Como a China garante a segurança alimentar de 1,4 bilhão de pessoas? | 24.11.2023

Dongsheng Explica N°6

Como a China garante a segurança alimentar de 1,4 bilhão de pessoas?

Embora a pandemia, os eventos climáticos extremos e os conflitos geopolíticos tenham causado interrupções nas cadeias de abastecimento de alimentos e aumento nos preços internacionais, não há escassez de alimentos para a população mundial. No entanto, a fome continua sendo uma crise global. Segundo o último relatório sobre o Estado da Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo, entre 691 e 783 milhões de pessoas passaram fome em 2022. Isso representa 9,2% da população mundial e 122 milhões a mais do que em 2019.

Os 1,4 bilhão de habitantes do continente africano enfrentam uma crescente insegurança alimentar e um estado de fome grave, apesar de possuírem 60% das terras cultiváveis do mundo. Usando menos de 9% das terras cultiváveis e 6% da água doce do mundo, a China consegue produzir cerca de 25% dos alimentos do mundo e contribuir significativamente para alimentar uma população equivalente à africana.

Nesta edição de Dongsheng Explica, exploramos algumas das políticas e realidades sociais, históricas e econômicas que garantem a capacidade da China de alimentar seu povo, fornecer certa estabilização ao mercado mundial de alimentos e continuar contribuindo para erradicar a insegurança alimentar no mundo, ao alimentar um quinto da população mundial.


Como o movimento comunista abordou a questão agrária?

A China é uma nação com uma cultura agrícola milenar, onde o campesinato sempre teve um papel protagonista. Por seu tamanho, as tensões na relação terra/população determinaram a estabilidade, a queda e o surgimento de várias dinastias. Inclusive, em geral, a primeira política nacional de uma nova dinastia era a redistribuição de terras e a redução de impostos.

No final do século XIX, a dinastia Qing não conseguiu deter os abusos das potências estrangeiras. Desde 1840, as guerras do ópio, as guerras sino-japonesas e os tratados desiguais delinearam o cenário do “Século da Humilhação”. O território chinês ficou dividido em grupos militares controlados por caudilhos, o que aprofundou a dependência estrutural dos camponeses em relação à classe proprietária de terras. Agravada pelas catástrofes naturais, essa crise provocou uma diminuição drástica dos recursos, com a consequente polarização de classes, a fome e as rebeliões camponesas.

Mao Zedong, em sua Análise das classes na sociedade chinesa (1926), descreveu a imensa maioria da população chinesa como o campesinato pobre e semi-proprietário que compensava o déficit “arrendando terras, vendendo parte de sua força de trabalho ou se dedicando ao pequeno comércio”. O Partido Comunista da China (PCCh) se consolidou em torno dessas contradições e começou a organizar os camponeses, conquistando um enorme apoio nas zonas rurais do país. Enfrentar a questão agrária tornou-se um dos principais objetivos da Revolução Chinesa e o processo de Reforma Agrária (土地改革 pinyin: tǔdì gǎigé tǔgǎi), com o confisco de terras dos proprietários para devolvê-las ao campesinato, começou mesmo antes de o PCCh chegar ao poder. 

Em 1949, finalmente no poder, o PCCh estabeleceu entre seus principais desafios acabar com a fome e desenvolver as forças produtivas. Em 1950, a Lei de Reforma Agrária (土地改革法 tǔdì gǎigéfǎ) foi promulgada para acabar com a propriedade privada das terras, abolir o sistema de produção feudal, garantir o direito à propriedade camponesa e unificar os critérios para sua distribuição. Assim, 47 milhões de hectares foram destinados a mais de 300 milhões de camponeses em todo o país. Entretanto, como a terra disponível por família era muito pequena (cerca de 0,5 hectares), o governo promoveu inicialmente os Grupos de Ajuda Mútua e, depois, as Cooperativas Agrícolas para cultivar em maior escala e coletivizar algumas tarefas da produção.

Durante os primeiros nove anos da República Popular, a produção agrícola cresceu, em média, 7% ao ano, passando de 113,2 para 200 milhões de toneladas, o que permitiu um aumento do consumo per capita de grãos, de 209 para 303 quilos. Ainda assim, persistiam os problemas de baixa produtividade, falta de tecnologia e escassez de financiamento. A indústria nacional havia sido devastada por décadas de guerra e a capacidade de produção de ferramentas se reduzia a pequenas oficinas que produziam foices, enxadas e pás. Praticamente todo o trabalho agrícola era manual.

No Primeiro Plano Quinquenal (1953-1957), o PCCh incluiu o projeto de fabricação do primeiro trator nacional entre os 156 principais projetos de construção do país. Adotando tecnologia soviética, a construção do trator começou em 1955 e foi concluída em 1959. A Academia Chinesa para as Ciências da Mecanização Agrícola e o grupo YTO  – hoje renomados – foram fundados no mesmo período.

A China continuava sendo um país pobre e economicamente atrasado, com enormes desequilíbrios regionais, uma gigantesca população em vertiginoso crescimento e uma produção agrícola que ainda não conseguia satisfazer as demandas da população e da indústria. Em 1958, o governo promoveu a criação das Comunas Populares Rurais (人民公社 rénmín gōngshè), que coletivizaram completamente a produção agrícola e substituíram as Cooperativas Agrícolas na tarefa de planejar e manter a unidade de trabalho.

Entre 1959 e 1966, a produção agrícola caiu drasticamente, atingindo 143 milhões de toneladas em 1960. Foram necessários seis anos de recuperação para alcançar o nível de 1958. O governo promoveu o desenvolvimento tecnológico visando superar essa difícil situação. Em 1963, na Conferência de Trabalho Científico e Tecnológico, realizada em Xangai, Zhou Enlai estabeleceu os objetivos das “Quatro Modernizações” (四个现代化, sì gè xiàndàihuà), que incluíam o setor agrícola, e pediu aos profissionais das ciências que contribuíssem para sua realização.

Respondendo a esse chamado e sensibilizado pelo contexto alimentar hostil de seu país, o cientista Yuan Longping começou a trabalhar no aumento da produtividade do arroz. Em 1973, ele conseguiu cultivar o primeiro arroz híbrido do mundo, uma variedade que produzia entre 20% e 30% a mais do que o arroz convencional. Em 1976, o cultivo desse arroz já era massivo. Esse acontecimento foi transcendental para a agricultura não apenas na China, mas no mundo todo.

Quais são as bases da recente modernização da agricultura para alcançar a segurança alimentar?

Até o final da década de 1970, as políticas públicas relacionadas com a segurança alimentar se limitaram a modificações no âmbito organizacional, no sistema de preços relativos e na liberalização parcial do mercado de produtos.

Após o início do período de Reforma e Abertura, foram adotadas medidas mais significativas em torno da modernização. No setor agrícola, a gestão por meio de Comunas Populares foi substituída pelo Sistema de Responsabilidade Familiar (家庭联产承包责任制 jiātíng liánchǎn chéngbāo zérènzhì). As terras coletivas foram realocadas a domicílios rurais individuais e a eles foi concedida certa autonomia sobre as decisões de uso e seleção dos cultivos. Em um primeiro período (1982-1984), as famílias foram habilitadas a possuir, utilizar, beneficiar e dispor (exceto para venda) das terras por períodos de até 15 anos. A partir de 1994, esse prazo foi estendido para até 30 anos. O objetivo era garantir o retorno dos investimentos a longo prazo feitos pelas famílias visando a melhoria da terra e da produção.

Durante este período, foram feitos grandes esforços para atrair tecnologia e investimentos estrangeiros, bem como foi implementado o programa de incentivos para aumentar a produção agrícola. Assim, durante a primeira metade dos anos 1980, as reformas no campo tiveram efeitos positivos na produção agrícola. Entretanto, logo surgiram problemas de funcionalidade, já que a política de preços elevados para os produtos agrícolas e as subvenções ao consumo geraram um déficit no orçamento governamental.

A abertura da China e sua integração aos mercados mundiais foi considerada uma tática necessária, mas também trouxe numerosos desafios e contradições. Desde sua adesão à Organização Mundial do Comércio, em 2001, a China gradualmente abriu seu setor agrícola. A comercialização e internacionalização da agricultura chinesa experimentaram um crescimento expressivo. Segundo a OMC, em 2004, a China se tornou um país importador líquido de produtos agrícolas. Isso teve sérias consequências para a produção doméstica, principalmente relacionadas à produção de soja, gerando uma altíssima dependência de poucos países.

Outro desafio desse período se refere às mudanças no uso do solo. A demanda por território para industrialização e urbanização do campo promoveu forte competição pela área cultivável. Dos 130 milhões de hectares computados no Censo Agrícola de 1996, esse número caiu para 121,6 milhões até o final de 2008.

Quais são os últimos avanços na agricultura chinesa?

As políticas agrícolas chinesas das últimas décadas evoluíram no sentido de priorizar objetivos que vão além da mera produção de alimentos, tais como aumentar a renda dos agricultores, garantir a segurança alimentar e melhorar o desempenho ambiental. A partir da aprovação do plano estratégico de “Revitalização Rural” (乡村振兴 Xiāngcūn zhènxīng), em 2018, a China intensificou a modernização do setor agrário e a industrialização das zonas rurais, visando criar oportunidades econômicas que contribuam para reduzir as distâncias entre a população do campo e das cidades. 

Mas os esforços nesse sentido começaram muito antes, em 2004, quando as políticas agrícolas destinadas a melhorar a segurança alimentar incluíram a eliminação de impostos para mais de 800 milhões de agricultores. Além disso, o governo aumentou em 10% os subsídios diretos, totalizando 11,6 bilhões de yuans (7,8 bilhões de reais), para apoiar a produção de grãos de 600 milhões de agricultores de 29 províncias.

Outro exemplo de ação para a melhoria da eficiência agrícola e a autossuficiência alimentar foi a aprovação de medidas para avançar na reforma e no desenvolvimento rural, em 2008. Tais medidas habilitaram 700 milhões de camponeses a vender, alugar ou hipotecar sua terra, sem alterar os direitos de propriedade, ou seja, a terra continua sendo de propriedade coletiva. Isso criou um livre mercado para as transações do direito de uso da terra agrícola, que permitiu aos camponeses obter uma renda para utilizá-la em outras atividades, e aos compradores aumentar a escala de produção. Para evitar a diminuição da área dedicada à produção, a regulamentação também definiu que a terra não poderá ser utilizada com propósito não agrícola, o que garante pelo menos 120 milhões de hectares dedicados à agricultura.

A proteção e expansão de terras cultiváveis é uma prioridade central do governo para a segurança alimentar. Por isso, além de manter a “linha vermelha de terras cultiváveis” de 120 milhões de hectares, o país investe na construção de terras agrícolas irrigadas de alto nível. Em junho deste ano, foram emitidos 19 bilhões de yuans (12,8 bilhões de reais) em títulos financeiros especiais para apoiar a construção desse tipo de terras. Desde 1949, a China quadruplicou a superfície irrigada, chegando, em 2022, a 68,6 milhões de hectares (mais da metade da superfície agrícola), sendo responsável por três quartos de sua produção de grãos e mais de 90% dos cultivos comerciais.

