Reservas internacionais da China: desafios passados e atuais de segurança | 17.05.2024

Reservas internacionais da China: desafios passados e atuais de segurança

Yu Yongding

Yu Yongding (余永定) é membro da Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS). Atuou como membro do Comitê Consultivo de Planejamento Nacional da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da República Popular da China desde 2004. Também atuou no Comitê de Política Monetária do Banco Popular da China, no Comitê Consultivo de Política Externa do Ministério de Relações Exteriores da RPC e no Comitê de Relações Exteriores da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. Suas principais áreas de pesquisa são macroeconomia, finanças internacionais e economia mundial.

O artigo “Reservas internacionais da China: desafios passados e atuais de segurança” (中国外汇储备的前世今生和当前面临的安全挑战) foi publicado originalmente na revista China Reform (中国改革), edição n. 4 (julho de 2022).

Em 28 de fevereiro de 2022, os Estados Unidos e seus aliados anunciaram o congelamento de US$ 300 bilhões em reservas internacionais do Banco Central da Federação Russa. Naquele período, as reservas internacionais da China totalizavam cerca de US$ 3,3 trilhões, incluindo mais de US$ 1 trilhão em títulos do Tesouro dos EUA.[1] Essa transformação das reservas internacionais em armas pelos EUA forçou a China a reexaminar a segurança de suas reservas cambiais e de seus ativos no exterior.

A segurança das reservas internacionais da China não é apenas uma questão financeira internacional, mas geopolítica e de gestão de ativos. Que medidas específicas a China deve tomar para garantir a segurança de suas reservas estrangeiras? Responder integralmente a essa pergunta está além da capacidade deste autor. Em vez disso, este artigo pretende apenas apresentar um esboço da origem das reservas cambiais da China, dos desafios enfrentados no atual período e como remediar a situação sob a perspectiva das finanças internacionais.

Do padrão-ouro à era pós-Bretton Woods

A dívida entre países é paga por meio da transferência de certos meios de liquidação internacionalmente aceitos, como é o caso do ouro, das moedas de reserva internacionais ou dos direitos especiais de saque (DES). A liquidez internacional é o estoque desses meios de liquidação. Os países que emitem moeda de reserva internacional (ou seja, os Estados Unidos) podem fornecer liquidez internacional ou reservas internacionais a outros países por meio do déficit da conta de capital ou do déficit da conta corrente.[2] No sistema de Bretton Woods, em que o dólar americano era atrelado ao ouro, os Estados Unidos forneciam liquidez internacional ou reservas internacionais para outros países por meio do déficit da conta de capital. De 1945 até o início da década de 1950, a Europa e o Japão imperativamente precisavam importar mercadorias dos Estados Unidos, mas não conseguiam obter dólares estadunidenses suficientes por meio de exportações e também devido à grave “escassez de dólares” em âmbito mundial. Na década de 1960, as economias europeias e a japonesa foram revitalizadas, e as balanças comerciais melhoraram. Enquanto isso, os EUA tiveram uma redução no superávit comercial de mercadorias e um aumento no déficit comercial de serviços (incluindo gastos militares no exterior), devido ao superaquecimento de sua economia doméstica e ao declínio de sua competitividade internacional. Ao mesmo tempo, por conta das taxas de juros europeias mais elevadas na Europa, o capital dos EUA fluiu para a Europa em grandes quantidades, desviando de controles e formando o mercado europeu de dólares. O déficit da conta de capital dos EUA aumentou rapidamente. Do ponto de vista da Europa e do Japão, enquanto seus déficits comerciais diminuíram, ainda havia grandes fluxos de dólares estadunidenses e, portanto, suas reservas cambiais em dólares aumentaram rapidamente. A “escassez de dólares” se transformou em um “excesso de dólares”. Do ponto de vista dos EUA, seu superávit comercial quase desapareceu (os EUA já estavam em déficit com alguns países), enquanto seu déficit de capital aumentou tanto que, para usar a terminologia da época, a balança internacional de pagamentos dos EUA se deteriorou drasticamente.

A intenção por trás de lastrear o dólar estadunidense ao ouro era garantir aos detentores de dólares que, embora esta fosse uma moeda fiduciária impressa pelos Estados Unidos sem valor inerente, ele poderia ser trocado por ouro a uma determinada taxa. Assim, eles poderiam possuir dólares estadunidenses com confiança. Sob o padrão dólar-ouro, o desequilíbrio internacional de pagamentos resultou na perda das reservas de ouro dos EUA. Embora o ouro possa ter permanecido nos cofres dos EUA, ele não era mais propriedade dos EUA. Os bancos centrais estrangeiros sempre podiam converter seus dólares estadunidenses excedentes em ouro e enviar o ouro de volta para seus países. Em 1971, os EUA tinham pouco mais de US$ 10 bilhões em reservas de ouro, em comparação com os mais de US$ 40 bilhões e US$ 30 bilhões mantidos por autoridades estrangeiras e pessoas físicas, respectivamente. Por fim, os Estados Unidos não podiam mais se dar ao luxo de manter a taxa de câmbio prometida de US$ 35 por onça de ouro (equivalente a 28,35g). Em 15 de agosto de 1971, o presidente dos EUA, Richard Nixon, anunciou o fechamento da “janela de ouro”. O sistema de Bretton Woods entrou em colapso.

Entretanto, a contradição inerente ao uso da moeda fiduciária de um país como moeda de reserva internacional não desapareceu no sistema pós-Bretton Woods. Como âncora do sistema monetário internacional, o dólar estadunidense deve permanecer estável. Essa estabilidade é multidimensional. Seu poder de compra, por exemplo, deve ser estável. Por um lado, o dólar estadunidense precisa desempenhar o papel de um bem público global e deve servir aos interesses globais. Por outro lado, o dólar estadunidense é impresso pelo governo dos EUA. A manutenção da estabilidade do poder de compra real do dólar depende fundamentalmente da política interna do governo dos EUA, que não tem obrigação de sacrificar seus próprios interesses nacionais em prol do interesse público global.

Com o declínio dos Estados Unidos como potência econômica esmagadora na era pós-Bretton Woods, a contradição entre o status do dólar estadunidense como moeda nacional (que serve aos interesses dos EUA) e seu status como moeda de reserva internacional (que atende aos interesses globais) se manifesta no fato de que os EUA precisam fornecer liquidez internacional ao mundo, ou uma moeda de reserva, principalmente por meio de déficits em conta corrente (déficits comerciais). À medida que o Produto Interno Bruto (PIB) mundial cresce, cresce também a moeda de reserva internacional necessária para o comércio global e para as transações financeiras. Quanto mais moeda de reserva os EUA fornecem ao mundo, maior deve ser o déficit comercial dos EUA. Em outras palavras, os Estados Unidos fornecem moeda de reserva global por meio de notas promissórias (NP). O crescimento da economia global exige que os EUA emitam cada vez mais NPs, e quanto mais forem emitidas, maior será a dívida externa dos EUA.

Entretanto, apesar de os EUA terem uma enorme dívida líquida, os economistas não esperavam que sua balança de pagamentos sobre a renda de investimentos seria positiva. Os EUA não só não precisam pagar juros, como também recebem uma grande quantidade deles. A razão fundamental pela qual o dólar estadunidense permaneceu estável – apesar de os EUA serem o maior devedor do mundo – é que a demanda do resto do mundo pelo dólar como moeda de reserva também tem aumentado. Isso significa que outros países estão dispostos a emprestar dinheiro aos EUA e a financiar o déficit comercial dos EUA. Dessa forma, a distância entre o investimento doméstico e a poupança nos Estados Unidos é compensada pela poupança estrangeira, e a pressão da inflação e da desvalorização do dólar estadunidense é bastante reduzida. Com a emissão indiscriminada de dólar pelos EUA para compensar a ausência de poupança interna, se não houvesse uma forte demanda de outros países por reservas internacionais em dólares, o dólar já teria colapsado há muito tempo.

Desde a crise das hipotecas subprime em 2008, os Estados Unidos têm implementado políticas fiscais e monetárias extremamente expansionistas. A forte demanda por governos e investidores estrangeiros por títulos do Tesouro e outros ativos dos EUA criou as condições externas necessárias para uma inflação baixa e um crescimento mais rápido nos EUA por mais de dez anos. No entanto, os EUA acumularam passivos externos líquidos de US$ 14 trilhões (2020) e uma dívida nacional de US$ 28 trilhões (2021), com índices em relação ao PIB de cerca de 67% e 122%, respectivamente.[3] A situação continua se deteriorando. De acordo com o Escritório de Orçamento do Congresso dos EUA, a relação entre a dívida nacional e o PIB dos EUA ultrapassará 200% até 2051.[4] O próprio governo dos EUA reconheceu a insustentabilidade de sua situação fiscal.

Ninguém sabe por quanto tempo a confiança dos investidores no dólar e nos títulos do Tesouro dos EUA poderá ser mantida diante da piora da situação da dívida do país. Ninguém sabe quando o mercado perderá a confiança no dólar estadunidense e esta moeda entrará em colapso. Não seria prudente levar em conta essa possibilidade na tomada de decisões?

Implicações do congelamento das reservas internacionais da Rússia pelos EUA

Após a eclosão do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, os Estados Unidos congelaram US$ 300 bilhões em reservas internacionais do Banco Central da Rússia em 72 horas. Isso minou seriamente a credibilidade internacional dos EUA e abalou a base de crédito do sistema financeiro internacional dominado pelo Ocidente. Que país pode ter certeza de que os EUA não irão congelar suas reservas internacionais de maneira semelhante no futuro? O uso das reservas internacionais como arma pelos EUA excedeu as piores estimativas dos economistas sobre a segurança das reservas internacionais da China. O valor das reservas internacionais da China não apenas sofrerá perdas devido à inflação dos EUA, à desvalorização do dólar e à queda dos preços ou inadimplência dos títulos do Tesouro, mas também poderá rapidamente ser eliminado por motivos geopolíticos.

Os Estados Unidos irão tomar medidas tão extremas contra as reservas internacionais da China? Já em 2013, o principal comentarista econômico do Financial Times, Martin Wolf, escreveu que, no caso de um conflito, os EUA poderiam congelar os ativos cambiais da China.[5] Mesmo que ambos os lados sofressem grandes perdas, as perdas da China seriam ainda maiores. A China poderá enfrentar em breve a questão sobre adesão ao embargo ao petróleo e ao gás russos e às sanções financeiras abrangentes contra a Rússia. Até o momento, os EUA não impuseram um embargo abrangente de petróleo e gás à Rússia, e a China e a Índia ainda têm permissão para comprar estas fontes de energia. Entretanto, quando os EUA acreditarem que a Europa pode se livrar de sua dependência do petróleo e do gás russos, eles poderão apontar o dedo para a China e a Índia. A continuidade da compra de petróleo e gás russos pela China provavelmente se tornará um motivo para os EUA agirem contra as reservas internacionais do país asiático ou imporem sanções às instituições financeiras chinesas.

As enormes reservas internacionais da China e as contramedidas do país

A China acumulou suas enormes reservas internacionais durante um longo período de tempo por meio de “superávits duplos” – superávit da conta corrente e superávit da conta de capital. Por qualquer padrão, as reservas internacionais de US$3,3 trilhões da China (excluindo os US$ 496,8 bilhões de Hong Kong e os US$548,4 bilhões de Taiwan) excedem em muito a exigência de adequação de reservas reconhecida internacionalmente. O segundo, terceiro e quarto maiores detentores de reservas cambiais do mundo são o Japão, com US$1,3 trilhão, a Suíça, com US$1 trilhão, e a Índia, com US$569,9 bilhões.[6] Há apenas três países no mundo com reservas internacionais de mais de um trilhão de dólares estadunidenses (China, Japão e Suíça). As reservas internacionais da China são quase três vezes maiores que as do Japão, que está em segundo lugar.

Como o rendimento sobre as reservas internacionais é extremamente baixo, se a proporção de reservas em ativos no exterior for muito alta, a taxa geral de retorno sobre os ativos no exterior será inevitavelmente muito baixa. Dos US$9 trilhões em ativos da China no exterior, os ativos de reserva representam 37% do total. Destes ativos de reserva, os títulos do Tesouro dos EUA representam 32%.[7] Deve-se observar que, para melhorar a taxa de retorno das reservas internacionais, a Administração Estatal de Câmbio, um órgão administrativo do Banco Popular da China, e outros órgãos relevantes, levaram em conta não apenas a segurança e a liquidez, mas também a taxa de retorno em sua alocação de ativos. Além dos títulos do Tesouro dos Estados Unidos e de outros países, os ativos de reserva da China também incluem títulos de organizações internacionais, títulos de governos locais, investimentos em private equity e investimentos em políticas, como a Belt and Road Initiative (BRI). Esses esforços devem ser produtivos. Mas, de qualquer forma, devido às exigências de segurança e liquidez das reservas internacionais, uma proporção excessiva de reservas em ativos no exterior levará inevitavelmente a um rendimento menor desses ativos. Além disso, uma grande proporção das reservas internacionais da China é “emprestada” por meio da introdução de capital estrangeiro, em vez de “ganhar” por meio do superávit comercial. Em comparação com o rendimento do investimento das reservas internacionais, o custo da dívida das reservas cambiais “emprestadas” é extremamente alto. Uma pesquisa realizada em 2008 pelo escritório do Banco Mundial em Pequim mostrou que o rendimento do investimento das empresas estadunidenses na China é de 33%, em comparação com 22% das empresas estrangeiras em geral. Ao mesmo tempo, o retorno do investimento em títulos do Tesouro dos EUA foi inferior a 3%. Essa situação também é uma das razões para os retornos de investimento negativos da China, apesar de seus US$2 trilhões em ativos líquidos no exterior. A posição da balança de pagamentos chinesa e de seus investimentos no exterior contrasta fortemente com a dos Estados Unidos. Conforme mencionado anteriormente, este último terá quase US$200 bilhões em receita de investimentos em 2021, apesar de ser um devedor líquido de US$15 trilhões. Olhando para o mundo, a Argentina e a Rússia são os únicos países que estão no mesmo barco que a China.

Na sequência da abertura da China, a escassez de moeda estrangeira foi o principal gargalo para o crescimento do país. Embora tenha havido parcialidade e reação exagerada, em última análise, foi a medida certa para a China desenvolver vigorosamente o comércio de processamento para obter divisas, introduzindo ativamente o investimento estrangeiro direto e desvalorizando drasticamente o renminbi chinês (RMB) de uma só vez. Entretanto, após a turbulência financeira asiática em 2003, a China, devido à “fobia de valorização”, adiou a ligeira valorização do RMB até 2005. A consequência disso foi que, por um lado, o superávit comercial da China aumentou acentuadamente e, por outro lado, a bolha de ativos domésticos e a forte expectativa de valorização do RMB levaram a um grande fluxo de “dinheiro quente”.[8] O superávit da conta de capital da China já ultrapassou o superávit comercial e se tornou a principal fonte de novas reservas internacionais. É justo dizer que o fato de a China não ter deixado o RMB se valorizar a tempo e sua falta de flexibilidade na taxa de câmbio foram as condições que levaram ao acúmulo excessivo de reservas internacionais do país.

A China deve ter dois objetivos principais na reestruturação de sua estrutura de ativos e passivos no exterior e da estrutura da balança de pagamentos. Primeiro, melhorar a estrutura dos ativos e passivos da China no exterior e aumentar o retorno sobre seus ativos líquidos no exterior. Para isso, a China deve reduzir a participação das reservas cambiais em seus ativos no exterior. Segundo, melhorar a segurança dos ativos no exterior da China, especialmente suas reservas cambiais. Nas condições atuais, a China deve reduzir seu estoque de reservas cambiais para, pelo menos, o nível internacionalmente reconhecido de adequação dessas reservas. Qual é a quantidade de reservas cambiais que um país deve manter? Em geral, isso depende do tamanho das importações (ou exportações) do país, do tamanho da dívida externa de curto prazo, do tamanho de outros passivos de títulos e da oferta monetária mais ampla (M2).[9] Ao mesmo tempo, também é necessário considerar o regime de taxa de câmbio e os controles de capital do país. Por exemplo, se o país tiver uma taxa de câmbio flutuante e controles de capital, o índice de adequação das reservas cambiais do país pode ser significativamente reduzido.

