migraram das áreas rurais para as cidades.

Hoje existem 296 milhões de “trabalhadores migrantes” internos (农民工, nóngmín gōng), que representam mais de 70% da força de trabalho total do país2. Os trabalhadores migrantes se tornaram o motor econômico do rápido crescimento da China, que criou a maior classe média do mundo, com 400 milhões de pessoas.

Essa migração histórica trouxe muitos desafios, como o surgimento de “vilas urbanas” que tinham infraestrutura inadequada e condições de vida precárias. Embora algumas instalações básicas fossem fornecidas — como água corrente, eletricidade, gás e comunicações —, as condições de saneamento e segurança contra incêndios, entre outros serviços públicos, se assemelhavam às das aldeias rurais. Em razão dos aluguéis mais baixos e da pouca oferta de moradias acessíveis, as vilas urbanas foram majoritariamente habitadas por trabalhadores migrantes.

Com a aceleração da urbanização nos anos 2000, o governo chinês passou a promover a transformação em grande escala das áreas antigas das cidades, com foco na reforma de bairros historicamente deteriorados e na remoção de habitações sob risco. De 2008 a 2012, 12,6 milhões de moradias em vilas urbanas foram reconstruídas em todo o país3. Ao mesmo tempo, foram feitos esforços para construir moradias públicas ou de aluguel de baixo custo. Por exemplo, hoje em Xangai, famílias compostas por três ou mais pessoas, com renda mensal per capita inferior a 4.200 yuans (pouco menos de R$ 2.800), podem se candidatar para ter acesso a moradias de baixo custo, com um aluguel mensal de algumas centenas de yuans (ou 5% da renda familiar mensal). Em 2022, o governo central anunciou a construção de 6,5 milhões de unidades habitacionais de aluguel de baixo custo em 40 cidades, o que representa 26% da oferta total de novas moradias previstas no 14º Plano Quinquenal (2021-2025)4.

De fato, a explosão da migração rural-urbana nas últimas décadas não é um fenômeno exclusivo da China. Embora países e organizações internacionais utilizem diferentes definições de “favelas”, todas apontam para a mesma tendência: o crescimento das favelas ultrapassou as taxas de urbanização em todo o Sul Global, desde a década de 1970. No entanto, os esforços da China para melhorar a qualidade das moradias precárias ou construir novas moradias acessíveis não explicam, por si só, as razões pelas quais não houve a proliferação de favelas na China, como ocorreu em tantos outros países. A urbanização na China, portanto, deve ser entendida no contexto da construção socialista.

O que é o sistema “hukou” e o que ele tem a ver com o socialismo?

Uma característica única do processo de urbanização da China é que, embora as políticas tenham incentivado a migração de trabalhadores para os empregos industriais e de serviços nas cidades, os residentes rurais nunca perderam o acesso à terra no campo. Na década de 1950, o Partido Comunista da China (PCCh) liderou um processo nacional de reforma agrária, abolindo a propriedade privada da terra e transformando-a em propriedade coletiva. Durante o período de reforma econômica, a partir de 1978, foi criado um “Sistema de Responsabilidade Domiciliar” (家庭联产承包责任制 jiātíng lián chǎn chéngbāo zérèn zhì), que realocou as terras agrícolas rurais para as unidades domiciliares. Embora isso tenha impactado profundamente a produção agrícola, a propriedade coletiva da terra se manteve e a terra nunca foi privatizada.

Até hoje, a China tem uma das maiores taxas de famílias com casa própria do mundo, ultrapassando os 90%, e isso inclui os milhões de trabalhadores migrantes que alugam casas em outras cidades. Isso significa que, diante de problemas econômicos, como o desemprego, os trabalhadores migrantes podem retornar às suas cidades de origem, onde possuem uma casa, e se dedicar à produção agrícola ou procurar emprego. Esse amortecedor estrutural desempenha um papel fundamental na absorção dos impactos das crises econômicas e sociais. Por exemplo, durante a crise financeira global de 2008, a economia chinesa, voltada para a exportação especialmente de bens manufaturados, foi severamente atingida. Com isso, cerca de 30 milhões de trabalhadores migrantes perderam seus empregos. Da mesma forma, durante a pandemia de Covid-19, quando os empregos no setor de serviços e na indústria foram severamente afetados, muitos trabalhadores migrantes voltaram para suas casas nas áreas rurais.