O plano estratégico de revitalização das indústrias de sementes é outra política agrícola central do país. A China é praticamente autossuficiente em sementes de trigo e arroz, mas não em soja e milho. Isso se deve, principalmente, ao fato de que o rendimento médio das variedades de soja e milho da China equivale apenas a 60% a 70% do rendimento dos campos estadunidenses. Especialistas indicam que a contribuição das sementes melhoradas ao aumento dos rendimentos na China é de apenas 45%, deixando muita margem para ampliação em relação ao nível de mais de 60% nos países desenvolvidos do Ocidente. Visando reduzir essas distâncias, em novembro de 2022 o governo propôs uma revisão das regulamentações que regem os cultivos transgênicos.

Os avanços na mecanização agrícola também são responsáveis pelo incremento da autossuficiência chinesa. Em 1955, o país construiu seu primeiro trator e, em 2022, contava com mais de 8 mil empresas produtoras de maquinário e equipamentos agrícolas. Destas, 2,2 mil superam os 311,6 bilhões de yuans (aproximadamente 210 bilhões de reais) em receitas comerciais. A fabricação nacional cobre basicamente todas as categorias e pode produzir mais de 4 mil tipos de máquinas agrícolas. Desde a fundação da República Popular da China, a taxa de mecanização da agricultura cresceu 70 vezes. Em 2022, a política de subsídios para a compra e o uso de maquinário agrícola apoiou os agricultores e as organizações de produção e gestão agrícola na compra de mais de 3,8 milhões de conjuntos de maquinário agrícola a mais de 4 mil empresas nacionais.

Os avanços científicos e tecnológicos desempenham um papel importante nesse sentido. A infraestrutura da informação na agricultura e nas zonas rurais foi gradual e significativamente modernizada. As tecnologias modernas da informação, como a internet das coisas, os sensores por satélite e os grandes volumes de dados (bigdata), têm sido popularizadas e aplicadas na semeadura e criação de animais. Foram alcançados resultados significativos, como por exemplo, na rotação de culturas e no monitoramento de pousio, no diagnóstico remoto de doenças de animais e plantas, no controle de drones e na operação precisa de máquinas agrícolas, entre outros.

Por último, a guerra na Ucrânia e a intensificação das tensões com os Estados Unidos reforçaram significativamente a prioridade do governo em garantir o auto-abastecimento de cereais. Embora seja completamente autossuficiente na soja para consumo humano, o país importa mais de 80% da soja que utiliza para rações animais e óleo. O Brasil é a maior fonte dessas importações, correspondendo a quase 60%, em 2022, enquanto os Estados Unidos ocupam o segundo lugar, com 32,4%. Com relação ao milho, a China importou 20,6 milhões de toneladas no ano passado, o que equivale a 7,4% da produção nacional, sendo 72% provenientes dos Estados Unidos. Em 2021, as importações de milho haviam atingido um recorde de 28,35 milhões de toneladas, sendo 70% provenientes dos Estados Unidos e 29% da Ucrânia.

São vários os esforços para reverter esta situação. Entre eles, aumentar a área destinada à soja e oleaginosas em 666 mil hectares este ano, reduzir de 14,5% para 13% a participação de farinha de soja nas rações animais até 2025, conceder subsídios para a produção desses grãos e diversificar os países fornecedores, priorizando os integrantes do BRICS. A médio prazo, segundo um relatório do Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais, o país planeja que, até 2032, a taxa de autossuficiência de milho alcance 96,6%, o que reduziria as importações anuais para 6,85 milhões de toneladas. Quanto à soja, segundo anúncios de abril, o país busca aumentar a produção nacional em 75 quilos por hectare, este ano, e utilizará a produtividade dessa oleaginosa como critério para avaliar o desempenho dos funcionários.

Como a China enfrentou o problema da fome e da nutrição?

Desde a fundação da República Popular da China, a produtividade integral dos alimentos experimentou um crescimento vertiginoso, dando o salto histórico da escassez crônica ao equilíbrio básico entre oferta e demanda. A produção nacional total de cereais cresceu seis vezes, de 113,2 milhões, em 1949, para o recorde de 686 milhões de toneladas, em 2022. O consumo anual de alimentos per capita é de 483 quilos, superior à linha de segurança alimentar reconhecida internacionalmente, de 400 quilos.

Entre 2000 e 2017, a China reduziu significativamente a subnutrição, com uma diminuição da população afetada de 16,2% para 8,6%. Esse progresso foi facilitado por um aumento substantivo da renda per capita anual, que passou de cerca de 1,6 mil reais para 46,7 mil reais, no mesmo período. Em particular, entre os anos de 2010 e 2017, a China foi responsável por dois terços da diminuição global de pessoas subnutridas entre as nações asiáticas.

Isso foi possível, em grande parte, graças à iniciativa chinesa de redução direcionada da pobreza, que, até 2020, conseguiu tirar quase 100 milhões de pessoas da extrema pobreza, adotando uma abordagem integrada e multidimensional da segurança alimentar. A atual estratégia de revitalização rural da China é uma continuação dos esforços para aprimorar as áreas rurais e a vida da população rural e garantir o fornecimento de produtos agrícolas, especialmente cereais.

O desenvolvimento econômico que a China experimentou nas últimas décadas provocou mudanças na dieta do povo, para o bem e para o mal. Estudos mostram que, nas áreas rurais, as crianças experimentaram um crescimento notável, graças ao acesso a alimentos mais nutritivos e saudáveis. Em particular, as crianças de 13 anos cresceram, em média, 7,5 centímetros e ganharam 6,6 quilos em relação à média da década passada. Além disso, entre os 200 países e territórios analisados, entre 1985 e 2019, a China registrou o maior aumento na estatura masculina em todo o mundo. Enquanto isso, em áreas mais desenvolvidas, a dieta média teve mudanças marcantes: o consumo de gordura aumentou, o consumo de carne triplicou, entre 1990 e 2021, e o consumo diário de 11 gramas de sal está entre os valores mais altos do mundo. Como resultado, entre 1990 e 2015, as doenças cardíacas quase dobraram e a obesidade infantil atingiu 8,3%, um dos valores mais altos do mundo.

Conclusão

O fato de ter que alimentar um quinto da população mundial confere à China uma posição muito importante no mercado mundial de alimentos. As mudanças abruptas que o país vive desde a sua fundação impactam a forma de produzir, distribuir e acessar alimentos. Embora a China seja o maior produtor de quase todos os alimentos frescos e grãos básicos do mundo, ainda existem desafios em torno da produção e do consumo.

Em relação à produção, o país busca aumentar principalmente a autossuficiência de soja e milho, grãos que são matérias-primas para rações e que sofreram um desequilíbrio estrutural na oferta e demanda nacional devido ao aumento rápido e contínuo da demanda por alimentos ricos em proteína. Devido ao panorama geopolítico atual, isso está entre as principais prioridades nacionais, como mencionado pelo presidente Xi Jinping: “O povo chinês deve segurar firmemente a tigela de arroz com suas próprias mãos”.

Em relação ao consumo, a China tem se concentrado na conscientização nacional sobre a conservação ambiental, a defesa de estilos de vida simples, moderados, ecológicos e com baixas emissões de carbono, opondo-se à extravagância, ao desperdício e ao consumo excessivo. Além disso, tem realizado ações de economia de alimentos, como a campanha “pratos Limpos” e a criação de organizações, famílias e comunidades mais ecológicas.

Outra contribuição importante para a população mundial é a definição de compartilhar seus conhecimentos e tecnologia agrícolas com o mundo, especialmente entre os países do Sul Global, desde a troca de variedades de trigo tolerantes ao calor, no Sudão, e o arroz híbrido de alto rendimento de Yuan, em Madagascar e na Libéria, até a criação de instituições conjuntas de pesquisa, no Quênia, e os recentes compromissos de cooperação para a industrialização agrícola, na XV Cúpula dos BRICS.

A definição política da China de se tornar autossuficiente em alimentos é um alívio para a população mundial. Isso porque, caso contrário, a pressão que provocaria nos preços internacionais dos alimentos poderia desequilibrar o mercado, deixando muitos países de menor renda em situações alimentares completamente frágeis. A promoção de uma civilização modesta e a tradição da maioria do povo chinês de consumir dietas com baixo teor de produtos animais também contribuem nesse sentido.

Com sua civilização agrícola milenar, seus episódios históricos de fome, a gestão de seus escassos recursos, a eliminação da extrema pobreza e suas inovações tecnológicas na agricultura, a China pode contribuir em grande medida para enfrentar o desafio da fome no mundo.


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Dez anos da Nova Rota da Seda: armadilha da dívida ou desenvolvimento? | 08.08.2023

Dongsheng Explica Nº5

Dez anos da Nova Rota da Seda: armadilha da dívida ou desenvolvimento?

Dez anos após ter sido lançada, em 2013, a Nova Rota da Seda (NRS) se consolida como “o maior projeto de infraestrutura e desenvolvimento da história da humanidade”. Uma extensa rede de acordos demonstra a aceitação e o alcance global da iniciativa. Em 2021, a China havia assinado Memorandos de Entendimento (MdEs) com 140 países e 32 organizações internacionais. É de se destacar que 46 desses MdEs foram com nações africanas, 37 na Ásia, 27 na Europa, 11 na América do Norte, 11 no Pacífico e 8 na América Latina. Atualmente, os 151 países participantes da NRS abrangem cerca de 60% da população global e suas economias, combinadas, representam cerca de metade do PIB mundial.

Porém, a mídia hegemônica ocidental tem promovido uma narrativa de que a NRS teria um impacto negativo ou insignificante no Sul Global, como parte de um esquema para prender essas nações à dívida. Recentemente, a Bolívia firmou um acordo com a empresa nuclear estatal russa Rosatom e o Citic Guoan Group, da China, para desenvolver seus recursos de lítio, amplamente inexplorados – o lítio é um recurso de importância crescente devido ao seu uso em baterias recarregáveis para telefones celulares, laptops, câmeras digitais e veículos elétricos. Em resposta a esse acordo, o senador dos EUA Marco Rubio tuitou: “Seja por meio da NRS, da política de armadilha da dívida ou de outras falsas promessas da China, as nações em nossa região devem permanecer vigilantes quanto à ameaça de fazer negócios com Pequim”.

Apesar de uma série de pesquisadores e formuladores de políticas contestarem a acusação de que as iniciativas da Nova Rota da Seda seriam “armadilhas de dívidas”  – incluindo integrantes do Banco Mundial que descreveram a NRS como “amplamente benéfica” –, grupos ocidentais e seus aliados continuam alimentando medos e equívocos sobre o que a NRS é, e o papel que está desempenhando no mundo.

Nesta edição de Dongsheng Explica, examinamos a NRS, seu desenvolvimento histórico, as implicações para os países envolvidos e a narrativa de armadilha da dívida.


O que é a NRS?

Durante mais de dois mil anos, a Eurásia e partes da África se conectaram com a China através da antiga Rota da Seda (丝绸之路 sīchóu zhī lù), uma rede de rotas comerciais que transportavam mercadorias como chá, seda, pólvora e papel por essas regiões.