A possibilidade de os Estados Unidos congelarem e confiscarem os ativos da China no exterior não pode ser descartada. No entanto, a maior probabilidade é que os EUA ajam contra a China usando sua lista de SDNs (cidadãos especialmente designados, pela sigla em inglês) para atingir indivíduos e entidades sancionados (semelhante às sanções da extinta Lista Parte 561 contra o Irã). Para lidar com essa possibilidade, a China precisa melhorar sua infraestrutura financeira. Para seu estoque existente de reservas cambiais, as medidas que a China deve considerar incluem:

1. Aumento das participações em outras formas de ativos e redução das participações em títulos do Tesouro dos EUA. No passado, foram apresentados argumentos em favor da diversificação de moedas das reservas internacionais da China (em direção ao euro e ao yen) devido a preocupações com a depreciação do dólar estadunidense. Entretanto, nas condições geopolíticas atuais, uma diversificação desse tipo pode não ser sensata.

2. Acelerar a construção de infraestrutura financeira independente dos EUA, incluindo sistemas de liquidação, compensação e mensagens. Fazer uso total das reservas tecnológicas e da potência da China no campo das tecnologias digitais para aprimorar sistemas de pagamentos internacionais que se adaptam à nova tendência do comércio digital.

3. Reduzir a posse de títulos do Tesouro dos EUA de acordo com as regras do mercado. Nos últimos anos, tem sido relatado que os bancos centrais de muitos países estão vendendo títulos do Tesouro dos EUA. Essas atividades são puramente comerciais e, portanto, os EUA não têm motivos para fazer objeções.

Qual é o papel da internacionalização do RMB?

Com a deterioração da situação geopolítica internacional, a internacionalização do RMB voltou a ser um tema quente. Em 2008, a crise das hipotecas subprime dos EUA eclodiu e a falência da Fannie Mae e da Freddie Mac, que detinham quantidades significativas de dívidas do Tesouro dos EUA e de agências governamentais, provocou grande ansiedade no governo chinês. Em 2009, Zhou Xiaochuan, então presidente do Banco Popular da China (BPC), o banco central do país, propôs que os Direitos Especiais de Saque (DES) substituíssem o dólar estadunidense como moeda de reserva internacional. Entretanto, essa proposta foi abortada devido à oposição dos Estados Unidos. Assim, a China encontrou outra maneira de reduzir o risco de seus ativos no exterior: internacionalizar o RMB. No entanto, o processo de internacionalização do RMB foi prejudicado quando a expectativa de valorização do RMB se transformou em depreciação. Por algum tempo após 2015, a China teve que apertar os controles de capital devido a sérias saídas e fugas de capital.

Yi Gang, sucessor de Zhou na presidência do BPC, enfatizou em várias ocasiões que “a internacionalização do RMB deve ser orientada pelo mercado, e o banco central não tomará a iniciativa de promovê-la”.[10] A afirmação do governador Yi é correta e está de acordo com a experiência histórica de internacionalização do RMB até o momento. De fato, de 2009 a 2014, foram realizadas discussões detalhadas e minuciosas sobre os custos e benefícios da internacionalização do RMB e o roteiro a ser seguido pela China nas esferas econômicas domésticas e internacionais. Desde então, essas ideias foram testadas na prática. Por exemplo, quando a China pressionou pela liquidação de importações em RMB no passado, o dólar estadunidense foi substituído pelo RMB para pagar as importações quando a China tinha um grande superávit em conta corrente. Como resultado, as reservas cambiais da China em dólares estadunidenses aumentaram em vez de diminuírem. Em outro exemplo, esperava-se que os não residentes aumentassem suas participações em depósitos e títulos do Tesouro em RMB em grandes quantidades, mas, depois que a expectativa de valorização do RMB desapareceu em 2014, o interesse dos não residentes em manter depósitos e outros ativos em RMB também desapareceu em grande parte. A experiência nos diz que, embora a internacionalização do RMB seja uma causa digna, o processo deve ser orientado pelo mercado. A China não deve priorizar os benefícios de curto prazo ou a gratificação instantânea, nem deve tentar ajudar no crescimento colhendo fruta verde no cacho.

Sempre que possível, a vantagem do comprador ou a vantagem do vendedor deve ser usada para promover preços e liquidação denominados em RMB. Por exemplo, a China é o maior comprador de muitas commodities e, sem dúvida, seria um benefício para o país se essas commodities fossem denominadas em RMB. Impulsionada pelo mercado, a internacionalização do RMB de fato teve um progresso sólido, se não espetacular. De modo geral, o surgimento do RMB como uma moeda internacional e, em particular, como uma moeda de reserva internacional, pode trazer enormes benefícios para a China.

No entanto, em geral, a internacionalização do RMB não deve ter prioridade sobre as considerações comerciais. Por exemplo, quando um investidor chinês compra um título estrangeiro no mercado internacional de capitais, a moeda em que o título é denominado e liquidado é determinada pelo mercado. Para os investidores chineses, se o RMB estiver em uma trajetória de valorização de longo prazo, é preferível que o título seja denominado em RMB em vez de dólares estadunidenses. Ao mesmo tempo, se uma empresa chinesa estiver em uma posição de devedora, é preferível que o título seja denominado e liquidado em uma moeda em desvalorização.

A China também precisa promover a internacionalização de seus mercados de capital. Entretanto, o objetivo dessa promoção, especialmente do mercado de títulos, não é internacionalizar o RMB, mas melhorar a eficiência da alocação de recursos financeiros da China. O mercado sabe melhor o que está acontecendo em nível micro. A escolha da moeda nas transações comerciais e financeiras deve ser deixada a critério das empresas e instituições financeiras. À medida que a força econômica da China aumenta e seus mercados financeiros se tornam mais sofisticados, o RMB será naturalmente escolhido cada vez mais como a moeda internacional de denominação e liquidação.

O nível mais alto de internacionalização do RMB será quando se tornar uma moeda de reserva para outros países. O RMB pode ser fornecido a outros países por meio de déficits em conta corrente e superávits em conta de capital. A China paga seu déficit comercial em RMB e o banco central do país com superávit comercial adquire e mantém o RMB no mercado internacional de câmbio, usando o RMB para comprar títulos do tesouro chinês ou determinados títulos chineses seguros e com liquidez. Dessa forma, o RMB se torna a moeda de reserva do país superavitário. A China, por sua vez, pode usar o status do RMB como moeda de reserva internacional e uma nota de crédito para obter acesso a recursos.

A China também pode promover o RMB como moeda de reserva por meio de exportações de capital. De modo geral, quando a China fornece RMB a outros países por meio da exportação de capital, o país importador de capital usará esse RMB para importar mercadorias da China e o RMB retornará à China. O país importador de capital irá registrar um déficit comercial chinês e um superávit equivalente na conta de capital em seu balanço de pagamentos, mas suas reservas cambiais não irão aumentar. Se o país não usar o RMB para comprar produtos chineses, o RMB poderá sair do país por meio da conta de capital, ou poderá ser vendido ao banco central do país e usado para comprar títulos do Tesouro chinês ou outros ativos financeiros seguros e com liquidez, formando assim as reservas cambiais do país.

Entretanto, para os países receptores das exportações de capital chinês, essas reservas de moeda estrangeira em RMB seriam emprestadas da China, e não obtidas por meio de excedentes de exportação. Importar capital da China, mas não usá-lo para comprar bens e serviços chineses, e sim para manter capital chinês de curto prazo com baixos retornos, pode ser uma alocação de recursos equivocada. Como resultado, os destinatários das exportações de capital chinês minimizarão essa parte das reservas cambiais de RMB. Em outras palavras, embora a China possa fornecer RMB a outros países por meio de exportações de capital, a disposição de outros países em converter o RMB correspondente em títulos de curto prazo chineses ou títulos do Tesouro (caso estes últimos estejam disponíveis) – formando, assim, as reservas internacionais de RMB desses países – pode ser limitada.

Em suma, para que o RMB se torne uma moeda de reserva internacional, a China deve atender a uma série de pré-condições, incluindo o estabelecimento de um mercado de capitais sólido (especialmente um mercado de títulos do tesouro profundo e com alta liquidez), um regime de taxa de câmbio flexível, fluxos de capital transfronteiriços livres e crédito de longo prazo no mercado. Em resumo, a China precisa superar o chamado “pecado original” nas finanças internacionais e conseguir emitir títulos do Tesouro internacionalmente em RMB.[11] Caso contrário, será difícil para o RMB se tornar uma moeda de reserva internacional e a sua internacionalização permanecerá incompleta.

A internacionalização do RMB pode aumentar a segurança das reservas cambiais da China? Se essa pergunta for considerada no contexto de um sistema econômico global complexo, a resposta deve ser sim. Entretanto, no curto prazo e em termos de impacto direto, mesmo que as reservas internacionais da China consistissem inteiramente de ativos em RMB, sua segurança não mudaria substancialmente. Entre as reservas internacionais da China, há mais de US$1 trilhão em títulos do Tesouro dos EUA. Se os Estados Unidos não tiverem a intenção de pagar o principal (a quantidade nominal inicial) e os juros de acordo com o contrato original, o que a China pode fazer? Nada. Supondo que o Tesouro dos EUA emita 7 trilhões de RMB em títulos do Tesouro e que a China possua 7 trilhões de RMB em vez de US$ 1 trilhão em reservas internacionais, comprando esse título em RMB emitido pelos EUA; se os EUA não tiverem a intenção de fazer os pagamentos do serviço da dívida dos títulos do Tesouro dos EUA que foram acordados para serem denominados em RMB, o dilema que a China enfrenta permanecerá o mesmo que se os ativos fossem denominados em dólares estadunidenses. Isso porque a chave do problema não está na moeda em que as reservas internacionais da China são denominadas e liquidadas, mas no fato de a China dever dinheiro aos Estados Unidos ou vice-versa. Independentemente de sua denominação e liquidação, as reservas internacionais da China são uma dívida dos EUA com a China. É o dinheiro que os EUA devem à China. Portanto, a segurança das reservas internacionais da China depende do fato de os EUA honrarem seus compromissos de serviço da dívida e, caso não o façam, de a China poder obrigar os EUA a fazê-lo. Se a China não puder garantir que os EUA cumpra com tal compromisso, não restará outra opção a não ser reduzir gradualmente suas reservas internacionais. É claro que denominar e liquidar determinadas transações (por exemplo, importações) em RMB pode levar a uma redução nas reservas internacionais, fortalecendo assim, indiretamente, a segurança das reservas internacionais da China. É interessante observar que, no início de dezembro de 1950, quando os EUA anunciaram um severo “bloqueio” e “embargo” contra a China, ela se esforçou para “roubar” e “comprar” mercadorias dos países ocidentais. Quando as Nações Unidas aprovaram a resolução de embargo contra a China em 1951, o país já havia usado todas as suas economias em moeda estrangeira.

Em resumo, embora a internacionalização do RMB seja uma meta que vale a pena perseguir, trata-se de um processo de longo prazo. A água distante não saciará a sede imediata. Diante dos desafios geopolíticos, a internacionalização do RMB também terá um efeito limitado na proteção dos atuais ativos da China no exterior.

O que a China pode fazer agora para enfrentar os desafios com suas reservas internacionais é “ajustar o calibre”. Em outras palavras, é melhor agir tarde do que nunca. Como escreveu um dos maiores poetas chineses, Tao Yuanming (365–427 d.C.): “Sabendo que o que fiz no passado não pode ser corrigido, ainda posso evitar meus erros no futuro”. É fundamental entender e implementar adequadamente a política estratégica de promover um novo paradigma de desenvolvimento com a circulação doméstica como base, com a circulação doméstica e internacional se reforçando mutuamente. Isso irá acelerar a transformação da estratégia de desenvolvimento da China, concretizar o giro para a circulação doméstica e consolidar esta demanda como a força motriz do crescimento econômico.

O economista britânico John Maynard Keynes disse certa vez: “Se você deve cem libras ao seu banco, você tem um problema. Mas se você deve um milhão, quem tem um problema é o banco”. No atual ambiente geopolítico perigoso, se um país não puder proteger seus direitos como credor, ele deve se esforçar para evitar ao máximo se tornar um credor. Em face das possíveis sanções financeiras dos EUA em um futuro próximo, as autoridades chinesas responsáveis pela tomada de decisões devem analisar vários cenários possíveis e desenvolver contramedidas preventivas e responsivas.

Referências bibliográficas

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Wolf, Martin. “China Must Not Copy the Kaiser’s Errors” [A China não deve copiar os erros de Kaiser]. Financial Times, 3 de dezembro de 2013. https://www.ft.com/content/672d7028-5b83-11e3-a2ba-00144feabdc0.

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Notas do autor

1. Ver “Annual Report 2021” [Relatório Anual 2021]. Pequim: State Administration of Foreign Exchange of the People’s Republic of China, https://www.safe.gov.cn/en/2020/1221/2163.html; “Major Foreign Holders of Treasury Securities” [Principais proprietários de títulos do Tesouro], Washington, DC: Departamento do Tesouro dos EUA, 15 de março de 2023, https://ticdata.treasury.gov/Publish/mfh.txt.

2. Em macroeconomia internacional, a balança de pagamentos registra todas as transações feitas entre entidades de um país com entidades do resto do mundo. Essas transações consistem em importações e exportações de bens, serviços, capital e pagamentos de transferências, como ajuda externa e remessas. Um déficit na conta de capital mostra que mais dinheiro está saindo da economia, junto com um aumento na propriedade de ativos estrangeiros. A conta corrente é definida como a soma da balança comercial (exportações de bens e serviços menos importações, renda líquida do exterior e transferências correntes líquidas). Um déficit em conta corrente ocorre quando o valor total de bens e serviços que um país importa excede o valor total de bens e serviços que ele exporta.

3. Sobre o passivo externo líquido dos EUA, ver Gian Maria Milesi-Ferretti, “The US Is Increasingly a Net Debtor Nation. Should We Worry?” [Os EUA são cada vez mais uma nação devedora líquida. Devemos nos preocupar?], The Brookings Institution, 14 de abril de 2021, https://www.brookings.edu/articles/the-us-is-increasingly-a-net-debtor-nation-should-we-worry/. Sobre a dívida nacional dos EUA, ver “2021 Financial Report of the United States Government” [Informe financeiro do governo dos EUA 2021]. Washington, DC: Departamento do Tesouro dos EUA, fevereiro de 2022. https://home.treasury.gov/system/files/136/2021-FRUSG-FINAL-220217.pdf.

4. “The 2021 Long-Term Budget Outlook” [Perspectiva orçamentária de longo prazo 2021]. Washington, DC: Departamento de Orçamento do Congresso dos EUA, março de 2021, https://www.cbo.gov/publication/57038.

5. Martin Wolf, “China Must Not Copy the Kaiser’s Errors” [A China não deve copiar os erros do Kaiser], Financial Times, 3 de dezembro de 2013, https://www.ft.com/content/672d7028-5b83-11e3-a2ba-00144feabdc0.

6. Reservas internacionais até o final de 2021. Fontes: Administração Estatal de Câmbio da República Popular da China, Autoridade Monetária de Hong Kong, Banco Central de Taiwan, Ministério das Finanças do Japão, Banco Nacional da Suíça, Banco da Reserva da Índia.

7. “2021 Annual Report” [Relatório anual de 2021], Pequim: Administração Estatal de Câmbio da República Popular da China, https://www.safe.gov.cn/en/2020/1221/2163.html

8. Dinheiro quente é o termo usado nos mercados financeiros para se referir ao deslocamento de fundos ou capital de um país para outro, com a finalidade de obtenção de ganhos rápidos devido a grandes diferenças nas taxas de juros e/ou à antecipação de diferenças cambiais.