Além da reforma agrária, foi criado um sistema para administrar a migração em massa do campo para as cidades, buscando garantir que o movimento de pessoas estivesse alinhado às necessidades de planejamento de um país tão populoso. Embora a China tenha tido algum tipo de restrição à migração por mais de 2 mil anos, no final da década de 1950, o país estabeleceu um novo “sistema de registro domiciliar” (户口 ou hùkǒu) para regular a migração rural-urbana. Cada pessoa chinesa tem um hukou urbano ou rural que lhes concede acesso, em sua cidade de registro, a benefícios sociais (como subsídios para moradia, educação, saúde, aposentadoria, seguro-desemprego, entre outros), mas estes são limitados nas cidades para onde se deslocam a trabalho.
Embora a reforma do sistema hukou esteja em curso, a ausência de hukou urbano faz com que muitos pais e mães migrantes passem longos períodos longe de suas famílias, deixando seus filhos sob os cuidados dos avós em suas cidades natais — o que é conhecido como “filhos deixados para trás” (留守儿童 liúshǒu értóng). Mesmo com a diminuição desse fenômeno ao longo dos anos, estima-se que ainda existam sete milhões de crianças nessa situação. Hoje, 65,22% da população da China mora nas cidades, mas apenas 45,4% possui hukou urbano. Embora esse sistema tenha impedido o surgimento de grandes favelas urbanas, ele também reforçou graves desigualdades de bem-estar social entre áreas urbanas e rurais, assim como entre pessoas que vivem em uma mesma cidade, com base em seu tipo de hukou.

Como o governo chinês lida com as pessoas sem-teto?

No início dos anos 2000, os assuntos referentes ao status residencial, aos direitos dos trabalhadores migrantes e ao tratamento concedido às pessoas sem-teto nas cidades tornaram-se uma questão nacional. No final de 2003, o Conselho de Estado — órgão executivo máximo do poder estatal — editou as “Medidas de Resgate e Gestão de Itinerantes e Sem-teto em Áreas Urbanas”5. A nova regulamentação criou postos de assistência que fornecem alimentação e abrigos temporários, aboliu o sistema de detenção obrigatória de pessoas sem o hukou correspondente, ou sem moradia, e responsabilizou as autoridades locais por encontrar moradia para as pessoas sem-teto em suas cidades natais. 

Sob essas diretrizes, cidades como Xangai criaram postos de assistência para as pessoas sem-teto. Quando a segurança pública – a polícia local – e os servidores da gestão urbana encontram pessoas sem-teto, devem ajudá-las a acessar os postos mais próximos. Todos os custos são cobertos pelo orçamento da cidade. De junho de 2022 a abril de 2023, o posto de gestão da assistência do distrito de Putuo, que possui uma população de 1,24 milhão e o quarto menor PIB per capita dos 16 distritos de Xangai, forneceu abrigo e assistência a uma média de 24,3 pessoas sem-teto por mês, o que pode incluir casos repetidos6

Os postos de assistência fornecem alimentos e acomodações básicas aos sem-teto e ajudam as pessoas com doenças graves a acessar cuidados de saúde e a retornar aos locais onde suas residências estão registradas, entrando em contato com seus parentes ou com o governo local, e providenciando transporte gratuito para este retorno, quando necessário.

Ao retornarem para casa, a responsabilidade de auxiliar as pessoas sem-teto é do governo do condado, que procura emprego e entra em contato com os parentes para prover cuidados. Para um número muito pequeno de pessoas idosas, com deficiência ou sem parentes nem capacidade para trabalhar, o governo local, ou o escritório de rua dirigido pelo Partido, deve fornecer apoio nacional, de acordo com o “método de atendimento a pessoas extremamente empobrecidas”, previsto nas “Medidas Provisórias de Assistência Social” de 2014. O apoio se refere ao provimento das condições básicas de vida, ao cuidado de pessoas empobrecidas que não podem cuidar de si mesmas, ao tratamento de doenças, à gestão de assuntos funerários, entre outros.

Essa série de medidas de assistência garante que os servidores responsáveis pela aplicação da lei nas cidades não expulsem, simplesmente, as pessoas sem-teto, mas também assegurem que irão receber assistência adequada, em termos de moradia, trabalho e sistemas de apoio em seus locais de origem.

Quais são os desafios atuais da urbanização, migração e desigualdade?

A criação de postos de assistência é um avanço importante, mas é evidente que os abrigos não são uma solução estrutural e que, sozinhos, não são capazes de atender às necessidades de uma metrópole como Xangai, com 25 milhões de pessoas, muito menos dos 921 milhões de habitantes urbanos do país. Para enfrentar a desigualdade e tornar as cidades e o campo mais habitáveis, o governo tem implementado diversas reformas estruturais.