Nos últimos anos, as aspirações históricas dos povos em relação às rotas revigoraram com a NRS, também conhecida como Iniciativa do Cinturão e Rota, um grande projeto de infraestrutura e desenvolvimento econômico proposto pelo governo chinês. Antes de seu lançamento oficial, dois projetos de conectividade e desenvolvimento de infraestrutura, lançados no início dos anos 2000, formaram a base do pensamento sobre a NRS: o Programa de Desenvolvimento Ocidental, para promover o crescimento econômico e combater a desigualdade no oeste da China, e a política “A China se torna global”, pela qual as empresas estatais procuraram obter financiamento estrangeiro e expandir seu comércio e atividades globais. Após décadas de desenvolvimento industrial e reforma econômica, a China não tinha um roteiro fixo para a próxima fase de desenvolvimento, mas adotou a abordagem de “cruzar o rio sentindo as pedras”.

Em 2013, o presidente chinês Xi Jinping lançou oficialmente a NRS, descrita como uma iniciativa com o objetivo de melhorar a conectividade e promover a cooperação econômica entre a China e países da Ásia, Europa, África, América Latina e Caribe. Em 2017, após o 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, que destacou a importância do investimento estrangeiro, inovação e cooperação, a NRS teve seu status elevado como projeto carro-chefe. Em 2017, a importância da NRS foi consolidada com sua inclusão na Constituição emendada do Partido Comunista da China, na seção sobre objetivos em torno do internacionalismo, visando construir uma comunidade de “interesse compartilhado” e alcançar um “crescimento compartilhado” por meio de “discussão e colaboração”. 

A iniciativa recebeu o nome de “Cinturão”, em referência ao Cinturão Econômico da Rota da Seda, e “Rota”, que se refere à Rota da Seda Marítima do Século XXI. Cada termo indica seus componentes terrestres e marítimos. Com o objetivo de superar os obstáculos ao desenvolvimento e aumentar a produtividade em várias regiões do mundo, a NRS busca revitalizar e expandir o conceito da Rota da Seda por meio da construção de infraestrutura e capacidade de produção industrial. Somente na África, entre 2000 e 2020, a China construiu mais de 100 mil quilômetros de estradas e ferrovias, cerca de mil pontes, quase 100 portos e mais de 80 instalações elétricas de grande escala, bem como 130 instalações médicas, 45 instalações esportivas e mais de 170 escolas.

Diferenciando-se da construção apenas de uniões e zonas econômicas convencionais, a NRS também inclui a promoção de comércio e investimento entre os países participantes e o desenvolvimento de corredores econômicos, como o Corredor Econômico China-Paquistão, que conecta o Porto de Gwadar, no Paquistão, à Xinjiang, na região noroeste da China, e é avaliado em quase R$ 305 bilhões. De acordo com o Banco Asiático de Desenvolvimento, a importância dos corredores econômicos reside em que eles “fornecem conexões importantes entre pólos econômicos que geralmente são centrados em paisagens urbanas” e nos “efeitos de rede que induzem”. Em princípio, tudo isso fortalece a conectividade regional e a integração não apenas entre espaços urbanos e rurais, mas entre regiões historicamente “centrais” e “periféricas”.

Especialmente devido à recente erradicação da pobreza extrema na China, o principal objetivo da NRS de redução da pobreza enfrenta necessidades urgentes para o Sul Global, que permanece subdesenvolvido devido aos sistemas financeiros globais, coloniais e neocoloniais. A NRS propôs reduzir a pobreza por meio de múltiplos pontos de conectividade aprimorada, oportunidades de comércio e investimento, integração econômica regional, desenvolvimento de infraestrutura, transferência de tecnologia e compartilhamento de conhecimento, intercâmbio cultural e conectividade entre pessoas.

O que a NRS significa para a China? 

A Nova Rota da Seda é um importante projeto de política externa da China e se alinha com os princípios do socialismo com características chinesas de quatro maneiras.

  1. Em primeiro lugar, é uma expressão da visão estratégica e do planejamento de longo prazo da China, assim como do objetivo mais amplo de promover a estabilidade social, o desenvolvimento econômico e a cooperação com outros países.
  2. Em segundo lugar, a NRS é impulsionada pelo governo chinês, refletindo seu papel ativo no desenvolvimento liderado pelo Estado e sua ênfase em investimentos estratégicos em infraestrutura.
  3. Em terceiro lugar, a NRS incorpora elementos de abordagens econômicas tanto planejadas como orientadas ao mercado. Enquanto o governo chinês fornece financiamento e apoio para muitos projetos, empresas privadas chinesas também participam das iniciativas da NRS, contribuindo para o desenvolvimento de uma rede global de cooperação econômica e comércio. Um fator por trás disso foi que, após uma década na Organização Mundial do Comércio, a China acumulou um enorme superávit comercial e, após a crise financeira de 2008 (quando a China comprou centenas de bilhões de títulos dos EUA), Pequim tinha uma enorme quantidade de dólares que poderia investir no exterior. Isso forneceu às empresas chinesas – especialmente as estatais, financiadas pelo Banco de Desenvolvimento da China, o Banco de Exportação e Importação da China, entre outros – uma importante fonte de reservas estrangeiras de capital para investimento, permitindo-lhes expandir o comércio globalmente.
  4. Por último, a NRS reflete a ênfase da China na cooperação global e sua aspiração de aumentar suas contribuições à diplomacia internacional, de acordo com os princípios do Socialismo com Características Chinesas. Isso é evidenciado pelo investimento em infra-estruturas administrativas de governo – como a construção ou reforma de parlamentos em pelo menos 15 países africanos, incluindo a República do Congo, Libéria, Moçambique, Seicheles e Guiné-Bissau. As implicações diplomáticas também são evidenciadas por algumas das abordagens chinesas de segurança baseada em infraestrutura, com a construção de infraestrutura pública em regiões que sofrem de instabilidade e conflitos internos. Um exemplo é o Projeto Transfronteiriço de Água Etíope-Djibutiano, financiado pela China, no valor equivalente a R$1,6 bilhão, projetado para levar água potável para mais de 700 mil pessoas no Djibuti.

A NRS é uma estratégia eficaz para o desenvolvimento?

O mundo está longe de alcançar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030. Poucos Estados conseguiram cumprir suas obrigações financeiras e as chamadas “nações desenvolvidas” se recusam a contribuir com algo substantivo. Os países mais empobrecidos precisam, pelo menos, de R$19 trilhões em investimentos a mais, por ano, para atingir as metas. 

As opções oferecidas pelo Ocidente através do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial se esgotaram. A maioria das novas propostas parecem ter como objetivo competir com a China, em vez de colaborar. É o caso do Build Back Better World, dos EUA, recentemente reformulado como Parceria para Infraestrutura e Investimento Global, e o Global Gateway, da Europa, que não mostraram resultados substantivos. Este último chegou a ser descrito como um “fracasso” por analistas de política externa ocidentais. 

Embora haja uma visão de que a avaliação de um projeto dessa escala, após uma década, tenha certas limitações na mensuração de seu impacto qualitativo, é evidente que a NRS impactou no desenvolvimento global, tanto material quanto conceitualmente. Isso é particularmente importante para o Sul Global, onde séculos de políticas coloniais e neocoloniais de subdesenvolvimento deixaram os países com estradas perigosas e sem asfalto, pouca ou nenhuma infraestrutura pública e poucas fontes de geração e abastecimento de energia. Isso foi descrito por Walter Rodney, pensador político guianense, como “um produto da exploração capitalista, imperialista e colonialista” onde os países do Sul Global foram tomados direta ou indiretamente pelas potências capitalistas ocidentais. “Quando isso aconteceu”, explicou, “a exploração aumentou, e foi seguida pela exportação de excedentes, privando as sociedades do benefício de seus recursos naturais e mão-de-obra”.

A estratégia da NRS tem demonstrado êxito significativo, apoiado por dados nítidos. Embora o investimento tenha caído durante os anos de pandemia, desde seu início em 2013, os projetos da NRS totalizaram R$ 4,7 trilhões, sendo mais da metade (R$ 2,8 trilhões) destinados a contratos de construção e o restante (R$ 1,9 trilhões), gastos em investimentos não financeiros. O impacto da NRS no Investimento Estrangeiro Direto (IED) da China teve um aumento surpreendente: o IED da China quase dobrou, entre 2012 e 2020, para R$757 bilhões, garantindo a posição da China como o principal investidor estrangeiro do mundo. Em setembro de 2021, o valor total de comércio da China com os países parceiros da NRS aumentou para mais de R$51 trilhões. Atualmente, estima-se que existam mais de 1,7 mil projetos da NRS concluídos ou em desenvolvimento.

Assim como as tendências globais de desenvolvimento, há áreas que podem ser aprimoradas. Por exemplo, embora os projetos de energia renovável (solar, eólica, hidrelétrica) tenham aumentado 50%, em 2022, os combustíveis fósseis constituem 63% do envolvimento da China em energia no exterior, através da NRS.

A NRS está endividando o Sul Global?

Amplamente divulgada pela mídia e políticos ocidentais como o principal impacto da NRS no mundo, a narrativa da armadilha da dívida obscurece certos fatos. O primeiro deles é que muitos países participantes da NRS chegaram a esta iniciativa submetidos a dívidas emitidas pelo Ocidente, resultantes de décadas de empréstimos quase exclusivamente de credores ocidentais, assim como de diversos mecanismos de expropriação e extração colonial. A riqueza das instituições financeiras internacionais e dos países ocidentais vem de séculos de exploração econômica de países e povos através do colonialismo. E, posteriormente, através da criação de mecanismos financeiros, particularmente os Programas de Ajuste Estrutural dos anos 1980, que mantiveram e aprofundaram relações econômicas desiguais em vez de superá-las. Se entendermos o conceito de armadilha da dívida em que um país acumula níveis insustentáveis de dívida, muitas vezes devido ao empréstimo de grandes montantes de dinheiro de outro país ou de instituições financeiras internacionais, então esta caracterização se encaixa com mais precisão na relação com o Ocidente.

Embora a China seja o maior credor bilateral do continente africano, a maior parte da dívida pública total da África é com credores privados ocidentais. Do total da dívida pública da África subsaariana, que é de R$4,6 trilhões, as entidades chinesas detêm apenas 8%, o equivalente a R$383 bilhões. Metade da dívida pública da África é emitida internamente, enquanto a outra metade é devida a atores externos, totalizando R$2,1 trilhões. A China responde por 18% da dívida aos atores externos. O terço restante da dívida é dividido entre parceiros oficiais bilaterais, instituições financeiras internacionais e Eurobonds, cada um contribuindo com uma parcela igual.

O método e os objetivos do financiamento chinês são qualitativamente diferentes. O financiamento chinês não vem com condicionalidades, ao contrário dos empréstimos do FMI, do investimento comercial ocidental e da assistência ao desenvolvimento no exterior. Os credores ocidentais impuseram, e continuam impondo, condições rígidas e de austeridade que minam o desenvolvimento soberano dos países – como a privatização da economia, a mercantilização dos recursos públicos e a desregulamentação da atividade econômica do capital internacional privado.