9. Várias medidas são usadas para avaliar a oferta monetária (ou seja, a quantidade total de dinheiro em circulação) em uma economia. O Banco Mundial define essas medidas da seguinte forma: “A mais estreita, M1, engloba a moeda em poder do público e os depósitos à vista em bancos. O M2 inclui o M1 mais depósitos a prazo e de poupança em bancos que exigem aviso prévio para saque. O M3 inclui o M2, bem como vários instrumentos do mercado monetário, como certificados de depósito emitidos por bancos, depósitos bancários denominados em moeda estrangeira e depósitos em instituições financeiras que não sejam bancos”. Ver Glossário de metadados, Banco Mundial, disponível em: https://databank.worldbank.org/metadataglossary/world-development-indicators/series/FM.LBL.BMNY.ZG. (acesso em 20 de março de 2024)

10. “人民银行副行长易纲:人民币国际化应由市场驱动” [Yi Gang, Vice-Governador do Banco Popular da China: A internacionalização do RMB deve ser dirigida pelo mercado], Conselho de Estado da República Popular da China, 14 de outubro de 2012, https://www.gov.cn/jrzg/2012-10/14/content_2242995.htm.

11. Na literatura financeira internacional, “pecado original” é um termo que se refere a “uma situação em que a moeda nacional não pode ser usada para empréstimos no exterior ou para empréstimos de longo prazo, mesmo internamente”. Ver Barry Eichengreen e Ricardo Hausmann, “Exchange Rates and Financial Fragility” [Taxas de câmbio e fragilidade financeira], NBER Working Paper 7418. Cambridge, MA: National Bureau of Economic Research, novembro de 1999. Disponível em: https://www.nber.org/system/files/working_papers/w7418/w7418.pdf.

O que impulsiona o debate sobre a desdolarização no BRICS? | 17.05.2024


O que impulsiona o debate sobre a desdolarização no BRICS?

Ding Yifan

Ding Yifan (丁一凡) é economista e ex-vice-diretor do Instituto de Desenvolvimento Mundial do Centro de Pesquisa de Desenvolvimento do Conselho de Estado da China (2000-2014). Ele é membro sênior do Taihe Institute e ex-bolsista visitante da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins. Escreveu extensivamente sobre desenvolvimento, globalização econômica, hegemonia do dólar estadunidense, economia baseada no conhecimento e a crise da dívida europeia para publicações em chinês, inglês e francês.

“O que impulsiona o debate sobre a desdolarização no BRICS” (金砖国家高调协商 “去美元化” 的背后) foi originalmente publicado por Wenhua Zongheng (文化纵横) como uma edição especial da New Media (janeiro de 2024).

Antes da cúpula do BRICS de 2023 em Joanesburgo, na África do Sul, houve muita discussão entre os países membros sobre se as negociações em torno do desenvolvimento de uma moeda do BRICS entraria na pauta junto com a aceleração da desdolarização, ou seja, a promoção da cooperação monetária e a redução do uso do dólar estadunidense. No final, os líderes dos países não discutiram especificamente a questão de uma moeda do BRICS, mas aprovaram uma resolução sobre a expansão do número de membros do grupo. No entanto, tanto do ponto de vista histórico quanto realista, promover a desdolarização é do interesse dos países do BRICS.

O impacto da hegemonia do dólar estadunidense sobre os países do BRICS

Historicamente, os países originais do BRICS sofreram com o papel hegemônico do dólar estadunidense. Ao longo de sua história, o Brasil foi explorado pelo capital britânico e estadunidense, com o surgimento de vários métodos de exploração. Após o colapso do sistema de Bretton Woods, o dólar estadunidense passou a flutuar livremente. Qualquer valorização ou desvalorização substancial do dólar significou um desastre para o Brasil. O capital estadunidense também pôde entrar e sair livremente do mercado acionário da Índia, aumentando os preços de determinadas ações e vendendo-as a descoberto. Isso provocou enormes flutuações no mercado de ações indiano e fez com que algumas importantes empresas indianas sofressem com excessos e escassez de liquidez de capital.

Enquanto isso, a África do Sul, a Rússia e a China foram submetidas a sanções financeiras dos EUA. Os EUA impuseram multas e sanções a empresas financeiras sul-africanas por suposta lavagem de dinheiro, bem como por violarem sanções econômicas impostas pelos EUA contra outros países. Há inúmeros exemplos de sanções dos EUA contra o governo russo e empresas russas. Após o início da guerra na Ucrânia, os Estados Unidos congelaram e confiscaram os ativos em dólares estadunidenses de diversos cidadãos russos ricos, congelaram US$ 300 bilhões em ativos do Banco Central da Rússia e ameaçaram confiscá-los para subsidiar o esforço de guerra da Ucrânia. É claro que, como a Rússia ameaçou retaliar da mesma forma e confiscar os ativos ocidentais na Rússia, isso não foi além de uma “guerra de palavras”.

No passado, os Estados Unidos acusaram a China de ser um manipulador de moeda por suas grandes participações em ativos em dólares estadunidenses e, inclusive, impuseram sanções à China com base na alegação de que o aumento acentuado das exportações chinesas se devia à manipulação da taxa de câmbio do renminbi. Entretanto, são os EUA que se beneficiam desproporcionalmente dessa relação. Por um lado, os EUA importam um grande número de produtos manufaturados da China e se beneficiam dos preços mais baixos destes produtos para reduzir sua taxa de inflação. Por outro lado, a China recebe uma grande quantidade de dólares estadunidenses, mas não tem onde investi-los e, portanto, não tem escolha a não ser comprar títulos do tesouro dos EUA, fornecendo assim capital barato ao país. Apesar dessa dupla vitória, os EUA pretendem exercer ainda mais pressão sobre a China. Dessa forma, os EUA pretensamente reclamam da chamada manipulação da taxa de câmbio da China enquanto, na realidade, querem forçar o país asiático a aceitar a valorização do renminbi e abrir seu mercado financeiro, criando assim uma bolha de ativos financeiros importados. Até o momento, esses esforços foram em vão, já que a China não cedeu à pressão dos EUA.

Além dos países originais do BRICS, os novos membros da organização também tiveram muitos problemas com o dólar estadunidense. A Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Irã são todos produtores e exportadores de petróleo e gás natural. Em 1971, em meio à crise do dólar estadunidense, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, fechou a janela para a livre conversibilidade de dólares estadunidenses em ouro, de modo que o dólar pudesse se desvalorizar acentuadamente. O dólar estadunidense é a principal moeda de precificação do petróleo e sua desvalorização fez com que os preços do petróleo disparassem. Naquela época, os países produtores de petróleo não tinham capacidade de extrair e refinar o petróleo. O desenvolvimento dos campos petrolíferos era gerenciado por empresas britânicas e estadunidenses, que pagavam aos países produtores de petróleo apenas uma taxa de extração fixa anual, cotada em dólares estadunidenses. Com a desvalorização do dólar e a disparada dos preços do petróleo, a distribuição dos lucros tornou-se injusta. Os países produtores de petróleo exigiram um novo acordo, mas as empresas petrolíferas britânicas e norte-americanas recusaram. Após a eclosão da Guerra Árabe-Israelense em 1973, os países produtores de petróleo lançaram conjuntamente um embargo de petróleo contra Israel e seus aliados. Somente após o primeiro choque do petróleo é que os países produtores do combustível fóssil recuperaram seu poder de barganha em relação às empresas petrolíferas ocidentais.

O dólar tem impedido a cooperação internacional

Nessa época em que o mundo está caminhando para uma ordem multipolar, a hegemonia do dólar estadunidense dificulta a cooperação internacional entre muitos países. Desde sua “guerra ao terror”, os Estados Unidos descobriram que, em comparação com as guerras comerciais tradicionais, é muito mais eficaz usar a hegemonia do dólar para impor sanções financeiras aos países que violam a “ordem baseada em regras” liderada pelos EUA. Essa lógica foi detalhada por Juan Zarate, ex-funcionário dos EUA durante o governo de George W. Bush, em seu livro de 2013, Treasury’s War: The Unleashing of a New Era of Financial Warfare [Os tesouros da guerra: a deflagração de uma nova era de guerra financeira]. Nas últimas décadas, os EUA têm usado o dólar como uma arma para impor sanções financeiras a países que não lhe agradam.

Os Estados Unidos se baseiam em suas próprias leis nacionais para justificar a imposição de sanções a empresas e governos estrangeiros em todo o mundo, uma prática conhecida como “jurisdição de braço longo”. Além disso, se os atores não sancionados não seguirem as sanções dos EUA contra um país e ousarem desafiar a vontade de Washington, eles também poderão ser alvo de sanções secundárias. O sistema de transações em dólares estadunidenses tornou-se um instrumento utilizado pelos EUA para determinar quem cumpriu – ou desafiou – suas proibições de fazer negócios com países sancionados, assim como para impor sanções onerosas àqueles que não agirem conforme suas regras. Muitos bancos europeus foram multados em bilhões de dólares pelo governo dos EUA por supostas violações das sanções estadunidenses.

Nos últimos anos, houve um número crescente de casos em que os Estados Unidos abusaram do uso de sanções financeiras. Como resultado, os países com grandes quantidades de ativos financeiros em dólares passaram a se preocupar com a segurança de longo prazo de seus ativos. O caso do Irã é exemplar. Em 2015 foi firmado o acordo nuclear entre o Irã e os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas – Estados Unidos, Reino Unido, Rússia, França e China – assim como com a Alemanha e a União Europeia. Segundo o acordo, todas as sanções econômicas contra o Irã relacionadas à energia nuclear seriam suspensas e o país iria poder se engajar mais em cooperações internacionais. Após o acordo, a cooperação entre a Europa e o Irã progrediu sem problemas, com muitas empresas europeias fortalecendo seus laços com o Irã e realizando acordos em euros. No entanto, depois que Donald Trump chegou ao poder nos EUA, ele encerrou o acordo nuclear com o Irã, impôs novamente sanções ao país e forçou as empresas europeias a se retirarem do mercado iraniano. Essas práticas provocaram temores em muitos países do Oriente Médio sobre seu destino. Historicamente, os EUA forneceram garantias de segurança a muitos países da região, em troca da obrigação de que esses países comprassem grandes quantidades de ativos financeiros dos EUA para fornecer capital barato aos Estados Unidos. Se as relações entre o Irã e os países árabes do Oriente Médio melhorassem e a “segurança” dos EUA não fosse mais necessária, será que esses países continuariam comprando tantos ativos em dólares estadunidenses? O anúncio descarado de Washington de que confiscaria os ativos em dólares estadunidenses da Rússia, após o início da guerra na Ucrânia, apenas intensificou as preocupações entre os países árabes. Ao contrário da Rússia, esses países não possuem armas nucleares, nem se equiparam às capacidades militares da Rússia. Se os EUA usassem sua “jurisdição de braço longo” para congelar ou confiscar seus ativos em dólares, eles não teriam poder para revidar.

Essas experiências apresentam questões importantes para os países do BRICS, muitos dos quais têm sido submetidos a diferentes graus de sanções dos EUA. Se os países do BRICS não conseguirem desenvolver um mecanismo de transações que não seja baseado no dólar estadunidense para a cooperação internacional, futuramente muitos outros países poderão ser alvo de sanções dos EUA.

Da mesma forma, apesar dos êxitos da Nova Rota da Seda (NRS), lançada pela China há dez anos, muitos países do Sul Global caíram novamente na armadilha do dólar estadunidense. Isso se deve ao fato de que o Federal Reserve aumentou drasticamente as taxas de juros em 2023, o que provocou uma fuga de capitais nesses países e tornou insustentável a taxa de juros da dívida em dólares. Para garantir a continuação dos êxitos da NRS no futuro, a desdolarização é a única opção.

O dólar carrega riscos financeiros significativos

Mesmo na perspectiva da proteção de ativos financeiros, é arriscado para qualquer país manter muitos ativos denominados em dólares estadunidenses. Esse risco é inerente à moeda fiduciária. Na era dos metais preciosos, a base para a emissão de moeda eram as reservas de metais preciosos. Se houvesse uma saída excessiva de ouro e prata, isso causaria uma crise monetária. Após o colapso do sistema de Bretton Woods, o último bastião do padrão ouro foi destruído e o mundo entrou na era da moeda fiduciária. A base da moeda legal é o crédito do governo. Em outras palavras, a dívida do governo é a base da moeda. Quanto mais dívida o governo emite, mais moeda entra em circulação no mercado. Entretanto, o nível da dívida pública deve corresponder à receita fiscal do governo e a dívida deve corresponder ao tamanho da economia. Caso contrário, a sustentabilidade da dívida não poderá ser garantida e haverá uma crise da dívida. A crise da dívida destruirá a confiança dos detentores de moeda, desencadeando assim uma crise cambial.

Desde o início do século XXI, a dívida do governo dos EUA aumentou, ultrapassando qualquer registro histórico. Quando George W. Bush deixou o cargo, a dívida do governo dos EUA era superior a US$10 trilhões. Quando Barack Obama deixou o cargo, a dívida do governo dos EUA havia subido para US$20 trilhões. Durante os quatro anos de Donald Trump no poder, a dívida do governo dos EUA alcançou US$26 trilhões. Finalmente, nos três anos da atual administração de Joe Biden, a dívida do governo dos EUA ultrapassou US$34 trilhões. Em 2020, a relação entre a dívida do governo dos EUA e o Produto Interno Bruto (PIB) ultrapassou 130%. Como o Federal Reserve elevou as taxas de juros, as taxas de juros dos títulos do Tesouro dos EUA aumentaram rapidamente. Em 2024, os pagamentos de juros do governo dos EUA sobre a dívida pública ultrapassam US$1 trilhão, superando o orçamento militar oficial.[1] Esse alto nível de endividamento gera a preocupação de que o governo dos EUA entre em inadimplência mais cedo ou mais tarde.

Após a crise financeira internacional de 2008, os economistas estadunidenses Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff publicaram This Time Is Different: Eight Centuries of Financial Folly [Dessa vez é diferente: Oito séculos de loucura financeira](2009). O livro revela uma profunda verdade histórica: quando o ônus da dívida dos países soberanos se tornou muito pesado, todos eles, sem exceção, recorreram à inflação e à desvalorização da moeda para amortizar sua dívida e escapar da crise. Quando a dívida do governo dos EUA atinge um nível tão alto, alguém ainda acredita que o país será capaz de escapar desse destino histórico?

De fato, o governo dos EUA tem um longo histórico de quebra de contrato. Em 1971, a dívida dos EUA disparou e o dólar estadunidense estava em crise. O presidente Nixon decidiu dissociar a taxa de câmbio do dólar estadunidense do preço do ouro. O dólar estadunidense sofreu uma forte desvalorização e o sistema financeiro internacional de Bretton Woods entrou em colapso. O pano de fundo dessa inadimplência do dólar estadunidense foi a Guerra do Vietnã. Os crescentes gastos militares dos Estados Unidos com a guerra e o aumento acentuado da dívida causado pelo déficit fiscal fizeram com que os países da Europa Ocidental perdessem a confiança no dólar estadunidense. Da mesma forma, após a eclosão da guerra na Ucrânia, os EUA continuaram alocando fundos para fornecer ajuda militar ao país. O déficit orçamentário dos EUA também continuou a subir, o ônus financeiro continuou aumentando e a dívida pública rapidamente ultrapassou o teto estabelecido pelo Congresso. As negociações entre o governo Biden e o Congresso para aumentar o teto da dívida se tornaram uma constante no cenário político dos EUA. Desde outubro de 2023, os EUA se envolveram em mais uma “guerra por procuração” [proxy war], apoiando a campanha militar de Israel em Gaza com gastos militares cada vez maiores. Como os EUA participam de duas guerras por procuração simultâneas, cabe perguntar: por quanto tempo o governo dos EUA poderá financiar suas incursões militares?

Podemos ver que existem muitos motivos para os países do BRICS optarem por fortalecer a cooperação monetária e acelerar o processo de desdolarização. O desenvolvimento de tecnologias modernas de comunicação e transações, como o blockchain, também proporcionou um caminho mais seguro para a desdolarização dos países do BRICS.