Em seu relatório ao 20º Congresso Nacional do PCCh, o presidente Xi Jinping disse: “Identificamos que a principal contradição enfrentada pela sociedade chinesa é entre o desenvolvimento desequilibrado e inadequado e as necessidades cada vez maiores das pessoas por uma vida melhor, e  fechar essa lacuna deve ser o foco de todas as nossas iniciativas”7. O desenvolvimento desequilibrado e inadequado se refere à grande distância entre o campo e as cidades, entre as regiões subdesenvolvidas e as industrializadas, e entre ricos e pobres.

Em uma escala mais ampla, as campanhas de combate à pobreza — destacadas pela erradicação da extrema pobreza em 2020 — e a estratégia de revitalização rural ajudaram a aliviar a pressão do deslocamento dos trabalhadores migrantes para as cidades. O governo investiu fundos e recursos substanciais, usando medidas diversificadas para reduzir a pobreza, incluindo o desenvolvimento da indústria rural, educação, assistência médica e infraestrutura8, além dos esquemas de transferência de renda. Essas medidas melhoraram fundamentalmente as condições de vida e emprego nas áreas rurais e criaram mais oportunidades para que as pessoas tenham a opção de permanecer e trabalhar no campo. Por exemplo, a cada ano, mais migrantes retornam das cidades para seus locais de origem. Em 2015, esse foi o caso de 2,4 milhões de pessoas e, em 2019, de 8,5 milhões.

Na última década, a China implementou reformas para compensar a flexibilização dos requisitos do hukou e melhorar o bem-estar social dos trabalhadores migrantes, garantindo que a urbanização e a distribuição da população respondam às necessidades do país. Desde 2010, grandes cidades têm flexibilizado gradualmente as restrições de registro domiciliar para admissão escolar, permitindo que os filhos de trabalhadores migrantes frequentem escolas públicas da mesma forma que as crianças com hukou local. 

Além disso, de acordo com o Plano de Urbanização de 2019, cidades com população abaixo de 3 milhões de pessoas são obrigadas a remover todas as restrições de hukou, enquanto cidades maiores (com menos de 5 milhões) podem começar a flexibilizar as restrições. O 14º Plano Quinquenal (2021-2025) e a estratégia econômica do país até 2035 colocam o foco na redistribuição de renda por meio da reforma tributária, reduzindo a distância entre ricos e pobres e removendo as barreiras que impedem que milhões de trabalhadores migrantes desfrutem de todos os benefícios da vida urbana. Em 2021, o governo investiu o equivalente a 25,7 bilhões de reais para flexibilizar os requisitos de residência do hukou e, também, para aumentar o poder de compra dos migrantes urbanos, como parte da política de “dupla circulação” do país9.

Esses esforços para enfrentar os desafios das “três montanhas”, referentes ao alto custo da moradia, da educação e da saúde, enfrentados pelos trabalhadores migrantes e por toda a população chinesa, estão no centro da visão do governo, das reformas políticas em direção à “prosperidade comum” para todos os seus cidadãos e da construção de uma sociedade socialista moderna.


  1. Uma área metropolitana com uma população entre 20 e 40 milhões é chamada de “hipercidade” e entre 10 e 20 milhões, de “megacidade”.
  2. Trabalhadores migrantes são aqueles cujo registro domiciliar permanece em uma área rural e que se dedicam a indústrias não agrícolas ou que saem de suas cidades de origem para trabalhar em outra parte do país, por pelo menos seis meses do ano.
  3. “Opiniões do Conselho de Estado sobre Aceleração da Reconstrução de Assentamentos Precários”, Escritório Geral do Conselho de Estado, 12 de julho de 2013
  4.  “40 cidades para adicionar 6,5 milhões de unidades de moradias subsidiadas pelo governo”, Escritório de Informações do Conselho Estadual da China, 11 de janeiro de 2022
  5. “Medidas para o resgate e gestão de itinerantes e pessoas sem-teto em áreas urbanas”, reunião executiva do Conselho de Estado da China, 18 de junho de 2003
  6. “Resgate de Itinerantes e pessoas sem-teto”, Governo do Distrito de Putuo, Shanghai, Junho de 2022 a abril de 2023
  7. Leia o relatório completo
  8. Acesse o estudo “Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China”
  9. “14º Plano Quinquenal da China prioriza dupla circulação e inovação”, Andrew Korybko, 30 de outubro de 2020

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