Finalmente, a evidência de condições mais favoráveis vem dos vários acordos assinados pela China, mas, mais do que isso, vem da teoria chinesa do capital paciente. Adotada anteriormente dentro das fronteiras da China, o país emergiu gradualmente como um grande investidor fora de seu território, com o Banco de Exportação e Importação da China e o Banco de Desenvolvimento da China como principais participantes. Os empréstimos concedidos por essas agências estatais são investimentos de longo prazo e não têm prazos curtos de pagamento. São empréstimos concedidos para resolver necessidades de infraestrutura e, assim, apoiar o desenvolvimento social. Como existe a compreensão de que os benefícios chegarão a longo prazo, os países que tomam empréstimos têm flexibilidade, desde empréstimos de reestruturação até amortização de empréstimos sem juros. Por exemplo, antes do investimento, sabia-se que 30% do investimento na Ásia Central e 80% do investimento no Paquistão não seriam recuperados. 

Em 2021, a China prometeu redistribuir R$ 49 bilhões, ou 23% de seus Direitos Especiais de Saque (DES) do FMI para países africanos, em comparação com R$487 bilhões ou 20% da redistribuição de DES para mercados emergentes realizada por outros países do G20, como França, Itália, EUA e Reino Unido. A diferença de prioridades é evidente: a China é apenas um país, com o PIB PPP de 160 trilhões, enquanto o G20 inclui as outras 19 maiores economias do mundo, com o PIB PPP combinado de R$487 trilhões. 

Qual o futuro da NRS?

O Terceiro Fórum da Nova Rota da Seda será realizado em setembro deste ano. O fórum anterior, em 2019, contou com a participação de 200 países e foi concluído com a assinatura de acordos de mais de R$315 bilhões. Embora as previsões sobre o que acontecerá este ano variem devido à estagnação das finanças e investimentos da NRS durante a pandemia de Covid-19 (R$ 338 bilhões, em 2021, e R$ 333 bilhões, em 2022), alguns pesquisadores acreditam que isso pode fazer com que o projeto se recupere e seja revitalizado, particularmente devido à “forte parceria estratégica sino-russa”, que surgiu nas recentes mudanças no cenário geopolítico global. Com as nações na fila para ingressar no BRICS, novos instrumentos regionais ganhando força, a proposta de iniciativas complementares como a Iniciativa de Desenvolvimento Global, de 2021, e as nações do Sul Global se envolvendo significativamente nas relações diplomáticas e econômicas chinesas, a NRS faz parte de um conjunto de aspirações geopolíticas e sociopolíticas, que já estão alterando a ordem internacional e que favorecem um sistema mundial liderado pelo Sul Global.

Dez anos após o seu lançamento, a NRS representa uma plataforma alternativa, fora do Ocidente liderado pelos EUA. A NRS não só ajudou países a se desenvolverem, mas catalisou formações regionais e multilaterais mais fortes, com mais independência das linhas traçadas pelos colonialistas ou da supervisão do Ocidente sob modelos inadequados. Criando alternativas de financiamento muito necessárias, influência política e perspectivas de integração regional, projetos como a NRS servem para mitigar alguns dos efeitos nocivos da economia neoliberal. Ao fazê-lo, “afrouxam os parafusos” do sistema financeiro global no qual o Ocidente aprisionou grande parte do mundo, ao mesmo tempo em que abrem mais espaço para que o Sul Global avalie e construa caminhos alternativos para o desenvolvimento.


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Por que não há favelas na China? | 10.07.2023

Dongsheng Explica N°4

Por que não há favelas na China?

Xangai e Pequim, com mais de 20 milhões de habitantes cada, estão entre as “hipercidades” do Sul Global, junto a Delhi, São Paulo, Daca, Cairo e Cidade do México, bem maiores que as “megacidades” do Norte Global, como Londres, Paris ou Nova York1. Ao caminhar pelas ruas das cidades da China, nota-se rapidamente uma diferença marcante — a ausência de grandes favelas e de pessoas sem-teto, fenômenos tão comuns na maior parte do mundo.

Até algumas décadas atrás, as favelas não eram raras nas cidades chinesas. Existiam desde bairros precários da classe trabalhadora em Xangai, na década de 1930, até favelas na Hong Kong ocupada pelos britânicos, a partir da década de 1950. Como a China conseguiu se desenvolver reduzindo a precariedade habitacional massiva? Quais são as razões estruturais por trás disso?

Esta edição de Dongsheng Explica analisa como o governo chinês lida com a falta de moradia, como isso se relaciona com a construção socialista e como a China enfrenta os desafios impostos pelo rápido desenvolvimento econômico, a urbanização e a migração das últimas décadas.


Por que a urbanização em massa não produziu grandes favelas na China?

No final dos anos 1970, quando o processo de reforma e a abertura começou, 83% da população da China vivia no campo. Até 2021, a proporção da população rural diminuiu para 36%. Durante esse período de urbanização em massa, mais de 600 milhões de pessoas migraram das áreas rurais para as cidades.

Hoje existem 296 milhões de “trabalhadores migrantes” internos (农民工, nóngmín gōng), que representam mais de 70% da força de trabalho total do país2. Os trabalhadores migrantes se tornaram o motor econômico do rápido crescimento da China, que criou a maior classe média do mundo, com 400 milhões de pessoas.

Essa migração histórica trouxe muitos desafios, como o surgimento de “vilas urbanas” que tinham infraestrutura inadequada e condições de vida precárias. Embora algumas instalações básicas fossem fornecidas — como água corrente, eletricidade, gás e comunicações —, as condições de saneamento e segurança contra incêndios, entre outros serviços públicos, se assemelhavam às das aldeias rurais. Em razão dos aluguéis mais baixos e da pouca oferta de moradias acessíveis, as vilas urbanas foram majoritariamente habitadas por trabalhadores migrantes.

Com a aceleração da urbanização nos anos 2000, o governo chinês passou a promover a transformação em grande escala das áreas antigas das cidades, com foco na reforma de bairros historicamente deteriorados e na remoção de habitações sob risco. De 2008 a 2012, 12,6 milhões de moradias em vilas urbanas foram reconstruídas em todo o país3. Ao mesmo tempo, foram feitos esforços para construir moradias públicas ou de aluguel de baixo custo. Por exemplo, hoje em Xangai, famílias compostas por três ou mais pessoas, com renda mensal per capita inferior a 4.200 yuans (pouco menos de R$ 2.800), podem se candidatar para ter acesso a moradias de baixo custo, com um aluguel mensal de algumas centenas de yuans (ou 5% da renda familiar mensal). Em 2022, o governo central anunciou a construção de 6,5 milhões de unidades habitacionais de aluguel de baixo custo em 40 cidades, o que representa 26% da oferta total de novas moradias previstas no 14º Plano Quinquenal (2021-2025)4.

De fato, a explosão da migração rural-urbana nas últimas décadas não é um fenômeno exclusivo da China. Embora países e organizações internacionais utilizem diferentes definições de “favelas”, todas apontam para a mesma tendência: o crescimento das favelas ultrapassou as taxas de urbanização em todo o Sul Global, desde a década de 1970. No entanto, os esforços da China para melhorar a qualidade das moradias precárias ou construir novas moradias acessíveis não explicam, por si só, as razões pelas quais não houve a proliferação de favelas na China, como ocorreu em tantos outros países. A urbanização na China, portanto, deve ser entendida no contexto da construção socialista.

O que é o sistema “hukou” e o que ele tem a ver com o socialismo?

Uma característica única do processo de urbanização da China é que, embora as políticas tenham incentivado a migração de trabalhadores para os empregos industriais e de serviços nas cidades, os residentes rurais nunca perderam o acesso à terra no campo. Na década de 1950, o Partido Comunista da China (PCCh) liderou um processo nacional de reforma agrária, abolindo a propriedade privada da terra e transformando-a em propriedade coletiva. Durante o período de reforma econômica, a partir de 1978, foi criado um “Sistema de Responsabilidade Domiciliar” (家庭联产承包责任制 jiātíng lián chǎn chéngbāo zérèn zhì), que realocou as terras agrícolas rurais para as unidades domiciliares. Embora isso tenha impactado profundamente a produção agrícola, a propriedade coletiva da terra se manteve e a terra nunca foi privatizada.

Até hoje, a China tem uma das maiores taxas de famílias com casa própria do mundo, ultrapassando os 90%, e isso inclui os milhões de trabalhadores migrantes que alugam casas em outras cidades. Isso significa que, diante de problemas econômicos, como o desemprego, os trabalhadores migrantes podem retornar às suas cidades de origem, onde possuem uma casa, e se dedicar à produção agrícola ou procurar emprego. Esse amortecedor estrutural desempenha um papel fundamental na absorção dos impactos das crises econômicas e sociais. Por exemplo, durante a crise financeira global de 2008, a economia chinesa, voltada para a exportação especialmente de bens manufaturados, foi severamente atingida. Com isso, cerca de 30 milhões de trabalhadores migrantes perderam seus empregos. Da mesma forma, durante a pandemia de Covid-19, quando os empregos no setor de serviços e na indústria foram severamente afetados, muitos trabalhadores migrantes voltaram para suas casas nas áreas rurais.

Além da reforma agrária, foi criado um sistema para administrar a migração em massa do campo para as cidades, buscando garantir que o movimento de pessoas estivesse alinhado às necessidades de planejamento de um país tão populoso. Embora a China tenha tido algum tipo de restrição à migração por mais de 2 mil anos, no final da década de 1950, o país estabeleceu um novo “sistema de registro domiciliar” (户口 ou hùkǒu) para regular a migração rural-urbana. Cada pessoa chinesa tem um hukou urbano ou rural que lhes concede acesso, em sua cidade de registro, a benefícios sociais (como subsídios para moradia, educação, saúde, aposentadoria, seguro-desemprego, entre outros), mas estes são limitados nas cidades para onde se deslocam a trabalho.
Embora a reforma do sistema hukou esteja em curso, a ausência de hukou urbano faz com que muitos pais e mães migrantes passem longos períodos longe de suas famílias, deixando seus filhos sob os cuidados dos avós em suas cidades natais — o que é conhecido como “filhos deixados para trás” (留守儿童 liúshǒu értóng). Mesmo com a diminuição desse fenômeno ao longo dos anos, estima-se que ainda existam sete milhões de crianças nessa situação. Hoje, 65,22% da população da China mora nas cidades, mas apenas 45,4% possui hukou urbano. Embora esse sistema tenha impedido o surgimento de grandes favelas urbanas, ele também reforçou graves desigualdades de bem-estar social entre áreas urbanas e rurais, assim como entre pessoas que vivem em uma mesma cidade, com base em seu tipo de hukou.

Como o governo chinês lida com as pessoas sem-teto?

No início dos anos 2000, os assuntos referentes ao status residencial, aos direitos dos trabalhadores migrantes e ao tratamento concedido às pessoas sem-teto nas cidades tornaram-se uma questão nacional. No final de 2003, o Conselho de Estado — órgão executivo máximo do poder estatal — editou as “Medidas de Resgate e Gestão de Itinerantes e Sem-teto em Áreas Urbanas”5. A nova regulamentação criou postos de assistência que fornecem alimentação e abrigos temporários, aboliu o sistema de detenção obrigatória de pessoas sem o hukou correspondente, ou sem moradia, e responsabilizou as autoridades locais por encontrar moradia para as pessoas sem-teto em suas cidades natais. 