A história serve como um espelho

Embora os países do BRICS estejam ansiosos para desdolarizar, como eles podem atingir esse objetivo? A experiência histórica pode nos fornecer alguns insights. Após o colapso do sistema de Bretton Woods na década de 1970, a desvalorização do dólar estadunidense causou inflação global. Embora o valor do dólar estadunidense tenha se tornado instável, ele continua sendo a moeda mais usada no mundo devido à inércia no uso da moeda. Quando muitos países estão acostumados a usar uma determinada moeda no comércio internacional e nos investimentos internacionais, eles ficam menos dispostos a mudar seus hábitos. Além disso, após a primeira crise do petróleo, o então Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, engajou-se na “diplomacia do vaivém”, visitando continuamente os países produtores de petróleo do Oriente Médio. Por fim, ele convenceu a Arábia Saudita a definir o dólar estadunidense como a única moeda para o preço do petróleo e a Arábia Saudita, por sua vez, persuadiu outros países exportadores de petróleo a fazer o mesmo. Os Estados Unidos concederam a esses países, que detêm grandes quantidades de dólares estadunidenses, o privilégio financeiro de comprar diretamente títulos do tesouro dos EUA no mercado primário. Os países produtores de petróleo do Oriente Médio aceitaram a ideia e ela tem sido extremamente lucrativa. A negociação de futuros de petróleo é o maior mercado de commodities do mundo. Quando o petróleo passou a ser cotado em dólares estadunidenses, criou-se uma enorme demanda. Outras negociações no mercado de futuros de commodities imediatamente copiaram o mercado de futuros de petróleo e usaram dólares estadunidenses como preço. Dessa forma, a demanda por dólares tornou-se cada vez mais importante.

O dólar estadunidense ascendeu à posição de maior moeda de reserva e maior moeda comercial do mundo. Entretanto, como o dólar estadunidense perdeu seu lastro em ouro, seu valor nominal tornou-se instável. A valorização ou desvalorização do dólar estadunidense causou grandes flutuações de preço no mercado futuro de commodities e teve um impacto significativo em outros países importadores. Nesse contexto, e em resposta à crise do dólar estadunidense, os países da Europa Ocidental criaram o Sistema Monetário Europeu em 1979. Inicialmente, eles optaram por flutuar suas moedas em conjunto em relação ao dólar estadunidense, dentro de um determinado limite, um sistema conhecido como “serpente flutuante”. Porém, como o dólar estadunidense continuou a desvalorizar, esse sistema não conseguiu resolver o problema da inflação importada dos Estados Unidos. Após um período de prática, os países da Europa Ocidental descobriram que a Alemanha Ocidental tinha a menor taxa de inflação e, portanto, o valor do marco alemão era o mais estável. Consequentemente, o marco alemão foi usado como a moeda lastro do Sistema Monetário Europeu, ao qual as moedas de outros países da Europa Ocidental estavam atreladas. Com essa prática, os países da Europa Ocidental introduziram fatores anti-inflação da Alemanha Ocidental e a inflação nos países da Comunidade Europeia se estabilizou.

Atualmente, os Estados Unidos estão enfrentando uma crise semelhante. A cooperação monetária entre os países do BRICS também exige que eles encontrem uma moeda lastro que não seja o dólar estadunidense. Juntos, os países do BRICS possuem as maiores reservas de recursos e energia do mundo e a maior capacidade de produção. A troca de produção industrial e de recursos pode ser realizada por meio de um sistema de transações que não seja em dólares estadunidenses. Desde que os países do BRICS estabeleçam um sistema de transações que não seja em dólares estadunidenses, seu desenvolvimento econômico estará livre do impacto negativo das flutuações do dólar. Entretanto, as moedas da maioria dos membros do BRICS ainda estão, mais ou menos, atreladas ao dólar estadunidense, e suas taxas de câmbio também são instáveis. Se os países do BRICS quiserem se envolver em cooperação cambial, as taxas de câmbio instáveis entre suas moedas serão um grande obstáculo a ser superado. Os países do BRICS escolherão o renminbi como seu lastro? Como as taxas de inflação nos Estados Unidos e na Europa já são altas, seus bancos centrais aumentam constantemente as taxas de juros para conter a inflação, mas o efeito não é o ideal. Por outro lado, na China, a taxa de inflação tem se mantido muito estável e baixa há bastante tempo, e as pessoas não falam sobre a ameaça de deflação. Portanto, como moeda, o poder de compra do renminbi é garantido, especialmente pela forte capacidade industrial da China, que pode atender à demanda por uma variedade maior de produtos manufaturados industriais.

Os países do BRICS são representantes da ascensão coletiva do Sul Global. Se os países do BRICS conseguirem realizar a cooperação monetária de maneira exitosa e superar as restrições do dólar estadunidense, cada vez mais países do Sul Global participarão desse mecanismo de cooperação monetária futuramente. O sistema financeiro global será transformado, constituindo um aspecto importante das “grandes mudanças inéditas no último século”.

Notas del autor

1. O gasto militar dos EUA em 2022 foi de US$ 1,537 trilhões, mais do que o dobro do que é reconhecido pelo governo estadunidense. Ver Gisela Cernadas e John Bellamy Foster, “Actual US Military Spending Reached $1.53 trillion in 2022 – More than Twice Acknowledged Level: New Estimates Based on US National Accounts”, Monthly Review, 1 de novembro de 2023, https://monthlyreview.org/2023/11/01/actual-u-s-military-spending-reached-1-53-trillion-in-2022-more-than-twice-acknowledged-level-new-estimates-based-on-u-s-national-accounts/; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Hiperimperialismo: um novo estágio decadente perigoso, Estudos sobre os dilemas contemporâneos no. 4, 23 de janeiro de 2024, https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-sobre-dilemas-contemporaneos-4-hiper-imperialismo/.

Da redução de riscos à desdolarização: a moeda do BRICS e o futuro da ordem financeira internacional | 17.05.2024


Da redução de riscos à desdolarização: a moeda do BRICS e o futuro da ordem financeira internacional

Gao Bai

Gao Bai (高柏) é professor de sociologia na Duke University. Seus principais campos de pesquisa incluem sociologia econômica, sociologia histórica comparada, economia política internacional e teoria organizacional. Seus trabalhos publicados incluem Economic Ideology and Japanese Industrial Policy: Developmentalism from 1931 to 1965 e Japan’s Economic Dilemma: The Institutional Origins of Prosperity and Stagnation.

“Da redução de riscos à desdolarização: a moeda do BRICS e o futuro da ordem financeira internacional” (从去风险到去美元化:金砖货币与国际金融秩序的未来) foi publicado originalmente no número 5 da Wenhua Zongheng (文化纵横), em outubro de 2023.

A redução de riscos (derisking) está substituindo a dissociação (decoupling) como a palavra-chave para descrever os pontos críticos da política e da economia internacional nos dias de hoje. Os países ocidentais estão enfatizando a minimização de riscos do comércio e dos investimentos com a China no nível das cadeias de suprimentos. Já os países não ocidentais estão reduzindo os riscos de seus laços econômicos com o Ocidente, em resposta às sanções econômicas impostas pelo Ocidente contra a Rússia, decretadas após a eclosão da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A recusa dos países em desenvolvimento em se alinhar com a política ocidental de guerra e sanções contra a Rússia levou ao crescimento do discurso sobre o papel político do Sul Global no cenário internacional. A crescente influência econômica e política do Sul Global foi destacada na cúpula do BRICS de 2023 na África do Sul, onde a Argentina, o Egito, a Etiópia, o Irã, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos (EAU) foram convidados a participar da organização, em meio a dezenas de candidatos. O BRICS parece destinado a se tornar uma importante plataforma política e econômica internacional que representa os interesses do Sul Global, um acontecimento que irá reformatar profundamente a ordem internacional.

As sanções econômicas ocidentais contra a Rússia tiveram um impacto significativo nas economias em desenvolvimento do Sul Global em três aspectos principais. Primeiro, as sanções ocidentais em matéria de energia e a dissociação da Rússia interromperam as relações relativamente estáveis de oferta e demanda que existiam há muito tempo no mercado internacional de energia. Com o fim da cooperação energética entre a Rússia e a Europa, o setor energético russo foi forçado a se voltar para o mercado da Ásia-Pacífico, exportando petróleo e gás a preços baixos. A resposta estratégica da Rússia, por sua vez, exerceu muita pressão sobre outros produtores de energia, gerando uma concorrência acirrada no mercado da Ásia-Pacífico. Essa concorrência está alterando o cenário geopolítico e o equilíbrio de poder político e econômico internacional. Em segundo lugar, as sanções econômicas ocidentais contra a Rússia levaram à reestruturação da cadeia global de suprimentos. A retirada de empresas e fornecedores ocidentais do mercado russo forçou a Rússia a encontrar novas fontes para uma série de produtos e componentes, proporcionando novas oportunidades comerciais para a entrada de empresas não ocidentais no mercado russo. Em terceiro lugar, as sanções financeiras ocidentais congelaram as reservas cambiais da Rússia e confiscaram os bens de alguns cidadãos russos ricos. Essas medidas geraram preocupações em muitos países sobre o risco de manter ativos denominados em dólar, o que os levou a transferi-los para fora dos países desenvolvidos e a buscar ativamente alternativas ao dólar estadunidense. Assim, isso se tornou um dos principais impulsionadores da atual tendência de desdolarização.

Este artigo analisa três aspectos dos esforços do Sul Global para a minimização de riscos e discute seu impacto sobre o desenvolvimento futuro da ordem econômica internacional. Primeiro, os esforços de minimização de risco do Sul Global são sintetizados pela desdolarização. Os países do Sul Global estão tentando reduzir o uso do dólar no comércio internacional, fortalecendo a soberania monetária e a segurança econômica nacional. Esse movimento está separando o sistema de comércio internacional do sistema financeiro internacional, que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, tem sido fortemente ligado por uma moeda principal, o dólar estadunidense. No passado, como moeda de reserva dos países no sistema financeiro internacional, o dólar estadunidense era usado não apenas para a precificação de commodities, mas também para transações comerciais internacionais e empréstimos interbancários, aumentando consideravelmente a eficiência e a conveniência das transações no sistema comercial multilateral regido pelo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC). No entanto, a transformação do dólar estadunidense em instrumento de guerra, operada pelo Ocidente, fez com que os países do Sul Global buscassem transações em moedas locais. Essa dinâmica poderá subverter o sistema de pagamentos e liquidações do comércio internacional dominado pelo dólar, enfraquecendo ou até mesmo acabando com o status do dólar como a principal moeda global, o que irá mudar a ordem financeira internacional.

Segundo, embora no debate sobre a desdolarização muitos defendam a substituição do dólar estadunidense pelo renminbi chinês como a nova principal moeda global, é improvável que isso aconteça no curto prazo. A maioria dos defensores das transações com o renminbi são grandes exportadores de energia que têm grandes superávits comerciais com a China. A internacionalização do renminbi tende a decolar no futuro. No entanto, devido a uma série de condições objetivas, é improvável que o renminbi substitua o dólar estadunidense no curto prazo, a menos que o uso do dólar estadunidense como arma seja intensificado ou que sua credibilidade seja destruída por uma grave crise de dívida nos EUA. Atualmente, é mais provável que o status global do dólar seja enfraquecido pelos vários esforços de minimização de risco dos países do Sul Global e que o sistema financeiro internacional passe do domínio do dólar estadunidense para a coexistência de várias moedas importantes, incluindo o dólar, o renminbi, o euro e a moeda do BRICS.

Terceiro, em uma situação de coexistência entre várias moedas importantes, o maior denominador comum para uma ação conjunta entre os países do Sul Global é estabelecer um valor de referência para transações em suas moedas locais e uma plataforma de câmbio para apoiar essas transações. A demanda por esse valor de referência abre uma oportunidade para a criação de uma moeda do BRICS. A maioria dos países do Sul Global não deseja escolher lados em questões político-econômicas globais, mas busca um mundo multipolar e a criação de plataformas internacionais que sejam mais iguais e justas e que representem melhor seus interesses, para que possam se proteger contra os riscos da atual ordem econômica internacional. Ao defender a desdolarização, esses países pretendem mitigar os vários riscos apresentados pelo dólar estadunidense, e não confrontá-lo. Portanto, a perspectiva tradicional, ou seja, de que o sistema financeiro internacional deve ter uma moeda dominante – e, como o dólar não é mais viável, ele deve ser substituído pelo renminbi – pode ser inadequada para compreender o cerne da situação global, já que o mundo enfrenta “grandes mudanças inéditas no último século” (百年未有之大变局, bǎinián wèi yǒu zhī dà biànjú).

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia está mudando profundamente a ordem internacional: por um lado, os países ocidentais tentam romper com a ordem econômica internacional unificada, liderada pelos Estados Unidos no pós-Guerra Fria, e retornar ao cenário de coexistência dos dois sistemas confrontados entre si, como foi durante o período da Guerra Fria. Por outro lado, os países do Sul Global, por meio da minimização de riscos, começaram a colocar em prática a construção de um mundo multipolar, o que no passado era uma conversa apenas da boca para fora. Seja a minimização de riscos da China e da Rússia pelo Ocidente ou a minimização de riscos do Ocidente pelos países do Sul Global, a característica comum é o enfraquecimento da ordem econômica internacional dominada pelo Ocidente e a promoção de um mundo mais multipolar.

O impacto das sanções ocidentais contra a Rússia

Esta seção analisa a relação entre a minimização de riscos, a desdolarização e a moeda do BRICS, e o impacto que as sanções econômicas ocidentais contra a Rússia tiveram sobre essa dinâmica no Sul Global.

(i) Mercados internacionais de energia

Após a eclosão da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, tanto a Europa quanto os Estados Unidos proibiram as importações de petróleo bruto, produtos refinados de petróleo e carvão da Rússia, o que levou a um declínio acentuado nas exportações de energia russa para a Europa. As exportações de gás da Rússia caíram 25,1% em 2022, devido à suspensão das compras de gás russo pelos países europeus e à sabotagem do gasoduto Nord Stream 2. A dissociação energética da Europa forçou a Rússia a acelerar seus esforços nos mercados da Ásia-Pacífico. Em 2022, as importações chinesas de gás russo por gasoduto e de gás natural liquefeito (GNL) aumentaram 2,6 vezes e 2,4 vezes, chegando a US$ 3,98 bilhões e US$ 6,75 bilhões, respectivamente.[1]

Tendências semelhantes ocorreram no setor de petróleo. Antes da guerra, em 2021, 8% das importações de petróleo dos EUA vinham da Rússia; após a eclosão da guerra, os EUA proibiram as importações de energia russa.[2] Em dezembro de 2022, a União Europeia (UE), os países do Grupo dos Sete (G7) e a Austrália impuseram um embargo ao petróleo russo e um teto de preço às exportações russas. Isso forçou a Rússia a reduzir significativamente o preço de seu petróleo e a mudar seu foco de exportação para a região da Ásia-Pacífico. Índia, China e Turquia, que são grandes consumidores de energia, aumentaram significativamente suas importações de petróleo bruto russo.[3] Em 2022, as importações chinesas de petróleo bruto russo aumentaram 8%, tornando a Rússia o segundo maior fornecedor de petróleo bruto para a China.[4] As importações da Índia de petróleo russo tiveram o maior aumento, crescendo mais de 9% nos meses seguintes à imposição do embargo ocidental em dezembro de 2022. Além disso, em 2022, as importações da China de carvão da Rússia aumentaram 20%, para 68,06 milhões de toneladas, enquanto as importações da Índia de carvão térmico da Rússia cresceram quase 15%, para 161,18 milhões de toneladas.[5]

(ii) Reestruturação da cadeia de suprimentos

A exportação de muitas tecnologias de origem estadunidense para a Rússia e Belarus foi restrita. Os exportadores dos EUA devem solicitar licenças para exportar uma série de tecnologias para a Rússia, incluindo computadores, equipamentos de comunicação, sensores, lasers e tecnologias de navegação, aeroespacial e de propulsão. As sanções contra a Rússia também restringem a exportação de produtos de outros países que usam essas tecnologias estadunidenses.[6] Desde fevereiro de 2022, os impactos das sanções nas exportações europeias para a Rússia totalizaram 43,9 bilhões de euros, incluindo produtos relacionados a computadores quânticos, semicondutores avançados, componentes eletrônicos e software, maquinário e equipamentos de transporte, equipamentos, tecnologia e serviços do setor de energia, bens e tecnologias do setor de aviação e espacial, tecnologia de navegação marítima e de radiocomunicação, bens de uso dual (militar e civil), bens de luxo, entre outros.[7]