Sob essas diretrizes, cidades como Xangai criaram postos de assistência para as pessoas sem-teto. Quando a segurança pública – a polícia local – e os servidores da gestão urbana encontram pessoas sem-teto, devem ajudá-las a acessar os postos mais próximos. Todos os custos são cobertos pelo orçamento da cidade. De junho de 2022 a abril de 2023, o posto de gestão da assistência do distrito de Putuo, que possui uma população de 1,24 milhão e o quarto menor PIB per capita dos 16 distritos de Xangai, forneceu abrigo e assistência a uma média de 24,3 pessoas sem-teto por mês, o que pode incluir casos repetidos6

Os postos de assistência fornecem alimentos e acomodações básicas aos sem-teto e ajudam as pessoas com doenças graves a acessar cuidados de saúde e a retornar aos locais onde suas residências estão registradas, entrando em contato com seus parentes ou com o governo local, e providenciando transporte gratuito para este retorno, quando necessário.

Ao retornarem para casa, a responsabilidade de auxiliar as pessoas sem-teto é do governo do condado, que procura emprego e entra em contato com os parentes para prover cuidados. Para um número muito pequeno de pessoas idosas, com deficiência ou sem parentes nem capacidade para trabalhar, o governo local, ou o escritório de rua dirigido pelo Partido, deve fornecer apoio nacional, de acordo com o “método de atendimento a pessoas extremamente empobrecidas”, previsto nas “Medidas Provisórias de Assistência Social” de 2014. O apoio se refere ao provimento das condições básicas de vida, ao cuidado de pessoas empobrecidas que não podem cuidar de si mesmas, ao tratamento de doenças, à gestão de assuntos funerários, entre outros.

Essa série de medidas de assistência garante que os servidores responsáveis pela aplicação da lei nas cidades não expulsem, simplesmente, as pessoas sem-teto, mas também assegurem que irão receber assistência adequada, em termos de moradia, trabalho e sistemas de apoio em seus locais de origem.

Quais são os desafios atuais da urbanização, migração e desigualdade?

A criação de postos de assistência é um avanço importante, mas é evidente que os abrigos não são uma solução estrutural e que, sozinhos, não são capazes de atender às necessidades de uma metrópole como Xangai, com 25 milhões de pessoas, muito menos dos 921 milhões de habitantes urbanos do país. Para enfrentar a desigualdade e tornar as cidades e o campo mais habitáveis, o governo tem implementado diversas reformas estruturais.

Em seu relatório ao 20º Congresso Nacional do PCCh, o presidente Xi Jinping disse: “Identificamos que a principal contradição enfrentada pela sociedade chinesa é entre o desenvolvimento desequilibrado e inadequado e as necessidades cada vez maiores das pessoas por uma vida melhor, e  fechar essa lacuna deve ser o foco de todas as nossas iniciativas”7. O desenvolvimento desequilibrado e inadequado se refere à grande distância entre o campo e as cidades, entre as regiões subdesenvolvidas e as industrializadas, e entre ricos e pobres.

Em uma escala mais ampla, as campanhas de combate à pobreza — destacadas pela erradicação da extrema pobreza em 2020 — e a estratégia de revitalização rural ajudaram a aliviar a pressão do deslocamento dos trabalhadores migrantes para as cidades. O governo investiu fundos e recursos substanciais, usando medidas diversificadas para reduzir a pobreza, incluindo o desenvolvimento da indústria rural, educação, assistência médica e infraestrutura8, além dos esquemas de transferência de renda. Essas medidas melhoraram fundamentalmente as condições de vida e emprego nas áreas rurais e criaram mais oportunidades para que as pessoas tenham a opção de permanecer e trabalhar no campo. Por exemplo, a cada ano, mais migrantes retornam das cidades para seus locais de origem. Em 2015, esse foi o caso de 2,4 milhões de pessoas e, em 2019, de 8,5 milhões.

Na última década, a China implementou reformas para compensar a flexibilização dos requisitos do hukou e melhorar o bem-estar social dos trabalhadores migrantes, garantindo que a urbanização e a distribuição da população respondam às necessidades do país. Desde 2010, grandes cidades têm flexibilizado gradualmente as restrições de registro domiciliar para admissão escolar, permitindo que os filhos de trabalhadores migrantes frequentem escolas públicas da mesma forma que as crianças com hukou local. 

Além disso, de acordo com o Plano de Urbanização de 2019, cidades com população abaixo de 3 milhões de pessoas são obrigadas a remover todas as restrições de hukou, enquanto cidades maiores (com menos de 5 milhões) podem começar a flexibilizar as restrições. O 14º Plano Quinquenal (2021-2025) e a estratégia econômica do país até 2035 colocam o foco na redistribuição de renda por meio da reforma tributária, reduzindo a distância entre ricos e pobres e removendo as barreiras que impedem que milhões de trabalhadores migrantes desfrutem de todos os benefícios da vida urbana. Em 2021, o governo investiu o equivalente a 25,7 bilhões de reais para flexibilizar os requisitos de residência do hukou e, também, para aumentar o poder de compra dos migrantes urbanos, como parte da política de “dupla circulação” do país9.

Esses esforços para enfrentar os desafios das “três montanhas”, referentes ao alto custo da moradia, da educação e da saúde, enfrentados pelos trabalhadores migrantes e por toda a população chinesa, estão no centro da visão do governo, das reformas políticas em direção à “prosperidade comum” para todos os seus cidadãos e da construção de uma sociedade socialista moderna.


  1. Uma área metropolitana com uma população entre 20 e 40 milhões é chamada de “hipercidade” e entre 10 e 20 milhões, de “megacidade”.
  2. Trabalhadores migrantes são aqueles cujo registro domiciliar permanece em uma área rural e que se dedicam a indústrias não agrícolas ou que saem de suas cidades de origem para trabalhar em outra parte do país, por pelo menos seis meses do ano.
  3. “Opiniões do Conselho de Estado sobre Aceleração da Reconstrução de Assentamentos Precários”, Escritório Geral do Conselho de Estado, 12 de julho de 2013
  4.  “40 cidades para adicionar 6,5 milhões de unidades de moradias subsidiadas pelo governo”, Escritório de Informações do Conselho Estadual da China, 11 de janeiro de 2022
  5. “Medidas para o resgate e gestão de itinerantes e pessoas sem-teto em áreas urbanas”, reunião executiva do Conselho de Estado da China, 18 de junho de 2003
  6. “Resgate de Itinerantes e pessoas sem-teto”, Governo do Distrito de Putuo, Shanghai, Junho de 2022 a abril de 2023
  7. Leia o relatório completo
  8. Acesse o estudo “Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China”
  9. “14º Plano Quinquenal da China prioriza dupla circulação e inovação”, Andrew Korybko, 30 de outubro de 2020

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O mercado imobiliário da China está encrencado? | 29.05.2023

Dongsheng Explica N°3 | Maio 2023

O mercado imobiliário da China está encrencado?

Nos últimos anos, a questão habitacional na China tem tido destaque na mídia ocidental. O rápido desenvolvimento urbano, os preços exorbitantes, a dependência dos governos locais da renda da terra e, o mais “preocupante”, a suposta falência da gigante imobiliária Evergrande — 13 anos anos depois que a crise das hipotecas subprime de 2007-2008 abalou a economia mundial —, despertaram a atenção de analistas financeiros de todo o mundo. Mas qual é a situação real do mercado imobiliário na China e o que o governo está fazendo?


Como foi tratada historicamente a questão habitacional?

Quando o povo chinês, liderado por Mao Zedong e pelo Partido Comunista da China (PCCh), fundou a República Popular da China (RPC) em 1949, o país era um dos mais pobres do mundo. Em 1950, apenas 10 países tinham PIB per capita menor que a China, e apenas 11% de seus 552 milhões de habitantes viviam em áreas urbanas. Com a aceleração do desenvolvimento industrial, as cidades também cresceram rapidamente. Após a reforma e abertura, a migração do campo para as cidades tornou-se um fenômeno constante. Em 2022, a população urbana da China alcançou 921 milhões, representando 65% da população total.1

Além disso, o número de cidades com mais de 1 milhão de habitantes cresceu de 90, em 2000, para 167 em 2020. Já as áreas urbanas com menos de 1 milhão de habitantes caíram de 172 para 130, sugerindo que a população urbana passou a se concentrar em centros maiores.2

A combinação entre uma população massiva com uma renda crescente e o boom das áreas urbanas impulsionou significativamente o desenvolvimento habitacional, que passou por grandes mudanças desde 1949.

Logo após a fundação da República Popular da China, a terra urbana foi nacionalizada e as moradias foram retiradas de circulação do mercado. Durante mais de 30 anos, a China teve um sistema socialista de bem-estar da moradia, no qual as unidades residenciais eram construídas por agências governamentais, instituições públicas ou empresas estatais, entre outros. No início dos anos 1980, 75% das famílias urbanas na China viviam em habitações públicas alugadas.

Com a reforma e abertura, o governo chinês decidiu desenvolver o setor imobiliário. A partir de 1978, a política de investimentos do Estado passou de um orçamento único do Estado para o investimento conjunto do Estado, empresas e indivíduos. Esta nova política estimulou o desenvolvimento do mercado imobiliário, principalmente após 1992, quando foi estabelecida a economia socialista de mercado. Em 1997, 9,64% do total do investimento em ativos sociais fixos foi em desenvolvimento imobiliário. O mercado imobiliário urbano foi formando-se de forma gradual e as condições de vida melhoraram significativamente, com a área de construção de moradias per capita aumentando de 6,7 metros quadrados, em 1978, para 17,8 metros quadrados em 1997.

Desde 2008, o crescimento econômico desacelerou e o setor imobiliário passou por ajustes. Nesse período, o governo prestou mais atenção ao papel das políticas de macrocontrole, como a tributação, e deu grande importância à construção de moradias subsidiadas para atender as necessidades de pessoas de renda média e baixa. A escala do mercado imobiliário da China ainda é enorme, mas seu crescimento desacelerou.

Quem conduz o desenvolvimento do mercado imobiliário na China?

Com a formação do mercado socialista, o capital privado no setor imobiliário aumentou rapidamente. Em 1993, havia apenas 505 construtoras privadas na China. Esse número cresceu para 18.259 em 2001, chegando a mais de 122 mil empresas até 2021. Pouco a pouco, a propriedade pública e coletiva de empresas de construção foi substituída por capital privado. Em 2021, o capital privado, tanto estrangeiro quanto nacional, representava 86% do valor agregado bruto na construção, totalizando 25,2 trilhões de yuans (R$ 17,8 trilhões), e empregava 89,6% das 52,8 milhões de pessoas que trabalhavam na construção.

As empresas de propriedade coletiva, que são unidades de nível municipal, de propriedade dos munícipes e administradas por comitês de vilarejos, atingiram um pico de 29.872 unidades em 1997, e têm decrescido desde então.

Fonte: Escritório Nacional de Estatísticas da China

Qual é a relação entre o setor imobiliário e os governos locais?

Desde 1953, a propriedade da terra rural permaneceu coletiva, enquanto a propriedade da terra urbana se manteve pública. A partir da década de 1990, os governos locais começam a poder “vender” (transferir) o direito de uso da terra para entidades qualificadas. As receitas geradas a partir dessa prática, como impostos fundiários e renda de transferências de terras estatais, são agora comumente conhecidas como “financiamento fundiário”, e representaram 89% das receitas dos orçamentos públicos locais em 2018.

O professor Zhao Yanjing aponta que os governos locais usam o financiamento da terra para investir em infraestrutura e aperfeiçoar os serviços públicos, o que, por sua vez, aumenta o valor da terra. O governo investe a receita do financiamento da terra em construções urbanas como o desenvolvimento de serviços públicos, estradas, hospitais e escolas. Transforma, assim, a terra suburbana em novas áreas urbanas. À medida que a construção urbana se expande, os preços das moradias sobem, elevando também os preços dos terrenos.

Em 2019, a taxa de propriedade de residência urbana atingiu 96% na China, uma das mais altas do mundo. Em 2017, nos EUA era de 64,2%, e no Japão, de 61,9%. No Brasil e na África do Sul, essa taxa era de 72,5% e 69%, respectivamente. Entre as famílias com casa própria na China, 58,4% possuíam um imóvel, 31% possuíam dois imóveis e 10,5% possuíam três ou mais imóveis.

A grande demanda por moradia, que tem provocado um déficit habitacional principalmente nas grandes metrópoles, serviu para aumentar ainda mais os preços das casas. Ao mesmo tempo, como resultado da migração para as grandes cidades, muitos municípios menores e áreas rurais têm superávits habitacionais e deixam novos empreendimentos vazios. Estima-se que 50 milhões de unidades habitacionais estão disponíveis nestas cidades. Uma pesquisa do Instituto Beike revelou que a taxa média de desocupação da habitação ficou em torno de 12% em 2022.

Como o governo está lidando com os problemas desse setor?

Como essas hipotecas foram empacotadas em produtos derivativos nos mercados financeiros em formas como dívidas garantidas e obrigações de empréstimos, esse colapso trouxe, em seu rastro, a queda de outros mercados financeiros e deixou muitos bancos e outros tipos de instituições financeiras enfrentando um desastre.

A bolha do mercado imobiliário foi o gatilho da crise financeira de 2007-2008, especialmente no Norte Global (não apenas nos EUA, mas também na Grã-Bretanha, Espanha, Irlanda e outros países), resultado de empurrar hipotecas para pessoas que não teriam capacidade de pagá-las. Não foi apenas o chamado mercado de hipotecas subprime que, atingindo valores totalmente fictícios, colapsou. Mas no caso chinês, o Estado não permite esse tipo de especulação financeira e já está tentando evitar uma bolha para reduzir as chances de um colapso, ao invés de esperar a eclosão de uma crise para resgatar os bancos.

Em agosto de 2020, com um mercado imobiliário maduro, o governo chinês editou a regulamentação conhecida como “três linhas vermelhas“, fornecendo três indicadores fundamentais da saúde financeira das incorporadoras imobiliárias. A regulamentação limita a proporção da dívida em relação ao caixa, patrimônio e ativos dessas empresas, e promove o crescimento sustentável do setor. O governo convocou as empresas a reorganizar suas finanças até 2023, classificando-as como “verdes” caso atendam a esses critérios de finanças saudáveis e, assim, permitindo-lhes acesso a novos créditos.

A Evergrande, segunda maior incorporadora imobiliária da China, foi a que atraiu mais atenção. Até dezembro de 2020, a dívida do Grupo Evergrande era de US$ 300 bilhões, e sua relação passivo/ativo era de 84,7%, acima dos 70% estabelecidos nas três linhas vermelhas.3

Como a empresa lutava para pagar sua dívida e para evitar o uso indevido dos fundos, dois governos locais assumiram o controle da receita da Evergrande. Desde agosto de 2021, outras oito províncias solicitaram que a Evergrande colocasse a receita das pré-vendas em contas de custódia, enquanto a incorporadora, sem caixa, colocava em espera centenas de projetos inacabados. O governo chinês está assumindo o controle da receita da empresa e resolvendo os problemas antes que possa eclodir uma crise de dívida.

O limite de 5% na taxa de aumento anual dos aluguéis favoreceu as condições de vida de todas as famílias chinesas e desacelerou os aumentos explosivos de preços. O ponto principal da regulamentação é que “as casas são para morar, não para especular”, como disse o presidente Xi Jinping no 19º Congresso Nacional do PCCh.

Além de controlar a especulação de preços, o governo chinês tem promovido uma série de políticas para o desenvolvimento da habitação social, visando facilitar e garantir o acesso das novas gerações e dos grupos com menor poder aquisitivo à moradia. O governo de Xiamen, na província de Fujian, reduziu o preço de mercado de 4.000 apartamentos em 45%. O governo de Henan comprou 1.050 apartamentos da Evergrande, cuja construção havia sido interrompida devido aos problemas de liquidez.

Em termos gerais, entre 2021 e 2025, o governo chinês deve fornecer 6,5 milhões de novas moradias de aluguel de baixo custo em 40 grandes cidades, para facilitar o acesso à moradia a 13 milhões de jovens. As cidades do nível 1, como Pequim e Xangai, irão fornecer um total de 1,87 milhão de moradias de aluguel de baixo custo. Só em 2021, 936 mil unidades abrigaram 2 milhões de jovens em 40 cidades.

A desaceleração da demanda habitacional — resultado das incertezas durante a pandemia e do aumento das tensões geopolíticas — somada às novas regulamentações, restringiram alguns comportamentos especulativos no mercado. A rentabilidade das incorporadoras imobiliárias foi impactada. Como seu modelo de negócios é baseado no endividamento, ainda que seja frutífero durante o rápido crescimento do mercado, à medida que o setor amadurece, pode representar um sério risco para o sistema.

Diante da desaceleração da economia chinesa em 2022, o governo flexibilizou uma série de medidas e estimulou a economia do setor imobiliário: adiou o prazo para avaliação das três linhas vermelhas, estendeu o prazo para que os bancos reduzam a proporção de empréstimos hipotecários e créditos imobiliários pendentes em relação ao total de empréstimos, e cortando taxas de juros hipotecários da China.

Após 18 meses, na esteira deste estímulo, os preços das casas estão aumentando. Isso pode ser visto como um sinal de recuperação da demanda no mercado. Entretanto, o investimento imobiliário caiu 10% em 2022, e 5,7% nos dois primeiros meses de 2023. As “vendas” de terrenos caíram 29% nos dois primeiros meses deste ano, seguindo uma queda de 53% em 2022. Tais indicadores sugerem que o setor imobiliário precisará de mais tempo para voltar ao crescimento constante.

Conclusão

O mercado imobiliário da China seguiu um caminho paralelo ao da economia em geral: a uma velocidade e escala sem precedentes. Seu desenvolvimento, entretanto, atingiu uma fase mais madura nos últimos anos e o setor batalha para manter as taxas de crescimento anteriores. Os controles estabelecidos pelo governo para estabilizar a segurança financeira das incorporadoras imobiliárias, o freio à especulação e o desenvolvimento de projetos de habitação social para grupos de baixa renda e jovens que compram casas pela primeira vez, têm como objetivo tratar os imóveis como direito do povo, tanto para a moradia quanto para compartilhar os frutos do desenvolvimento, e chegaram a um ponto crucial.

O governo chinês demonstrou flexibilidade ao permitir que as empresas “respirem” em meio a um mercado difícil. Entretanto, eles não estão dispostos a permitir especulações a longo prazo, especialmente quando, devido ao seu tamanho, isso poderia levar a choques devastadores na economia em geral. Este processo deve levar a um modelo de negócios mais sustentável, a menos especulação com as moradias e à eliminação das “frutas podres” no imenso setor imobiliário da China.


  1. Esse percentual é inferior ao de países desenvolvidos, como a Coreia do Sul (81%), Estados Unidos (83%) ou Japão (92%), e também ao de países em desenvolvimento, como África do Sul (68%), México (81%), Brasil (87%) e Argentina (92%).
  2. Na China, as definições de “áreas urbanas” incluem cidades e municípios cujas autoridades básicas são os comitês residenciais; enquanto as “áreas rurais” são definidas como os distritos e vilas que têm como base os comitês de vilarejos.
  3.  Valores muito baixos dessa relação indicam que há capital ocioso e valores muito altos indicam endividamento excessivo.

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Tianxia: Tudo sob o céu | 23.04.2023

Dongsheng Explica N°2 | Abril 2023

Tianxia: Tudo sob o céu

Tianxia (天下, tiānxià) ou “tudo sob o céu” é um conceito que remonta a quatro mil anos. Todavia, tianxia começa a ter relevância como categoria no pensamento chinês apenas no início do período dos Reinos Combatentes (475-221 AEC). Tianxia é um conceito complexo, disputado e em constante evolução. Ele possui uma gama de significados que vão desde a geografia (demarca um território governado), à moralidade (define a legitimidade política), à subjetividade (representa as aspirações do povo), à política (fornece uma visão para um sistema mundial), e muito mais. Assim como a filosofia africana do ubuntu (“humanidade” na língua Nguni Bantu ou “sou porque nós somos”) ou o conceito latino-americano de bem viver, tianxia foca na compreensão da interconexão de toda a vida e na melhoria da comunidade mundial como um todo.

Qual é o significado de tianxia? O que faz com que esse conceito perdure por milênios? E, o mais importante, que possibilidades ele oferece para enfrentar alguns dos maiores desafios colocados para a China e o mundo hoje?


Por que surgiu o conceito de tianxia?

Durante a dinastia Zhou Oriental (771-256 AEC), período tumultuado de conflito constante entre os estados na China, tianxia tinha um significado territorial e representava uma massa de terra com muitos países governados pelo “Filho do Céu” (天子, tiānzǐ). Os antigos chineses não sabiam ao certo o tamanho de tianxia — a soma dos territórios dos diferentes estados equivalia a menos da metade da China atual —, mas não tinham dúvidas de que estavam no centro da civilização. Documentos antigos que remontam aos sábios governantes da dinastia Shang (1600-1066 AEC) sugerem que tianxia não se referia apenas a uma massa de terra, mas também era uma visão política orientada a um mundo ideal de harmonia entre os estados.

Na dinastia Zhou (1066-256 AEC), período de grande agitação e conflito militar, o tianxia foi institucionalizado, e passou de ser uma visão política a um sistema de governança, definido por três elementos. Em primeiro lugar, o sistema tianxia deve garantir que todos os estados envolvidos recebam mais benefícios por sua participação do que por permanecerem independentes. Em segundo lugar, o sistema se baseia na dependência mútua e na reciprocidade entre todos os estados. Finalmente, o sistema tianxia deve desenvolver um conjunto de interesses, crenças e compromissos comuns para garantir seu caráter universal.

O que é o “mandato celestial”?