A saída em massa de empresas norte-americanas, europeias, japonesas e sul-coreanas da Rússia criou oportunidades para empresas de outros países entrarem no mercado russo. Por exemplo, a participação da Samsung e da Apple no mercado russo de telefones celulares, somadas, era de 53% no final de 2021, e caiu para apenas 3% no final de 2022. Enquanto isso, a participação dos telefones celulares chineses no mercado russo cresceu de 40%, no final de 2021, para 95%, no final de 2022.[8] Uma tendência semelhante foi observada no mercado automobilístico russo. Entre 2021 e 2022, a BMW e a Mercedes-Benz, da Alemanha, desapareceram do mercado russo, enquanto a Chery, a Great Wall Motor e a Geely da China cresceram e passaram a estar entre as dez marcas de carros de passeio mais vendidas. Apesar da forte contração geral do mercado automotivo russo devido às sanções econômicas, as vendas, na Rússia, de carros fabricados na China cresceram 7% em 2022.[9]

(iii) Prevenção de riscos financeiros

Após o início da guerra, o Ocidente expulsou a Rússia do SWIFT, sistema internacional de comunicações bancárias. Os bancos europeus e estadunidenses congelaram até 300 bilhões de euros das reservas cambiais do banco central russo e 21,5 bilhões de euros de ativos pertencentes a indivíduos russos sancionados.[10] Até então, o dólar estadunidense era considerado globalmente como uma “moeda de refúgio”, mas essa confiança foi quebrada pelas sanções financeiras ocidentais contra a Rússia, que constituíram de fatoum “calote seletivo”.[11] Muitos países em desenvolvimento, inclusive aliados tradicionais dos EUA, como a Arábia Saudita, começaram a temer que, caso se encontrem do lado oposto dos EUA em uma disputa geopolítica, seus ativos denominados em dólares não estarão seguros. Países como a Índia também argumentaram que as sanções contra a Rússia levaram à volatilidade dos preços dos alimentos e da energia, prejudicando os pobres do mundo. Como a relação entre os EUA e a China tem se tornado cada vez mais tensa, também crescem as preocupações com relação às possíveis crises que, no futuro, poderiam ser desencadeadas pelas sanções dos EUA contra a China. Embora o dólar estadunidense seja a moeda mais popular do mundo para transações comerciais, a China é a maior nação comercial do planeta e, diante dessa incerteza política e econômica internacional, alguns países argumentam que seria melhor reduzir o uso do dólar estadunidense no comércio internacional do que reduzir o comércio com a China.[12]

O caso da Suíça ilustra como o comportamento adotado por outros países para evitar os riscos financeiros impostos pelas sanções contra a Rússia pode, de fato, prejudicar o setor financeiro do Ocidente. Antes da guerra, cerca de 80% das commodities russas eram negociadas por meio da Suíça, totalizando US$ 11 bilhões, enquanto 30% dos ativos privados russos mantidos no exterior estavam localizados neste mesmo país. Desde o início da guerra, a Suíça abandonou sua neutralidade e participou das sanções financeiras da UE contra a Rússia. Somente o Credit Suisse congelou US$ 19 bilhões em ativos russos, mais de um terço de todos os ativos russos na Suíça, enquanto o governo suíço congelou mais de US$ 8 bilhões em ativos russos e bielorrussos. As autoridades suíças também exigiram que os bancos locais informassem os depósitos de mais de 100 mil francos suíços pertencentes a indivíduos russos e os proibiram de aceitar novos depósitos de indivíduos russos que excedessem este limite. Em novembro de 2022, 7,5 mil pessoas estavam na lista, envolvendo 46,1 bilhões de francos suíços em depósitos.[13] Devido a essas sanções, pessoas ricas de todo o mundo começaram a transferir seus fundos para fora da Suíça. Assim, o Credit Suisse, por exemplo, sofreu um grave desinvestimento de clientes, chegando a US$ 119 bilhões somente no último trimestre de 2022. A crise do desinvestimento foi agravada pelo colapso subsequente de vários bancos dos EUA e pela recusa do maior acionista do Credit Suisse, o Saudi National Bank, em aumentar seu aporte de capital. Como resultado, o Credit Suisse ficou insolvente e acabou sendo adquirido pelo UBS, a pedido do governo suíço. O banqueiro suíço Josef Ackermann observou que o governo de seu país havia colocado em risco o Estado de Direito e os direitos de propriedade ao fazer com que os indivíduos pagassem pelas ações do governo russo. Os cidadãos de outros países presumiram que o governo suíço faria o mesmo no futuro para obrigá-los a pagar pelos erros cometidos pelos governos de seus países. O confisco dos bens de indivíduos russos foi devastador para o setor financeiro suíço.[14]

Sanções financeiras e comércio de permuta

O impacto que as sanções econômicas ocidentais contra a Rússia tiveram sobre o Sul Global está interligado em três áreas: mercados de energia, cadeias de suprimentos e finanças internacionais. Dessa forma, o comportamento de minimização de riscos do Sul Global está intimamente relacionado a essas três áreas.

Depois que o Ocidente baniu a Rússia do sistema SWIFT, em março de 2022, as exportações de energia russas não puderam mais ser liquidadas em dólares ou euros. A Rússia respondeu exigindo que os países hostis comprassem a energia russa em rublos. Se esses países não tivessem rublos, teriam de abrir contas em bancos russos para depositar dólares e euros, que seriam convertidos em rublos para pagamentos. Como os países europeus não conseguiram se desvincular completamente do gás russo imediatamente, durante a maior parte de 2022, eles tiveram que converter seus euros e dólares em pagamentos em rublos. Dessa forma, a taxa de câmbio do rublo teve forte sustentação por um tempo. Em um determinado momento, seu valor foi ainda mais alto do que antes da guerra.

A transformação do dólar estadunidense em arma e as contramedidas da Rússia deram aos países do Sul Global uma nova perspectiva sobre a relação entre o sistema financeiro internacional e o sistema comercial internacional. Primeiro, o valor do dólar como moeda para acordos comerciais internacionais tornou-se menos importante para os países que estão enfrentando sanções econômicas ocidentais e passando por grandes crises geopolíticas ou guerras. Isso porque, mesmo possuindo dólares, esses países não podem comprar o que querem. Em segundo lugar, nesses ambientes extremos, um país só pode negociar com outros países para obter recursos importantes se tiver energia, recursos naturais ou capacidade de fabricação industrial.[15] Em terceiro lugar, para reduzir o risco de não poder fazer compras diante de sanções ou guerras, é preciso construir fortes relações de cooperação em tempos de paz com uma variedade de economias que possam fornecer bens importantes. Por fim, o comércio entre os principais produtores de energia, recursos e produtos manufaturados, se realizado em suas próprias moedas, pode permitir que esses países reduzam significativamente sua dependência do dólar estadunidense.

Com a mudança das exportações de energia da Rússia para a Ásia-Pacífico e a intensificação da concorrência entre os exportadores de energia para esse mercado regional, são vários os motivos pelos quais os principais exportadores de energia e recursos estão expandindo sua cooperação com a China. Em primeiro lugar, como países que mantêm superávits comerciais com a China, esses grandes exportadores de energia e recursos também importam grandes quantidades de produtos manufaturados da China. Atendendo a interesses estratégicos, esses países estão mais dispostos a realizar o comércio utilizando o renminbi. Por exemplo, a China assinou, ou pretende assinar, acordos para estabelecer o comércio bilateral em renminbi com os principais países de recursos energéticos – como Arábia Saudita, Rússia, Brasil, Iraque, Irã e Argentina – todos com dezenas de bilhões de dólares em superávit comerciais com a China e que podem usar o renminbi para comprar mais produtos manufaturados e infraestrutura diretamente do país asiático. Em segundo lugar, em condições extremas, pode haver intercâmbio nesse comércio bilateral. Dessa forma, para esses países ricos em energia, a cooperação com a China, uma potência manufatureira, pode reduzir o risco de não conseguir obter suprimentos vitais caso enfrentem uma grande crise internacional. Em terceiro lugar, por meio da cooperação com a China, esses países podem combinar o comércio bilateral de recursos energéticos com suas necessidades de desenvolvimento econômico de médio e longo prazo, obtendo da China o investimento, a tecnologia e a infraestrutura necessárias para o desenvolvimento industrial, especialmente os setores de alta tecnologia.

Em dezembro de 2022, o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) e a China realizaram sua primeira cúpula conjunta na Arábia Saudita. A declaração dessa cúpula marcou o início de uma mudança de paradigma em termos de cooperação estratégica entre os países do Golfo e os principais países fora da região. Desde a Segunda Guerra Mundial, a cooperação estratégica entre os países do Golfo e os Estados Unidos assumiu a forma de uma troca de “petróleo por segurança”: os países do Golfo garantem o fornecimento de petróleo aos EUA, que, por sua vez, fornecem segurança aos países, incluindo a venda de grandes quantidades de armas; os países do Golfo usam suas receitas de petróleo para comprar um grande número de títulos do tesouro dos EUA e investir em ativos denominados em dólares, criando assim um sistema de petrodólares.[16] Quando os EUA começaram a explorar cada vez mais suas reservas offshore de petróleo e gás, bem como o petróleo de xisto, não só reduziram drasticamente sua dependência da energia do Oriente Médio – reduzindo, assim, o valor estratégico da região do Golfo para os EUA – como também se tornaram um concorrente dos países do Golfo no mercado internacional de energia.[17] Antes da guerra entre Rússia e Ucrânia, os Estados Unidos e os países do Golfo já haviam começado a se distanciar. Após a eclosão da guerra, essa tendência foi acelerada pela separação da Europa da energia russa e a mudança da Rússia para o mercado de energia da Ásia-Pacífico. Diferentemente da cooperação de petróleo por segurança entre os países do Golfo e os Estados Unidos, a cooperação entre os países do Golfo e a China se baseia na “cooperação total no setor de energia”. Ou seja, a China investe nos setores de energia downstream dos países do Golfo, enquanto os países do Golfo usam sua experiência para cooperar com a China no desenvolvimento de seus setores de energia upstream, incluindo a exploração e extração conjunta de petróleo e gás no Mar do Sul da China. O antigo paradigma “petróleo por armas” está sendo substituído por um novo paradigma “petróleo por desenvolvimento”.[18] Esse novo paradigma está refletido nos recentes acordos de cooperação entre a China e países como a Arábia Saudita, a Rússia e o Brasil.[19]

A ordem econômica internacional dominada pelos EUA é baseada em finanças, com ênfase no domínio do dólar estadunidense como moeda de reserva mundial. A nova ordem econômica internacional que está sendo promovida pelo Sul Global, incluindo a China, baseia-se no comércio – troca de energia e recursos por bens manufaturados e infraestrutura. Essa nova ordem econômica internacional será baseada menos em moedas e mais em commodities, o que levará a taxas de inflação mais altas no Ocidente. Durante o governo Nixon, o então secretário do Tesouro dos EUA, John Connally, fez a famosa observação: “O dólar é nossa moeda, mas é problema de vocês”. De acordo com o ex-analista do Credit Suisse, Zoltan Poszar, isso agora está sendo substituído por um novo lema: “Nossas commodities, seu problema”.[20]

Renminbi ou moeda comum?

Para onde está indo a tendência de desdolarização do Sul Global? No debate atual, muitos acreditam que o renminbi da China irá substituir o dólar americano, enquanto outros têm grandes esperanças no desenvolvimento de uma moeda comum lastreada no petróleo. Ambas as rotas têm seus desafios.

Passamos a analisar, primeiramente, a internacionalização do renminbi. De uma perspectiva geopolítica, isso é amplamente visto como uma grande ameaça ao dólar estadunidense. Não há dúvida de que os EUA se opõem à internacionalização do renminbi e pressionam outros países sobre essa questão. Um exemplo recente é a Arábia Saudita, que indicou que considerará o uso de outras moedas nas transações de seu comércio de energia, mas ainda não emitiu uma declaração oficial sobre o assunto. Enquanto isso, em março e abril de 2023, o governo indiano se opôs explicitamente a que empresas do país realizassem as importações de energia da Rússia em renminbi. Em julho, sob pressão da Rússia, a Índia teve que colocar uma pequena parte das importações de energia em renminbi. No entanto, isso ocorreu porque, sob as sanções econômicas do Ocidente, a Rússia exportou petróleo para a Índia a um preço muito baixo e, portanto, os enormes benefícios que a Índia obteve superaram suas preocupações geopolíticas sobre a influência crescente do renminbi. Os exportadores de recursos energéticos são relativamente mais receptivos às transações em renminbi porque todos eles têm grandes superávits comerciais com a China. Já para os países com déficits comerciais com a China, as transações em renminbi não resolveriam suas preocupações com o custo de transações usando o dólar estadunidense e, de fato, seriam mais caras.

Além disso, a substituição do dólar pelo renminbi ainda não resolveria o paradoxo responsável pela disfuncionalidade do sistema monetário internacional. Como apontou o economista brasileiro Paulo Nogueira Batista Jr., “a contradição fundamental […] reside no fato de que o sistema internacional depende de uma moeda nacional única, administrada de acordo com os interesses do Estado que a criou”. Os Estados Unidos tendem a formular políticas financeiras para atender a seus próprios interesses, que nem sempre estão alinhados com os do sistema financeiro internacional e, em muitos casos, são conflitantes. Portanto, mesmo que os países do Sul Global continuem atuando para a desdolarização, eles não apoiariam que outra moeda nacional assumisse o papel do dólar estadunidense como a nova moeda principal.[21]

Até o momento, a internacionalização do renminbi seguiu seu próprio caminho, sem tomar o dólar estadunidense como ponto de referência. Em primeiro lugar, o renminbi não alcançou a livre conversibilidade da moeda, sem a qual não pode assegurar a outros países a mesma eficiência e facilidade de uso em acordos comerciais internacionais oferecidos pelo dólar. Em segundo lugar, para que uma moeda nacional se torne uma importante moeda de reserva mundial, é necessário que o país de origem tenha um mercado financeiro desenvolvido, instrumentos financeiros suficientes e disponíveis para investimento, juntamente com a liberalização da conta de capital. Entretanto, o setor financeiro da China não só permanece relativamente subdesenvolvido, como o país sempre considerou a segurança financeira nacional como prioridade máxima. Terceiro, como a principal moeda global, o dólar fornece liquidez a outros países. Entretanto, a China, como um gigante manufatureiro com uma grande população e uma grande pressão para manter o emprego, não pode fornecer liquidez a outros países por meio de um grande déficit em conta corrente, como fazem os Estados Unidos. Sob essas restrições internas e externas, o impacto de diferentes caminhos de internacionalização do renminbi na economia chinesa ainda precisa ser explorado.

Há um risco no uso de moedas locais para transações comerciais bilaterais no Sul Global: se a moeda do país deficitário tiver um desempenho ruim, é provável que o país superavitário desista de suas participações de longo prazo; se o país superavitário optar por vender, a moeda do país deficitário corre o risco de sofrer uma depreciação ainda maior.[22] Embora certamente existam fundamentos econômicos reais e o impacto do aumento das taxas de juros dos EUA esteja por trás da recente depreciação do renminbi, os efeitos dos swaps de moeda e das transações em renminbi também estão entre os motivos, já que o renminbi não é uma moeda livremente conversível. Por exemplo, por seu superávit comercial de energia com a China, a Rússia passou repentinamente a possuir uma grande quantidade de renminbi. No entanto, não há nenhum canal para que esse renminbi retorne à China porque a China não tem um mercado financeiro desenvolvido ou instrumentos financeiros suficientes para o investimento russo. Nessas condições, torna-se uma opção razoável para a Rússia manter a taxa de câmbio do rublo, seja vendendo grandes somas de renminbi ou vendendo renminbi adquiridos na paridade para obter lucros em dólares, em um cenário de valorização do dólar em relação ao renminbi. Enquanto os mercados e instrumentos financeiros da China não forem desenvolvidos de forma a oferecer canais suficientes para que o “renminbi de petróleo” retorne à China, os países com grandes superávits terão um incentivo para vender o renminbi por outras moedas, criando assim uma pressão para desvalorizar o renminbi. Resta saber se a China está disposta , no longo prazo, a arcar com esse ônus da internacionalização do renminbi.