Sob o tianxia, o poder político vem de tianming (天命, tiānmìng), um “mandato celestial” ou “ordem invocada divinamente”. Este mandato, no entanto, não é eterno, nem concedido por uma divindade, tampouco baseado apenas no poderio militar ou econômico. Durante a antiga dinastia Shang (1600-1066 AEC), acreditava-se que esse mandato vinha da vontade celestial, do “Senhor nas alturas” ou do shangdi (上帝, shàngdì). Shangdi não era uma divindade monoteísta, e estava ligado aos espíritos dos ancestrais tribais. A partir da dinastia Zhou, esse mandato celestial passou a ser projetado no povo, especificamente, nas “aspirações compartilhadas do povo” ou minxin (民心, mínxīn). Para defender sua legitimidade política, um governante deve ter conquistado o apoio do povo de tianxia. Perder o minxin é justificativa para a revolta e a revolução. A ascensão e queda de dinastias, provocadas por rebeliões camponesas, desastres naturais massivos e motins militares, representam essa perda do mandato celestial e, portanto, da legitimidade política dos governantes.

Como o tianxia difere dos conceitos ocidentais de governança?

O sistema tianxia emerge de uma história bem diferente de outros modelos antigos de império ou Estado, como a República Grega ou o Estado-nação europeu. O sistema grego, por exemplo, centrado na ideia de pólis, ou cidade-Estado, é uma política nacional onde há uma clara distinção entre Estados, entre vida privada e esfera pública, e entre o indivíduo e o Estado. Por outro lado, a ideia de tianxia não tem um “dentro” nem um “fora”, mas define a abrangência de tudo sob o governo do Filho do Céu. O paradigma político das civilizações ocidentais é baseado em uma estrutura na qual o indivíduo é o sujeito político básico e o Estado-nação — em geral determinado etnicamente — é a maior unidade política soberana. De acordo com a filosofia política chinesa, a família, mais do que o indivíduo, é a menor unidade política, e o tianxia é o nível mais alto, transcendendo o nível do Estado.

Na concepção de tianxia, cada indivíduo se relaciona e tem responsabilidade com uma humanidade maior. Na tradição confucionista, a ênfase no indivíduo ocorre principalmente na prática altamente valorizada de auto-cultivo e aprendizado a serviço da família, do Estado e do mundo — uma tradição que foi incorporada pelos comunistas chineses na práxis de “crítica e autocrítica”. Tianxia não foi apenas incorporada pela tradição confucionista, mas estendida a outras escolas chinesas de pensamento. Por exemplo, Mozi (470-391 AEC)(墨子, mòzi), fundador do Mohismo durante o período das Cem Escolas de Pensamento (百家争鸣, bǎijiā zhēngmíng), foi um dos filósofos chineses que mais escreveu sobre tianxia, usando esta palavra mais de quatrocentas vezes em suas obras. Textos posteriores de Mencius, Xunzi (荀子, xúnzi) e Han Feizi (韩非子, hánfēizi) fizeram referência ao ideal cultural comum de um território unificado com um único governante.

De acordo com Confúcio, o sistema tianxia é voluntário e não coercitivo. Se considerarem que sua participação lhes será benéfica, estados fora do tianxia podem participar no sistema, desde que sigam voluntariamente as estruturas e padrões do sistema tianxia, ou seja, as “formas e normas” (礼乐, lǐyuè, que significa literalmente ritos e música). Confúcio sugeriu que a maneira de atrair pessoas que estão fora do sistema tianxia é satisfazer as necessidades daquelas que já estão dentro dele.

Qual é o papel da unidade multiétnica no tianxia?

Em 221 AEC, o tianxia foi finalmente unificado sob o governo de Qin Shi Huang (ou “o primeiro imperador do império Qin”) (秦始皇, qínshǐhuáng). Na sequência, a dinastia Han (202 AEC-220 EC) transformou o modelo de império em um protótipo do Estado-nação moderno da China, ou um precursor da China que conhecemos mais de dois mil anos depois. No entanto, o conceito de tianxia se originou muito antes dessas dinastias e nunca foi entendido como um conceito étnico restrito e centrado no “povo Han”. Atualmente, o povo Han – uma das 56 etnias oficiais da China –  abrange 92% da população. Essa identidade étnica foi, no entanto, uma invenção da época, quando as pessoas começaram a se identificar com a “Idade de Ouro” da dinastia Han. Tianxia não é apenas um conceito político definido pelas fronteiras dos estados, mas também um conceito cultural definido por formas e normas. Os grupos étnicos das regiões de fronteira são bem-vindos, mas não são obrigados a fazer parte do sistema tianxia ou a seguir essas formas e normas. Além disso, esses grupos também trazem inovações para o sistema. Esse processo dinâmico continuou ocorrendo durante dois mil anos e moldou a sociedade multiétnica da China atual.

Como o tianxia nos ajuda a entender a China moderna?

O conceito de tianxia ajuda a entender o surgimento da China moderna, que conseguiu manter uma relativa integridade territorial e resistir à fragmentação, apesar da diversidade e das diferenças. No início da época moderna no século XIX, período de declínio contínuo da dinastia Qing (1644-1911), devido a incursões imperialistas, práticas dos senhores da guerra e ao declínio econômico, muitos estudiosos buscaram novas ideias para transformar a sociedade chinesa. Reformador confucionista e uma figura-chave por trás da Reforma dos Cem Dias (百日维新, bǎirì wéixīn) em 1898, Kang Youwei (1858-1827) se debruçou sobre os clássicos de Confúcio. Ele escreveu o Livro da Grande Unidade (大同书, dàtóng shū), publicado postumamente em 1935, no qual dividiu o desenvolvimento do mundo em três estágios: um estágio “incivilizado”, um estágio intermediário ou xiaokang (小康, xiǎokāng), e o estágio final de grande unidade (太平世, tàiping shì). De acordo com Kang, que apoiou a restauração da monarquia e rejeitou o modelo ocidental de Estado-nação, o objetivo maior deveria ser a abolição dos Estados e da desigualdade, criando um mundo comum para todos (天下为公, tiānxià wèigōng).

Sun Yat-sen (1866-1925), fundador da nação chinesa moderna, ajudou a derrubar a última dinastia imperial Qing com a Revolução Xinhai de 1911. Em vez de se afastar da tradição confucionista como um todo, ele, assim como Kang, mobilizou apoio para estabelecer a República da China sob a bandeira de “um mundo em comum para todos” (天下为公, tiānxià wèigōng) — uma nova interpretação republicana do “princípio celestial”. Em vez de dissolver as estruturas e ideias das dinastias imperiais, a transição do império para um Estado moderno foi baseada, modificada e construída a partir do passado — de princípios confucionistas como tianxia à governança burocrática centralizada, a educação meritocrática e os sistemas de avaliações.

Qual é a relação entre marxismo e tianxia?

Com o despertar da consciência nacional, particularmente fomentada pelo anti-imperialismo e anti-feudalismo do Movimento Quatro de Maio de 1919, as ideias marxistas floresceram e inspiraram a formação do Partido Comunista da China e de movimentos e organizações de massas vinculados a ele. Durante a guerra de resistência contra a agressão japonesa, Mao Zedong já entendia que o marxismo-leninismo deveria assumir um caráter chinês para se enraizar na China. Em O Papel do Partido Comunista Chinês na Guerra Nacional (1938), ele escreveu: “A nossa nação tem uma história várias vezes milenaria, de traços particulares e cheia de imensos tesouros. A esse respeito nós não somos mais do que simples meninos de escola. A China de hoje é um resultado do desenvolvimento da China do passado; ao abordarmos a História como marxistas não devemos quebrar-lhe o fio. Há que fazer o balanço de todo o nosso passado, desde Confúcio a Sun Yat-sen, para que recolhamos essa preciosa herança”. Da visão de Sun Yat-sen de “Cinco raças, uma república” (Han, Manchu, Mongol, Hui e Tibetana), ao apelo de Mao Zedong em defesa de uma grande unificação dos povos de todas as etnias no estabelecimento da República Popular da China, há uma conexão evidente  com a longa tradição de construção do Estado baseado na unidade e governo de tudo sob o céu.

Mao Zedong também apontou que todos os impérios da história passaram pelo ciclo de ganhar e perder tianxia, o que os levou ao seu fim. Para interromper esse ciclo, o PCCh deve atuar sob a orientação do marxismo. Em 1945, Mao enfatizou que “o Partido no poder deve aceitar a supervisão do povo”. Setenta e sete anos depois, Xi Jinping disse que o Partido deveria se revolucionar constantemente para evitar esse ciclo histórico. Segundo Marx, o processo de autocrítica e fortalecimento contínuo é uma traço distintivo da revolução proletária com relação às demais. Ao inovar a partir da teoria de Marx, combinando-a com a história da China, o PCCh e seus líderes deram um novo significado à ideia de “possuir tianxia“.

Qual é a relevância do tianxia hoje?

No final de 2020, com a erradicação da pobreza extrema, a China entrou no período de xiaokang — uma sociedade moderadamente próspera —, uma das duas metas centenárias do Partido Comunista da China. Não é uma coincidência que o termo confucionista de xiaokang, ou a Era da Paz Menor, tenha sido escolhido. A visão atual, estabelecida pelo governo para sua política interna, é de “prosperidade comum” (共同富裕, gòngtóng fùyù), e, para o mundo, uma “comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade” (人类命运共同体, rénlèi mìngyùn gòngtóngtǐ), ambos com fortes associações com o espírito incorporado pela visão confuciana, e comunista, de um mundo em grande unidade (天下大同, tiānxià dàtóng). Ambas visões políticas apontam para um mundo mais justo, no qual a riqueza de tianxia seja mais equitativamente dividida entre os seus habitantes, entre o Norte e o Sul, os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos, os ricos e os pobres.


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As Duas Sessões (Lianghui) | 24.02.2023

Dongsheng Explica N° 1

As Duas Sessões (Lianghui)


Caros/as leitores/as,

Depois de mais de um ano e meio e 76 edições do Vozes Chinesas, decidimos melhorar o formato para trazer a vocês melhores análises da realidade social, política e cultural da China.

Assim, estamos muito animados com o lançamento da primeira edição da nossa mais recente publicação, Dongsheng Explica. A cada mês, publicaremos um artigo original que apresenta os principais conceitos, processos e fenômenos na China que acreditamos ser de interesse dos leitores. Cada tema, escolhido pela equipe editorial, visa aprofundar nossa compreensão coletiva da sociedade, história e realidade contemporânea chinesas. Além disso, cada publicação será acompanhada de um vídeo explicativo, que estará disponível em nosso canal do YouTube.

Esperamos que você goste da primeira edição do Dongsheng Explica sobre as Duas Sessões (Lianghui). Por favor, leia, assista, compartilhe e diga-nos o que você acha!

— Coletivo Editorial Dongsheng


As “Duas Sessões” (两会, liǎnghuì) serão realizadas em março. No evento que acontece anualmente, o Congresso Nacional do Povo (CNP) e a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC) realizam reuniões simultâneas e definem o rumo do país para o resto do ano.
Essas duas plataformas são partes essenciais do sistema político singular da China e da democracia de estilo chinês. De acordo com o primeiro artigo da Constituição da China, “A República Popular da China (RPC) é um Estado socialista sob a ditadura democrática popular liderada pela classe trabalhadora e com base na aliança de trabalhadores e camponeses”. Mas, como essa liderança política e o “poder popular” funcionam na prática?
Existem dois canais de representação política na China: o primeiro é a representação substantiva e material por meio do Partido Comunista da China (PCCh), governado por uma estrutura centralista democrática que funciona de cima para baixo. O segundo é um canal representativo procedimental por meio do CNP, regido por um processo eleitoral de baixo para cima. Vinculada a esses canais está a plataforma da CCPPC para consultas democráticas e amplas.


Destrinchando o sistema político da China

No sistema político da China, a liderança coletiva é estruturada da mesma maneira em todos os níveis — com exceção das Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e Macau — e é representada pelo Comitê do Partido (党委, dǎngwěi), o Congresso do Povo (人大, réndà), o governo (政府, zhèngfǔ) e a Conferência Consultiva Política (政协, zhèngxié). Juntas, são conhecidas como as “quatro instâncias” (四套班子, sìtào bānzi), e são classificadas de modo a refletir a ordem de hierarquia dessas quatro instituições políticas na China.

  1. Os Comitês do Partido são autoridades do PCCh estabelecidas nas áreas administrativas. Após o processo de Reforma e Abertura, a liderança do PCCh sobre o Estado foi em certa medida debilitada, especialmente nos assuntos governamentais. No entanto, a partir de seu 18º Congresso Nacional, o PCCh reafirmou o princípio político de defender e fortalecer sua liderança em todas as frentes, o que foi consagrado nas constituições do Partido e do país.
  2. Os Congressos do Povo são os órgãos do poder do Estado sob a liderança do PCCh, estabelecidos em 1954 para fornecer ao povo chinês um canal de representação formal e procedimental desde o nível local até o nacional. Os Congressos do Povo realizam a supervisão das operações governamentais (administrativas e judiciais), promulgam, alteram e supervisionam a implementação de leis e regulamentos, além de eleger e destituir funcionários do governo, revisar e aprovar os planos de trabalho e orçamentos do governo. Os Congressos são eleitos democraticamente, com os deputados de condados e municípios sendo nomeados diretamente e votados pelo povo. A nomeação de candidatos é um processo rigoroso que garante representatividade em função da demografia local (por exemplo, ocupação, local de residência, sexo, idade, afiliação política, etc.) e uma ampla participação das bases da população. A partir do nível de base, cada Congresso do Povo elege os membros do Congresso do nível seguinte. Os Congressos Populares são o principal meio através do qual se exerce a “ditadura democrática popular”, conforme definido pela Constituição.
  3. Os governos são autoridades administrativas sob o sistema dos Congressos do Povo, bem como os órgãos executivos dos Congressos. Isso significa que os funcionários do governo são nomeados e prestam contas ao povo por meio dos Congressos, que recebem e aprovam os planos de trabalho e as propostas apresentadas pelos governos.
  4. A Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC) é uma instituição chave para a cooperação multipartidária e consulta política, estabelecendo uma frente única do povo chinês sob a liderança do PCCh. A CCPPC é um órgão consultivo e de assessoramento político sem poder legislativo ou executivo, composto por representantes do PCCh, oito partidos democráticos, organizações de massa, minorias étnicas, outros setores da sociedade e pessoas convidadas. Esse é um pilar singular do sistema político socialista da China, e busca um amplo consenso popular em todos os setores da sociedade por meio da democracia consultiva, tanto no nível central quanto local.

A história das Duas Sessões no sistema político socialista da China

As Duas Sessões, realizadas anualmente no Grande Salão do Povo (人民大会堂, rénmín dà huìtáng) em Pequim, são um evento nacional de mobilização política. Essa é uma importante oportunidade para os líderes centrais trocarem ideias com autoridades locais e com representantes das bases. As reuniões nacionais são precedidas pelas Duas Sessões provinciais que resumem, planejam e tomam decisões sobre os assuntos locais e preparam as sessões nacionais.

Em setembro de 1949, na véspera do estabelecimento da República Popular da China (RPC), Mao Zedong convocou a primeira CCPPC, que contou com 662 participantes de 46 partidos e grupos políticos. Essa Conferência lançou as bases legais para o estabelecimento formal da RPC e definiu a natureza e o sistema político do Estado. Além disso, adotou resoluções nacionais, inclusive as referentes à bandeira, ao hino, à capital nacional e ao calendário, elegeu o chefe de Estado e os órgãos estaduais. Nos primeiros anos da RPC, como ainda não havia um sistema parlamentar oficial constituído, a CCPPC atuava como o órgão supremo de poder do Estado. Na convocação do primeiro CNP, que aprovou a Constituição da RPC em 1954, este tornou-se o parlamento oficial e o órgão supremo de poder do Estado, enquanto o CCPPC permanece, até hoje, como organização consultiva de frente única.

Como é o sistema multipartidário na China?

Muitas pessoas não sabem que a China tem um sistema político multipartidário. Os oito partidos democráticos patrióticos foram estabelecidos antes da fundação da RPC como parte da estratégia de frente única. Esses partidos continuam desempenhando um papel fundamental na função consultiva da CCPPC. Eles são:

  1. O Comitê Revolucionário do Kuomintang Chinês (中国国民党革命委员会, zhōngguó guómíndǎng gémìng wěiyuánhuì), formado a partir do Kuomintang de Esquerda que apoiou o PCCh antes da libertação da China em 1949.
  2. A Liga Democrática da China (中国民主同盟, zhōngguó mínzhǔ tóngméng), composta principalmente por personalidades culturais.
  3. A Associação Democrática Nacional de Construção da China (中国民主建国会, zhōngguó mínzhǔ jiànguó huì), composta principalmente por empresários e integrantes do setor de negócios.
  4. A Associação Chinesa para a Promoção da Democracia (中国民主促进会, zhōngguó mínzhǔ cùjìn huì), que representa principalmente os setores da Educação.
  5. O Partido Democrático dos Camponeses e Trabalhadores Chineses (中国农工民主党, zhōngguó nónggōng mínzhǔ dǎng), composto principalmente por médicos e profissionais de saúde.
  6. O Partido Zhi Gong da China (中国致公党, zhōngguó zhì gōng dǎng), composto principalmente por chineses que estavam no exterior e voltaram ao país, além de figuras representativas com conexões no exterior. Esse partido também atua como capítulo dos Hongmen na China, uma sociedade fraternal secreta chinesa mundial.
  7. A Sociedade Jiusan (九三学社, jiǔsān xuéshè), integrada principalmente por aqueles que fazem parte das áreas de ciência e tecnologia.
  8. A Liga Democrática de Autogoverno de Taiwan (台湾民主自治同盟, táiwān mínzhǔ zìzhì tóngméng), constituído por defensores do socialismo da região de Taiwan.

Qual é o papel das organizações de massa na China?

Outros representantes da CCPPC vêm da Liga da Juventude Comunista, da Federação dos Sindicatos, da Federação das Mulheres, da Federação da Juventude, da Federação da Indústria e do Comércio, da Associação de Ciência e Tecnologia, da Associação de Amizade dos Compatriotas de Taiwan, da Federação dos Chineses Retornados do Exterior e outras organizações de massa. Também estão incluídos representantes da arte e cultura, ciência e tecnologia, ciências sociais, comunidade econômica (incluindo representantes do setor produtivo, empresarial, etc), agricultura, educação, esportes, mídia, medicina e saúde, amizade internacional, bem-estar social e outros setores, bem como de grupos de minorias étnicas, as regiões de Hong Kong e Macau, comunidades religiosas, entre outros. As organizações de massa desempenham um papel importante em todos os níveis da sociedade. A Federação Nacional de Mulheres da China (FNMC), por exemplo, desempenhou um papel fundamental na campanha para erradicar a extrema pobreza na China, desde a base até os níveis nacionais. Em condados chave atingidos pela pobreza, elas realizaram pesquisas com mulheres rurais para entender suas condições, que foram incorporadas ao programa de Alívio da Pobreza do governo. A FNMC não apenas faz parte dos principais órgãos governamentais do país que supervisionam o programa de Alívio da Pobreza, como também mobilizou seu trabalho de base online e presencial para construí-lo, dos seus 900.000 grupos de bate-papo WeChat “irmãs” às 641.291 organizações de base em todo o país.

O que acontece antes e durante as Duas Sessões?

Todos os membros do Comitê Permanente do CNP e do Comitê Nacional da CCPPC têm mandato de cinco anos, acompanhando o mandato do Congresso Nacional do PCCh. A reunião do CNP é uma continuação do 20º Congresso Nacional do PCCh realizado em outubro de 2022, que elegeu os principais líderes do Partido, desde os membros do Comitê Central até o secretário-geral. No CNP, os deputados irão eleger o presidente e o vice-presidente do país, além de votar para aprovar a indicação do presidente para primeiro ministro do Conselho de Estado, seguindo a lista de indicados sugerida pelo Comitê Central do PCCh. Antes das Duas Sessões, a opinião pública é consultada sobre legislações específicas que passam pela análise de diversos setores da sociedade. Por exemplo, em 1º de janeiro de 2021, o primeiro Código Civil integral da China foi promulgado, com 1.200 artigos abrangendo propriedade, casamento, herança e direitos individuais, entre outras áreas. Durante um período de quatro anos, o processo legislativo recebeu 2.956 pareceres de 1.241 deputados em 13 rodadas de consulta com o CNP; ao longo de cinco anos, três rodadas de estudo centralizadas foram realizadas por representantes do CNP; e dez rodadas de consultas públicas online receberam 1,02 milhão de opiniões de mais de 420 mil cidadãos. A legislação foi finalmente votada e aprovada na sessão do CNP em 2020.

O atual CNP e CCPPC e suas conquistas

O mandato do 13º CNP começou em 2018 e termina em 2023. A composição dos 2.980 deputados é a seguinte: 2.119 (71,1%) são membros do PCCh e 861 (28,9%) integram os oito partidos democráticos ou são indivíduos apartidários. Desse total, 468 (15,7%) são trabalhadores, incluindo camponeses; 742 (24,9%) são mulheres; e 438 (14,7%) são de minorias étnicas. Na China, 91,1% da população pertence à etnia Han, enquanto os outros 55 grupos étnicos compreendem 8,9% da população, o que significa que sua representação das minorias étnicas no CNP é superior a sua proporção na população da China. 

O atual 13º Comitê Nacional da CCPPC, cujo mandato também vai de 2018 a 2023, é composto por 2.158 representantes dos mais diversos setores, sendo que 60,2% não são membros do PCCh. Os membros da CCPPC são indicados e recomendados por partidos e grupos, e são eleitos por meio de consulta ao PCCh.

Conclusão

As próximas Duas Sessões serão um importante evento político na China, especialmente porque são uma continuidade do 20º Congresso Nacional do PCCh e porque os dirigentes dos órgãos estatais serão eleitos. O sistema de Congressos do Povo é uma inovação e um pilar da governança socialista na China, que garante que o povo tenha representação e supervise seu governo. A CCPPC desempenha um papel complementar ao proporcionar ampla consulta e consenso na sociedade chinesa. Ambas plataformas políticas surgiram das condições e necessidades históricas da China e continuam evoluindo ao longo das últimas sete décadas de construção e governança socialista.

Assista e compartilhe a versão em vídeo deste artigo na nossa nova seção “Dongsheng Explica”.


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