Nos debruçamos, agora, nas perspectivas de uma moeda comum do BRICS. É fato que a força do BRICS cresceu rapidamente, estabelecendo uma base sólida para o lançamento de uma moeda própria. Para referência, quando o G7 foi fundado na década de 1970, a participação do grupo no Produto Interno Bruto (PIB) global chegava a 62%. Hoje, os países do BRICS ultrapassaram o G7 em termos de suas respectivas participações no PIB global, medido pela paridade do poder de compra (PPP). De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2021, os países do BRICS responderam coletivamente por 31,5% do PIB global (PPP), enquanto o G7 respondeu por 30,7%.[23] O FMI projeta que, até 2028, o BRICS10 (incluindo Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos) será responsável por 37,9% do PIB global (PPP), com a participação do G7 caindo para 27,8%.[24] Em 2024, a probabilidade de uma moeda do BRICS aumentou ainda mais, dado que os principais exportadores de energia, como a Arábia Saudita, o Irã e os Emirados Árabes Unidos, tornaram-se membros do mecanismo de cooperação deste bloco. No futuro, se houver cooperação entre BRICS e OPEP no desenvolvimento de uma nova moeda, essa iniciativa poderá superar as limitações dos países membros do BRICS e aumentar consideravelmente a base material de uma moeda própria.

Entretanto, ainda existem desafios significativos para a emissão de uma moeda do BRICS sustentada pelo petróleo. Em primeiro lugar, a sustentação do dólar norte-americano pelo petróleo é garantida pela exclusividade do acordo entre os EUA e a Arábia Saudita para fixar o preço do petróleo somente em dólar estadunidense. Os países usam o dólar estadunidense como reserva cambial para garantir que suas importações de energia não estejam sujeitas a flutuações da taxa de câmbio, o que garante, indiretamente, o status do dólar como a principal moeda global. Será que uma moeda do BRICS conseguiria estabelecer exclusividade nos preços e nas transações de petróleo e gás no mercado internacional de energia, apoiando assim sua transformação em uma moeda de reserva para os países? Parece improvável, a menos que os países do BRICS queiram entrar em guerra com os Estados Unidos. Seria possível que uma moeda do BRICS se tornasse uma das várias moedas para a precificação e liquidação de petróleo e gás? A resposta é sim. Mesmo assim, uma moeda do BRICS ainda enfrentaria uma concorrência feroz do dólar estadunidense, que tem os maiores mercados financeiros do mundo e os instrumentos financeiros mais desenvolvidos, especialmente o enorme mercado do Tesouro dos EUA. Em segundo lugar, no caso do desenvolvimento de uma moeda do BRICS baseada no petróleo, é mais fácil falar do que fazer. Para sustentar uma moeda com petróleo, é necessário estabelecer uma taxa de câmbio fixa entre uma determinada unidade de petróleo e uma determinada unidade da moeda. Entretanto, mesmo que seja estabelecida uma taxa de câmbio fixa entre uma moeda do BRICS e o petróleo, quando o preço do petróleo subir no mercado internacional, a quem os detentores desta nova moeda irão recorrer para obter petróleo à taxa de câmbio fixa?[25] Ao projetar o sistema de Bretton Woods, John Maynard Keynes também previu o estabelecimento de uma taxa de câmbio entre o petróleo e o dólar, mas como descobriu que os tipos e a qualidade do petróleo eram muito numerosos e variavam muito de país para país, avaliou que isso não era operacional na prática e, no final, decidiu usar o ouro.[26]

Transações em moeda local, valores de referência e plataforma de câmbio

Para os países do Sul Global, o maior denominador comum para uma futura ação conjunta é a demanda por transações em moeda local, algo que é comum entre as várias propostas de desdolarização apresentadas atualmente. Nos últimos anos, diversos acordos já foram firmados entre os países do BRICS para o uso de moedas locais no comércio bilateral, incluindo China e Rússia, China e Brasil, e o comércio de energia da Rússia e da Índia. Além disso, em 2023, a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) se reuniu para discutir a redução de sua dependência do dólar estadunidense, do euro, da libra esterlina e do iene para transações financeiras e emitiu uma declaração sobre a promoção de esquemas de comércio em moeda local. A ASEAN planeja expandir ainda mais seu sistema de pagamento digital transfronteiriço e permitir que os países da ASEAN negociem em moedas locais. Isso não apenas incentivará o comércio e os investimentos internacionais dentro da ASEAN, como também irá reduzir o impacto de fatores externos sobre a economia regional. O Sudeste Asiático está frequentemente sujeito à volatilidade econômica devido a mudanças abruptas nas políticas dos bancos centrais dos Estados Unidos e de outros países e regiões. Dessa forma, os países da ASEAN pretendem aumentar o uso de moedas locais para promover a estabilidade econômica e reduzir os efeitos colaterais da alta inflação nos países desenvolvidos.[27]

Por diversos motivos, é difícil estabelecer uma taxa de câmbio direta e relativamente estável entre duas moedas com circulação internacional limitada. Portanto, ao fazer transações em moeda local, muitas vezes é necessário recorrer a uma referência para ajudar as partes a estabelecer seus valores relativos entre si. Isso cria uma oportunidade para o desenvolvimento de uma moeda do BRICS. Se entre uma moeda do BRICS e as moedas soberanas de seus países membros for estabelecida uma taxa de câmbio relativa, ela poderá servir como um valor de referência entre as moedas dos diferentes países membros do BRICS.

A Rússia e o Brasil, ambos defensores da desdolarização, têm apresentado pontos de vista diferentes sobre se, e como, lastrear uma moeda do BRICS. Por um lado, a Rússia defende o ouro como lastro de uma moeda do bloco, estabelecendo uma taxa de câmbio entre uma unidade da moeda do BRICS e uma unidade de ouro. O desafio dessa opção é que os bancos centrais teriam de estocar grandes quantidades de ouro.[28] O especialista financeiro estadunidense James Rickards, que se inspirou na visão russa, sugeriu que uma moeda do BRICS usasse o ouro apenas como valor de referência e não para sustentar a moeda, permitindo assim que os bancos centrais do BRICS evitassem a necessidade de resgatar ouro para os detentores da nova moeda. Essa moeda do BRICS não substituiria o dólar, mas coexistiria com ele e, em grande parte, refletiria seu próprio valor com a ajuda do dólar estadunidense. Como o ouro é denominado em dólares no mercado internacional, a relação fixa entre uma moeda do BRICS e o ouro também se refletirá no preço do ouro denominado em dólares.[29] De acordo com Rickards, o dólar se desvalorizará no longo prazo; entretanto, mesmo que o dólar se desvalorize no futuro, isso não afetaria negativamente uma moeda do BRICS, pois uma desvalorização do dólar levaria a uma valorização do ouro e, ao mesmo tempo, a uma valorização de uma moeda do BRICS. Sob essa estrutura, o dólar estadunidense arcaria com o ônus de ser a principal moeda global, enquanto a moeda do BRICS precisaria apenas coexistir e colher os benefícios. Com um crescimento do BRICS para 34 membros, não haveria grandes obstáculos para a circulação interna dessa moeda. A diversidade do comércio entre os países membros seria suficiente para apoiar a eficiência das transações e a facilidade de uso da moeda.[30]

Por outro lado, o brasileiro Paulo Nogueira Batista, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), apresentou uma visão original, que se opõe a lastrear uma moeda do BRICS no ouro ou em qualquer outra commodity. Em vez disso, seria preferível construir uma moeda do BRICS como uma cesta de moedas semelhante aos Direitos Especiais de Saque (DES) do FMI, na qual o peso relativo da moeda de cada membro do BRICS seria determinado conforme sua força econômica. Essa nova moeda não precisaria substituir as moedas nacionais – os países manteriam sua soberania monetária – e não exigiria que o BRICS estabelecesse um banco central unificado – o NDB poderia se encarregar da emissão da moeda.[31] Essa moeda poderia ser amplamente aceita sem um ativo-âncora que fosse livremente conversível a uma taxa de câmbio fixa? Seguindo a lógica de Nogueira Batista, o crédito da moeda do BRICS seria lastreado pelas moedas dos respectivos países membros do grupo. Os detentores desta moeda teriam o direito de convertê-la livremente em suas próprias moedas a qualquer momento. O NDB garantiria esta conversibilidade contando com suas reservas e, quando necessário, buscando fundos adicionais de países que emitem moedas internacionalmente líquidas para apoiar a moeda do BRICS. Outra opção para aumentar a confiança seria o NDB emitir títulos do BRICS com vencimentos e taxas de juros variados, permitindo que a moeda seja livremente conversível em títulos do BRICS.[32]

Inicialmente, é provável que uma moeda do BRICS sirva apenas como uma unidade de conta, fornecendo um valor de referência para seus países membros ao estabelecerem comércio bilateral em suas moedas locais, reduzindo assim o custo atual de operações em dólares estadunidenses. Uma moeda do BRICS seria livremente conversível com as moedas dos países membros do grupo, mas não teria as características sistêmicas de uma moeda principal como o dólar estadunidense. No entanto, ela ainda poderia ajudar os países do BRICS a se proteger de alguns dos riscos apresentados pelo dólar. O euro nasceu, em parte, do desejo da Europa de evitar as externalidades negativas da política financeira dos EUA. Embora o euro esteja longe de ser bem-sucedido em competir com o dólar como principal moeda internacional, ele tem tido êxito em ajudar a isolar a zona do euro do ciclo do dólar.[33] Pode ser mais fácil estabelecer um consenso político entre os países do BRICS em torno de uma moeda que coexista com o dólar estadunidense. Na Cúpula do BRICS de 2023, tanto o presidente russo Vladimir Putin quanto o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva pressionaram ativamente pela desdolarização. No entanto, o governo anfitrião da África do Sul, sob pressão dos EUA, não incluiu a desdolarização como um tópico oficial, enquanto a Índia se opôs explicitamente à opção de um confronto direto com os EUA. Com a Rússia sediando a cúpula do BRICS de 2024, é de se esperar que o governo russo faça muita pressão pela desdolarização. Mesmo assim, enquanto o processo decisório do BRICS aderir ao princípio do consenso, a posição de países como a Índia deverá abortar qualquer programa radical. Dada a estrutura política internacional do BRICS, é mais provável que uma nova moeda avance se tiver uma funcionalidade inicial relativamente simples – enfatizando apenas a função básica de servir como uma unidade de conta para facilitar as liquidações em moeda local no comércio entre os países do grupo – em vez de uma iniciativa que confronte o dólar estadunidense de forma mais deliberada.

Analistas tendem a acreditar que uma moeda inicial do BRICS não será usada para consumo pessoal, mas apenas para acordos comerciais internacionais entre bancos. É provável que uma moeda do grupo seja lançada como uma moeda digital e esteja vinculada às moedas digitais que estão sendo ativamente promovidas pelos bancos centrais de vários países.[34] Portanto, a criação de uma plataforma internacional para apoiar a troca de moedas digitais não será importante apenas para uma moeda do BRICS, mas também será uma infraestrutura importante para o futuro sistema financeiro internacional. Em 2021, a Autoridade Monetária de Hong Kong, o Instituto de Moeda Digital do Banco Popular da China, o Banco da Tailândia e o Banco Central dos Emirados Árabes Unidos lançaram, conjuntamente, uma plataforma multi-CBDC (sigla em inglês para moeda digital de múltiplos bancos centrais), a mBridge. Trata-se de um sistema de pagamento internacional que pode ser usado como alternativa ao SWIFT. Durante seu período de teste, de agosto a setembro de 2022, os quatro bancos centrais emitiram US$ 12 milhões em moedas digitais na mBridge, enquanto 20 bancos comerciais usaram as moedas digitais na plataforma em nome de seus clientes para realizar mais de 160 pagamentos e transações de câmbio (FX, pela sigla em inglês) e pagamento versus pagamento (PvP), com um valor total de US$ 22 milhões.[35]

Essa plataforma de câmbio de moeda digital, sustentada pela tecnologia blockchain, é de grande importância para os países do Sul Global. Os pagamentos internacionais de alto valor e alto volume no atacado entre instituições financeiras são atualmente um componente importante das transações internacionais. Esse mercado interbancário de câmbio no atacado oferece incentivos e liquidez para uma ampla gama de operações de varejo. Entretanto, essa forma de negociação de câmbio está sujeita ao risco de liquidez. Como ainda leva de um a dois dias para concluir um pagamento internacional, quando uma parte conclui o pagamento, a outra parte não o recebe imediatamente. Esse risco afeta transações diárias no valor de até US$ 6,6 trilhões no mercado internacional de câmbio, sendo que mais da metade das transações internacionais diárias não conta com mecanismos de seguro. Além disso, o sistema não funciona 24 horas por dia, um inconveniente para ambos os lados da transação. O PvP é uma solução importante, pois elimina o risco de liquidez e reduz o atrito, garantindo que ambas as partes confirmem e recebam pagamentos ao mesmo tempo. Além disso, o mBridge funciona 24 horas por dia, o ano todo, e ambas as partes da transação decidem quando concluí-la. Há uma enorme demanda por esse serviço por parte dos bancos centrais de todos os países. Embora alguns mercados desenvolvidos já ofereçam serviços de PvP, eles o fazem em um número limitado de moedas, ignorando completamente as demandas crescentes de moedas do Sul Global. A substituição dos serviços oferecidos pelos bancos tradicionais exigirá a mudança das principais instalações de infraestrutura para um modelo de processamento completamente novo, utilizando a tecnologia de registro distribuído e moedas digitais. Os bancos de muitos países desenvolvidos ainda não estão prontos para enfrentar esses desafios.[36]

Discussão

O movimento pendular da globalização, do ciclo hegemônico e da revolução tecnológica levou o mundo a uma era de “mudanças inéditas no último século”. Como devemos interpretar o atual comportamento de minimização de riscos e desdolarização do Sul Global nesse período? Como devemos entender a expansão do BRICS e seu impacto sobre a futura ordem internacional? E como podemos identificar a trajetória e a direção futura da estratégia da China no século XXI?

Primeiro, futuramente, à medida que a desdolarização continua, pode surgir um conflito entre um sistema financeiro com várias moedas e o sistema comercial multilateral do pós-guerra, intensificando ainda mais a desglobalização. O dólar estadunidense tem várias desvantagens como moeda de reserva global, mas, por sua eficiência de liquidação e facilidade de uso, tornou-se um componente indispensável do sistema comercial multilateral do pós-guerra. No futuro sistema financeiro internacional, embora os países possam evitar o dólar ou até mesmo adotar o comércio recíproco como forma de transação, eles não usarão uma moeda inconveniente como sua principal moeda de reserva. Na era da globalização, o custo e a qualidade determinavam o fluxo de bens e serviços. Hoje, o declínio da influência do dólar sinaliza o fim desse modelo eficiente de negócios, e o fluxo de bens e serviços começa a depender da disposição dos países exportadores em aceitar a moeda de um determinado país. Quando os países não acumulam mais superávits em suas contas correntes como forma de adquirir uma moeda de reserva, eles podem recorrer à restrição do comércio e adotar outros métodos de distorção para manter o equilíbrio no comércio bilateral.[37]

Em segundo lugar, a transformação do dólar em instrumento de guerra pelo Ocidente, após a eclosão da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, e os esforços de desdolarização dos países do Sul Global, indicam que tanto os países desenvolvidos quanto os países em desenvolvimento estão frustrados com a ordem internacional pós-Guerra Fria estabelecida pela hegemonia dos EUA. As tentativas do Ocidente de se dissociar ou de minimizar os riscos da relação com China e Rússia estão abalando o status hegemônico do dólar. Enquanto isso, as tentativas de voltar a uma situação de Guerra Fria tendem a ser contraproducentes no final, enfraquecendo seriamente a posição do próprio Ocidente na ordem internacional. Isso ocorre porque a dissociação do Ocidente e a minimização de riscos do Sul Global estão dando origem a um “rival sistêmico” que supera a aliança ocidental em termos de população, tamanho da economia real, energia, recursos e capacidade de produção industrial. Atualmente, o equilíbrio de poder entre o Ocidente e os países do Sul Global é muito diferente do equilíbrio que existia durante a Guerra Fria entre o Ocidente e o antigo bloco soviético.

Terceiro, o desenvolvimento tecnológico será um importante facilitador das liquidações em moeda local para os países do Sul Global no futuro. Tanto a mBridge quanto uma futura moeda do BRICS darão suporte a transações por meio de moedas digitais e usarão blockchain como tecnologia subjacente. Para se afastar do alto custo dos serviços bancários tradicionais nos países desenvolvidos, os países do Sul Global estão construindo uma nova geração de instalações de infraestrutura financeira com base nas tecnologias de informação contemporâneas.

Por fim, a longa busca da China por uma relação entre seu próprio desenvolvimento e o ambiente internacional parece ter encontrado um esquema ideal. Desde sua total integração à globalização dominada pelo Ocidente no final do século XX e início do século XXI, passando pela Nova Rota da Seda (NRS), que na última década visa promover a integração econômica da Eurásia, até a criação da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e do mecanismo BRICS, a China acabou priorizando a cooperação com os países do Sul Global.

A distribuição geográfica dos seis países convidados a se tornarem membros do BRICS fornece uma indicação das prioridades do grupo e da China em suas estratégias de desenvolvimento futuro. Em primeiro lugar, cinco dos seis países convidados estão localizados em torno das principais rotas de transporte, como o Estreito de Ormuz, o Mar Vermelho e o Canal de Suez, o que sugere que os países do BRICS, incluindo a China, estão dando mais ênfase do que nunca à Ásia Ocidental como um centro de conexão entre a Ásia e a África. Em projeções espaciais anteriores da China para a NRS, a Europa era o terminal ocidental e o Sudeste Asiático, a importante ponta no Sudeste. No entanto, sob as condições da estratégia Indo-Pacífico dos Estados Unidos em curso, e da política restritiva da Europa, a China não apenas mediou a aproximação histórica entre a Arábia Saudita e o Irã em março de 2023, como também trouxe os dois países para o BRICS. Essa ênfase no Oriente Médio indica que o desenvolvimento futuro da NRS provavelmente se inclinará ainda mais para essa região. O objetivo final é estabelecer uma ponte terrestre entre a Ásia e a África, transformando esses dois continentes na principal arena para ações coletivas dos países do BRICS no Sul Global.

Em segundo lugar, o convite de gigantes do setor de energia, como Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes Unidos e Argentina, representa uma mudança no Sul Global, que vai além das iniciativas individuais e avança em direção a esforços institucionalizados em escala global para eliminar o risco de transformação do dólar estadunidense em instrumento de guerra. Esse desenvolvimento estabelece uma base significativa para a criação de uma moeda do BRICS. O grupo ampliado inclui seis dos dez maiores produtores de petróleo do mundo em 2022 (que, juntos, responderam por 40% da produção mundial de petróleo) e cinco dos sete maiores consumidores de petróleo do mundo em 2021 (que, juntos, responderam por 30% do consumo mundial de petróleo).[38] Com essa concentração de capacidade de produção e consumo, a criação de uma moeda do BRICS parece estar no horizonte – principalmente para o comércio de energia entre os países membros.

No entanto, a China adotou uma postura discreta em relação à desdolarização na cúpula do BRICS de 2023. Ao contrário de Putin e Lula, que defenderam explicitamente a desdolarização, o Presidente Xi Jinping, ao falar sobre o assunto, disse apenas que “precisamos alavancar totalmente o papel do Novo Banco de Desenvolvimento, impulsionar a reforma dos sistemas financeiros e monetários internacionais e aumentar a representação e a voz dos países em desenvolvimento”.[39] Essa postura relativamente moderada está muito mais próxima da maioria dos países do Sul Global. Mesmo hoje, a China ainda possui US$ 830 bilhões em títulos do Tesouro dos EUA e US$ 2 trilhões em outros ativos denominados em dólares. Nesse sentido, a China continua inserida em um sistema financeiro internacional no qual o dólar estadunidense é a principal moeda. Além disso, em meio à intensificação da concorrência entre a China e os Estados Unidos, a posse de títulos do Tesouro dos EUA continua sendo um dos poucos pontos de alavancagem importantes que a China tem para responder à pressão dos EUA. Limitada por essas circunstâncias, é improvável que a China busque agressivamente a desdolarização. Para a China, perder sua influência poderia não apenas tornar mais difícil contrabalançar as pressões estratégicas dos EUA, mas também poderia levar a danos mútuos no caso de um erro de cálculo estratégico por parte dos Estados Unidos.

Desde o “pivô para a Ásia” dos Estados Unidos, a resposta e a estratégia internacional da China – que incluíram a criação da NRS – sempre mantiveram duas possibilidades em aberto: proteger-se ou confrontar. Há um século, a ressonância dos três principais ciclos históricos de globalização, hegemonia e revolução tecnológica empurrou o mundo para um abismo. Hoje, surge novamente uma situação em que esses três ciclos exercem influência simultaneamente: o pêndulo da globalização está mudando do fundamentalismo do mercado para o protecionismo, o ciclo hegemônico está entrando em uma fase em que as potências emergentes estão se aproximando e desafiando o poder hegemônico, e a revolução tecnológica está alterando rapidamente a dinâmica do poder político e econômico internacional. Há um século, diante das crises criadas por esses três ciclos principais, as nações optaram pelo confronto, o que resultou na tragédia final de duas guerras mundiais e no imenso sofrimento humano. Hoje, a guerra está ocorrendo na Ucrânia e em outros lugares, enquanto a transformação do dólar estadunidense em arma e os esforços de minimização de riscos do Sul Global estão acelerando o colapso do mundo unipolar pós-Guerra Fria.

Mais uma vez, como as engrenagens da história levam o mundo a uma encruzilhada fundamental, a convergência do Sul Global para o mecanismo de cooperação do BRICS oferece à China uma nova oportunidade de se proteger contra os perigos crescentes. Posicionada em uma organização internacional que conta com os países em desenvolvimento mais poderosos, usando uma moeda própria que coexista com o dólar e comandando capacidades globais significativas em energia, recursos e produção industrial, a China aumentará sua capacidade de promover mudanças na ordem política e econômica internacional. Da mesma forma, a representação e a influência do Sul Global aumentarão nos assuntos internacionais.

Referências bibliográficas

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Notas do autor

1. Erin Hale, “How China and India’s Appetite for Oil and Gas Kept Russia Afloat” [Como o apetite da China e da Índia por petróleo e gás ajudou a Rússia a não submergir], Al Jazeera, 24 de fevereiro de 2023, https://www.aljazeera.com/economy/2023/2/24/how-china-and-indias-appetite-for-oil-and-gas-kept-russia-afloat.

2. Rebecca M. Nelson, Christopher A. Casey e Andres B. Schwarzenberg, “Russia’s War on Ukraine: Financial and Trade Sanctions” [A guerra da Rússia na Ucrânia: sanções comerciais e financeiras], Congressional Research Service, 22 de fevereiro de 2023, https://crsreports.congress.gov/product/pdf/IF/IF12062/4.

3. “俄罗斯:2022年天然气出口暴跌,石油出口却增加” [Rússia: as exportações de gás despencam em 2022, as exportações de petróleo aumentam], investgo.cn, 15 de fevereiro de 2023, 15 de fevereiro de 2023, https://www.investgo.cn/article/gb/tjsj/202302/654653.html.

4. Hale, “How China and India’s Appetite for Oil and Gas Kept Russia Afloat” [Como o apetite da China e da Índia por petróleo e gás ajudou a Rússia a não submergir].

5. Hale, “How China and India’s Appetite for Oil and Gas Kept Russia Afloat” [Como o apetite da China e da Índia por petróleo e gás ajudou a Rússia a não submergir].

6. Nelson, Casey e Schwarwzenberg, “Russia’s War on Ukraine: Financial and Trade Sanctions” [A guerra da Rússia na Ucrânia: sanções comerciais e financeiras].

7. “Sanções da UE contra a Rússia explicadas”, Conselho da União Europeia e Conselho da Europa, acessado em 25 de fevereiro de 2024, https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/sanctions-against-russia/sanctions-against-russia-explained/.

8. Michelle Toh, “Chinese Brands Have Replaced iPhones and Hyundai in Russia’s War Economy” [As marcas chinesas substituíram iPhones e Hyundai na economia de guerra da Rússia], CNN, 26 de fevereiro de 2023, https://www.cnn.com/2023/02/25/business/russia-chinese-brands-sales-surge-ukraine-war-intl-hnk/index.html.

9. Toh, “Chinese Brands” [Marcas chinesas].

10. “EU Sanctions against Russia Explained”.

11. James Rickards, “Western Countries about to Slam into A BRICS Wall?”, entrevista por Stephanie Pomboy, Wealthion, YouTube, 8 de agosto de 2023, https://www.youtube.com/watch?v=88pP53lcBwQ.

12. Gideon Rachman, “How the Ukraine War Has Divided the World” [Como a guerra na Ucrânia dividiu o mundo], Financial Times, 17 de abril de 2023, https://www.ft.com/content/40c31fda-1162-4c40-b3d5-b32e4ac5d210.

13. “A Third of Russian Assets in Switzerland at Credit Suisse” [Um terço dos ativos russos no Credit Suisse], finews.com, 13 de fevereiro de 2023, https://www.finews.com/news/english-news/55768-russian-funds-one-third-is-at-credit-suiss.

14. “A Third of Russian Assets in Switzerland at Credit Suisse” [Um terço dos ativos russos no Credit Suisse].

15. Zoltan Pozsar, “War and Commodity Encumbrance” [Um terço dos ativos russos no Credit Suisse]. Credit Suisse Economics. 27 de dezembro de 2022.

16. Pozsar, “War and Commodity Encumbrance” [Um terço dos ativos russos no Credit Suisse].

17. Gao Bai, “做连接亚洲与非洲的大陆桥:沙特问题的中国解决方案” [Ser uma ponte terrestre ligando a Ásia e a África: Uma solução chinesa para o problema saudita], em 西南交通大学学报(社会科学版)[Revista da Universidade Jiaotong Sudoeste (Ciências Sociais)], n. 4 (2014).

18. Pozsar, “War and Commodity Encumbrance” [Um terço dos ativos russos no Credit Suisse].

19. Consulte “中华人民共和国和沙特阿拉伯王国联合声明” [Declaração Conjunta entre a República Popular da China e o Reino da Arábia Saudita], Ministério das Relações Exteriores da República Popular da China (RPC), 9 de dezembro de 2022, https://www.mfa.gov.cn/wjdt_674879/gjldrhd_674881/202212/t20221209_10988250.shtml; “中华人民共和国主席和俄罗斯联邦总统关于2030年前中俄经济合作重点方向发展规划的联合声明” [Declaração Conjunta do Presidente da República Popular da China e do Presidente da Federação Russa sobre o Plano de Desenvolvimento Pré-2030 sobre Prioridades na Cooperação Econômica China-Rússia], Ministério das Relações Exteriores da RPC, 22 de março de 2023, https://www.mfa.gov.cn/zyxw/202303/t20230322_11046176.shtml; Chen Weihua, “巴西对华出口多样化有待挖潜” [Diversificação das exportações do Brasil para a China deve ser aproveitada], 经济参考报 [Diário de Informações Econômicas], 1 de junho de 2022, http://www.jjckb.cn/2022-06/01/c_1310610291.htm; “国家发展改革委与巴西发展、工业、贸易和服务部签署关于促进产业投资与合作的谅解备忘录” [Memorando de Entendimento entre o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços da República Federativa do Brasil e a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da República Popular da China para a Promoção do Investimento e Cooperação Industrial], Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da RPC, 17 de abril de 2023, https://www.ndrc.gov.cn/fzggw/wld/zsj/zyhd/202304/t20230417_1353652.html.

20. Pozsar, “War and Commodity Encumbrance” [Um terço dos ativos russos no Credit Suisse].

21. Paulo Nogueira Batista Jr., “A BRICS currency?” [Uma moeda do BRICS?] (artigo, Seminário do BRICS sobre Governança e Fórum de Intercâmbio Cultural 2023, Joanesburgo, África do Sul, 19 de agosto de 2023), https://www.nogueirabatista.com.br/wp-content/uploads/2023/09/Aug-2023-On-possible-BRICS-currency.pdf. Uma versão desse artigo foi publicada na plataforma de mídia chinesa Guancha.

22. Nogueira Batista, “A BRICS currency?” [Uma moeda do BRICS?].

23. Calculado com base no banco de dados do World Economic Outlook do Fundo Monetário Internacional (outubro de 2023), https://www.imf.org/external/datamapper/PPPSH@WEO/MAE/BRA/RUS/IND/CHN/ZAF?year=2021.

24. Calculado com base no banco de dados do World Economic Outlook do Fundo Monetário Internacional (outubro de 2023), https://www.imf.org/external/datamapper/PPPSH@WEO/MAE/BRA/RUS/IND/CHN/ZAF/EGY/ETH/IRN/SAU/ARE?year=2028.

25. Nogueira Batista, “A BRICS currency?” [Uma moeda do BRICS?].

26. Rickards, entrevista.

27. “ASEAN’s Aim to Increase Monetary Autonomy Reflects De-Dollarization Trend, Says Indonesian Economist” [Objetivo do ASEAN de ampliar sua autonomia monetária reflete tendência de desdolarização, segundo economist indonésio], Xinhua News Agency, 5 de abril de 2023, https://english.news.cn/20230405/6b25f882f66047da8fb0231d3411d45f/c.html.

28. Rickards, entrevista; Nogueira Batista, “A BRICS currency?” [Uma moeda do BRICS?].

29. Rickards, entrevista.

30. Rickards, entrevista.

31. Nogueira Batista, “A BRICS currency?” [Uma moeda do BRICS?]; Federico Steinberg e Miguel Otero-Iglesias, “South America’s ‘Common Currency’ Is Actually about De-Dollarization” [A moeda comum da América do Sul realmente tem a ver com a desdolarização], Center for Strategic and International Studies, 14 de fevereiro de 2023, https://www.csis.org/analysis/south-americas-common-currency-actually-about-de-dollarization.

32. Nogueira Batista, “A BRICS currency?” [Uma moeda do BRICS?].

33. Steinberg e Otero-Iglesias, “South America’s ‘Common Currency’” [A moeda comum da América do Sul].

34. Rickards, entrevista; Andy Schectman, “It Would Be ‘Really Foolish’ to Underestimate Gold-Backed BRICS Currency” [Seria “realmente insensato” subestimar a moeda dos BRICS lastreada em ouro], entrevista por Jesse Day, Commodity Culture, YouTube, 12 de julho de 2023, https://www.youtube.com/watch?v=gxy4IW8R5ho.

35. BIS Innovation Hub et al., “Project mBridge: Connecting Economies through CBDC” [Projeto mBridge: conectando economias através de CBDC] (Banco de Compensações Internacionais, outubro de 2022), https://www.bis.org/publ/othp59.pdf.

36. Dave Sissens, “Why the Increased Adoption of PvP Settlement Will Enhance Cross-Border Payments” [Por que o aumento da adoção da liquidação PvP irá aprimorar os pagamentos internacionais], Fintech Futures, 23 de janeiro de 2023, https://www.fintechfutures.com/2023/01/why-the-increased-adoption-of-pvp-settlement-will-enhance-cross-border-payments/.

37. Benn Steil, “The Real Cost of De-Dollarization” [O custo real da desdolarização], Project Syndicate, 16 de agosto de 2023, https://www.project-syndicate.org/commentary/no-alternative-to-the-us-dollar-by-benn-steil-2023-08.

38. Administração de Informações sobre Energia dos EUA, “What Countries Are the Top Producers and Consumers of Oil?”, 2 de setembro de 2023, https://www.eia.gov/tools/faqs/faq.php.

39. Xi Jinping, “Intervenção do presidente chinês, Xi Jinping, na 15ª Cúpula do BRICS”, Xinhua Português, 24 de agosto de 2023, https://portuguese.xinhuanet.com/20230824/2970631ba2794ce296c73582ca56d6f8/c.html.

Vol.2 N.º 1 | 17.05.2024

Wenhua Zongheng: REVISTA DO PENSAMENTO CHINÊS CONTEMPORÂNEO | VOL.2 N.º 1

BRICS e a desdolarização: desafios e oportunidades


Arte criada por Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

O BRICS e o desafio da desdolarização

Paulo Nogueira Batista Jr.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista brasileiro, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (2015 – 2017) e ex-diretor executivo para o Brasil e outros países do Fundo Monetário Internacional (2007 – 2015). E-mail: [email protected].

E-mail: [email protected].

Os artigos reunidos neste número da Wenhua Zongheng (文化纵横) lançam luz sobre temas de grande interesse para a economia internacional. Em particular, esse número retoma a popular e amplamente discutida questão da desdolarização. A desdolarização é necessária? Será possível na prática e, em caso afirmativo, em que prazo? Como os países interessados na desdolarização podem ou devem agir? O BRICS pode, em conjunto ou individualmente, ajudar a avançar nesse sentido? A China poderia intervir para fornecer a sua moeda, o renminbi, como alternativa ao dólar estadunidense?

Todas, ou a maioria dessas questões, são discutidas nos artigos escritos pelos professores Gao Bai (高柏), Yu Yongding (余永定) e Ding Yifan (丁一凡). No passado recente, também tentei escrever três vezes sobre a desdolarização.[1] Nesta apresentação, retomo alguns aspectos do debate em curso, tentando não me repetir demasiado, ao mesmo tempo em que busco abordar questões levantadas nos três artigos dos pesquisadores chineses.

Como é sabido, a desdolarização tornou-se um tema quente desde 2022, quando os Estados Unidos e os países europeus decidiram bloquear uma grande parte das reservas internacionais da Rússia em resposta à invasão da Ucrânia, conforme descrito por Yu Yongding. Tradicionalmente, autoridades e especialistas ocidentais têm ensinado aos países em desenvolvimento sobre a necessidade de adotarem políticas de “criação de confiança” e de respeitarem os direitos de propriedade. Isso é realmente incrível, olhando em retrospectiva. O congelamento dos ativos russos e as ameaças mais recentes de avançar para o confisco total são medidas importantes de “destruição da confiança”, causando grandes danos ao dólar estadunidense e ao euro. Essas ações dispararam um alarme para países como a China, um grande detentor de títulos em dólares americanos como parte das suas reservas internacionais. Qualquer país que enfrente conflitos com os EUA e o resto do Ocidente percebeu imediatamente a necessidade de medidas para reduzir a sua dependência do dólar e do sistema financeiro ocidental. Em muitas partes do mundo, os esforços para utilizar moedas nacionais em transações internacionais, para construir ou reforçar sistemas de pagamentos alternativos, para confiar mais no renminbi chinês e até para criar uma nova moeda de referência do BRICS foram intensificados. Sem dúvidas o que temos visto é um grande tiro no pé dado pelos EUA e pela Europa. Em seus artigos, os três autores apresentam contribuições significativas para a discussão de todos esses desafios.

A popularidade do tema da desdolarização em círculos mais amplos e nos meios de comunicação não é necessariamente acompanhada por uma compreensão da sua complexidade. Existe uma expectativa generalizada de que o BRICS irá desenvolver, num futuro próximo, uma alternativa ao dólar estadunidense. Mas será que esta expectativa é realista? A complexidade do tema é dupla – política e técnica.

Do lado político, podem-se mencionar duas grandes dificuldades: (i) a notória resistência dos EUA em abrir mão do que os franceses, na década de 1960, chamaram de “privilégio exorbitante” de ter a sua moeda nacional – emitida e gerida de acordo com os interesses nacionais dos EUA – servindo como a principal moeda global; e (ii) a dificuldade de realmente unir os países do BRICS nessa empreitada. Permitam-me tentar abordar essas duas grandes dificuldades, com base em parte na minha experiência prática como diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), delegado brasileiro no processo BRICS e posteriormente vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD).

Nunca se deve perder de vista o fato de que os Estados Unidos irão, muito provavelmente, utilizar todos os diversos instrumentos à sua disposição para lutar contra qualquer tentativa de destronar o dólar do seu status de pilar do sistema monetário internacional. Sempre o fizeram, a começar pelas negociações monetárias e financeiras que aconteceram no final e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. As ideias de Keynes para uma moeda internacional foram veementemente rejeitadas pelas autoridades estadunidenses. Mais tarde, os EUA utilizaram seu poder de veto no FMI para bloquear medidas que poderiam ter tornado os Direitos Especiais de Saque (DES) da instituição uma moeda plena de status internacional. Até hoje, os DES continuam sendo secundários e quase sem relevância fora do FMI. Os EUA encaram as discussões incipientes sobre a desdolarização entre os países BRICS com profunda desconfiança, e é provável que o país interfira a cada passo para bloquear iniciativas e gerar divergências entre os membros do BRICS. Pode-se perguntar, por exemplo, se a Índia e a África do Sul estarão imunes às pressões vindas dos EUA sobre este assunto. O meu próprio país, o Brasil, atualmente segue uma política externa independente sob a liderança do Presidente Lula, mas um futuro governo com uma orientação diferente poderá ser relutante em desagradar aos EUA numa questão tão crítica.

Isso nos leva diretamente à segunda dificuldade política mencionada acima. Será o BRICS suficientemente coeso, como grupo, para enfrentar esse desafio complexo? Com base na minha experiência prática no processo BRICS, gostaria de alertar contra o otimismo demasiado na resposta a essa questão. Mesmo quando havia apenas cinco países na mesa, as dificuldades para chegar a acordos sobre medidas concretas – por exemplo na criação e implementação do fundo monetário do BRICS (o Arranjo Contingente de Reservas, CRA) e do Novo Banco de Desenvolvimento (o NDB) – eram verdadeiramente surpreendentes. Primeiro, devido às diferentes perspectivas e interesses nacionais entre os cinco países. Em segundo lugar, infelizmente, devido à falta de talento e competência técnica de muitos dos funcionários que representam os cinco países nessas negociações e nos mecanismos financeiros resultantes destas.[2] Compreendo perfeitamente que esta é uma afirmação dura, mas se quisermos abordar seriamente as questões desafiadoras da desdolarização e das alternativas à moeda dos EUA, precisamos ser realistas e ter um mínimo de autocrítica.

A expansão do BRICS, iniciada em 2024, irá agravar ainda mais os problemas de coordenação e as vulnerabilidades políticas. Com nove ou dez países membros (a depender da aceitação e adesão da Arábia Saudita), é possível prever que haverá um desafio ainda maior para avançar em qualquer questão prática. Observadores externos, pessoas que não são especialistas e mesmo acadêmicos conceituados desconhecem frequentemente tais obstáculos. Alguns somam o Produto Interno Bruto (PIB) e as populações do BRICS ou do BRICS+ para concluir, precipitadamente, que o grupo se tornou uma grande força no mundo. Alguns países, creio que a China e a Rússia estão entre eles, querem expandir ainda mais o grupo. Na retórica da imprensa, supostamente o BRICS expandido está destinado a tornar-se um fórum para o Sul Global. Isto pode parecer bom, mas também poderia ser perguntado: será que um grande e rápido aumento no número de membros do grupo não resultará, em última análise, em uma transformação do BRICS+ em algo parecido com uma “ONU do Sul”, talvez tão ineficaz como a própria ONU?

Contudo, não sejamos demasiado negativos. A verdade é que o grupo BRICS inclui países importantes. Os quatro membros originais – Brasil, Rússia, Índia e China – estão entre os gigantes do mundo. A China é hoje a maior economia, em termos de PIB em paridade de poder de compra, tendo ultrapassado os EUA por uma margem considerável. Os países do BRICS partilham uma insatisfação de longa data com a arquitetura monetária e financeira internacional existente. Nessas décadas iniciais do século XXI, os motivos de insatisfação só cresceram. As instabilidades financeiras, econômicas e políticas aumentaram dramaticamente, mas o Ocidente não dá sinais de fazer as adaptações e concessões necessárias para acomodar o BRICS e outras nações de mercados emergentes. Além disso, a disfuncionalidade do sistema monetário internacional baseado no dólar, que remonta à década de 1960, se torna cada vez mais óbvia.

Assim, temos o dever de buscar estar à altura desses desafios. Se não conseguirmos fazê-lo como grupo, talvez a China tome para si a responsabilidade de tomar medidas para promover a desdolarização. No entanto, como sublinhou Gao Bai em seu artigo, não é nada evidente que a China tenha os meios e esteja verdadeiramente interessada em substituir o dólar estadunidense pela sua própria moeda. Para uma economia que ainda não está totalmente madura em termos financeiros , o “privilégio exorbitante” pode muito bem tornar-se um “fardo exorbitante”. O professor Gao colocou questões relevantes. Estaria a China pronta e interessada em tornar o renminbi uma moeda totalmente conversível (um requisito para a moeda chinesa substituir o dólar estadunidense de forma significativa)? Estaria a China preparada para aceitar a valorização resultante do aumento da procura internacional pela sua moeda? Que efeitos teria a valorização da moeda chinesa na competitividade de suas exportações e na balança de pagamentos em conta corrente? Será que um grande aumento no papel do renminbi não entraria em conflito com a estratégia chinesa bem-sucedida e de longa data de proteger cautelosamente a sua economia e o seu sistema financeiro da turbulência internacional? E, por último, mas não menos importante, a China está preparada para provocar a ira dos EUA contra quem se esforce seriamente para substituir o dólar? Devido a essas e outras incertezas, é bastante difícil esperar que a China lidere sozinha o processo de desdolarização.

Isso nos traz de volta ao BRICS. Supondo que o grupo seja capaz de superar os problemas de coordenação, as vulnerabilidades políticas e a escassez de pessoal especializado, o esforço poderá ser distribuído entre os diversos países membros. O considerável fardo político e técnico seria, então, partilhado.

Como presidente do BRICS em 2024, a Rússia já começou a trabalhar numa revisão do sistema internacional e em possíveis iniciativas do BRICS nessa área. Pouco se sabe sobre até que ponto o BRICS irá conseguir avançar sob a liderança russa este ano. Em qualquer caso, sendo até agora a principal vítima da transformação do dólar estadunidense e do sistema financeiro ocidental em armas, pode-se esperar que a Rússia faça tudo o que estiver ao seu alcance para avançar a agenda da desdolarização. O Brasil, próximo presidente do grupo em 2025, continuará, espero, onde a Rússia parou.

Notas do autor

1. Ver Paulo Nogueira Batista Jr., The BRICS and the Financing Mechanisms They Created: Progress and Shortcomings [Os BRICS e os mecanismos de financiamento que eles criaram: progresso e deficiências] (Londres: Anthem Press, 2022); Paulo Nogueira Batista Jr., “A BRICS currency?” [Uma moeda do BRICS?] (artigo, Seminário do BRICS sobre Governança e Fórum de Intercâmbio Cultural 2023, Joanesburgo, África do Sul, 19 de agosto de 2023), https://www.nogueirabatista.com.br/wp-content/uploads/2023/09/Aug-2023-On-possible-BRICS-currency.pdf; Paulo Nogueira Batista Jr., “BRICS Financial and Monetary Initiatives – The New Development Bank, the Contingent Reserve Arrangement, and a Possible New Currency” [Iniciativas Financeiras e Monetárias dos BRICS – o Novo Banco de Desenvolvimento, o Arranjo Contingente de Reservas e uma possível nova moeda] (artigo, 20ª Reunião Anual do Valdai Discussion Club, Sochi, Rússia, 2 de outubro de 2023), https://valdaiclub.com/a/highlights/brics-financial-and-monetary-initiatives/; Paulo Nogueira Batista Jr., “Iniciativas Financeiras do BRICS” (apresentação no Valdai Discussion Club, 18 de março de 2024), https://www.nogueirabatista.com.br/2024/03/18/iniciativas-financeiras-do-brics/.

2. No meu livro, The BRICS and the Financing Mechanisms They Created: Progress and Shortcomings [Os BRICS e os mecanismos de financiamento que eles criaram: progresso e deficiências](2022), discuti com algum detalhe as negociações e os primeiros cinco anos de existência do NDB e do CRA. Voltei ao assunto recentemente num pequeno artigo publicado em 2023, ver Nogueira Batista, “BRICS Financial and Monetary Initiatives” [Iniciativas Financeiras e Monetárias dos BRICS], https://valdaiclub.com/a/highlights/brics-financial-and-monetary-initiatives/.

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As novas formas de socialismo no século XXI | 20.12.2023

As novas formas de socialismo no século XXI

Pan Shiwei

Pan Shiwei (潘世伟) é o presidente honorário do Instituto de Marxismo Chinês da Academia de Ciências Sociais de Xangai. Sua pesquisa tem como foco o socialismo chinês, construção partidária e desenvolvimento político. Suas obras publicadas incluem Um estudo do modelo chinês (中国模式研究) e Anuário mundial de Pesquisa Socialista (世界社会主义研究年鉴).

“As novas formas de socialismo no século XXI” (新时代,新自觉——如何在当下重新思考社会主义) foi publicado originalmente no número 3 (2023) da Wenhua Zongheng (文化纵横).

O capitalismo liberal está diante de uma crise, depois de três décadas de expansão após o fim da Guerra Fria. Em meio a grandes desafios impostos pela recessão econômica, por conflitos geopolíticos, por clivagens sociais e pelas novas tecnologias disruptivas, um clima de incertezas envolve o mundo. Nessa conjuntura histórica, é preciso revitalizar o socialismo e desenvolver teorias socialistas ainda mais adequadas às novas condições do século XXI, pavimentando o caminho para um novo futuro para a humanidade.

Um longo percurso foi trilhado desde que Marx e Engels transformaram o socialismo, então utopia, em ciência, tal como sintetizado celebremente no Manifesto Comunista, em meados do século XIX. Nos últimos 175 anos, geração após geração de socialistas seguiram os passos de Marx e Engels, atuando sem cessar para elevar o socialismo de um conceito meramente ideológico à luta de classes, organizações políticas, revoluções sociais, governos e projetos civilizatórios. O desenvolvimento histórico do socialismo pode ser dividido em três modelos principais.

O socialismo clássico nos centros do capitalismo europeu

O movimento socialista se originou na Europa. Não foi coincidência sua transformação, de utopia em ciência, também ter acontecido ali. A Europa se beneficiou pelo capitalismo e se tornou a região mais desenvolvida do mundo. Com as vantagens decorrentes de terem sido os precursores da Revolução Industrial, os principais países europeus criaram uma nova e poderosa força produtiva.

Internamente, uma nova classe tornou-se dominante: a burguesia. Por meio de diferentes modelos de revolução burguesa, a burguesia tomou o poder sucessivamente em uma série de países europeus, criando estruturas sociais, políticas, mercantis e culturais, incluindo o Estado-nação moderno. Os avanços e as transformações do início da modernização capitalista finalmente viraram a página um tanto sombria da era medieval na Europa.

Externamente, os países europeus que lideravam a modernização também criavam as condições para uma globalização centrada na Europa que duraria séculos, por meio da expansão colonial permanente e de instrumentos abrangentes, incluindo guerras militares, imposição religiosa e agressão cultural. Vale a pena observar que, durante esse período, os desenvolvimentos interno e externo do capitalismo europeu estavam interligados e mutuamente condicionados. O desenvolvimento interno da política, da economia, da cultura e da sociedade impulsionou e conduziu a expansão externa. Por sua vez, a expansão externa sustentou e fortaleceu enormemente o desenvolvimento interno.

Por trás das realizações impressionantes do capitalismo europeu, no entanto, uma nova ideologia socialista era silenciosamente gestada e ganhava terreno. O desenvolvimento econômico e político do capitalismo europeu criou as condições sociais para o surgimento do marxismo. O crescimento da classe trabalhadora e o surgimento do movimento operário em luta por seus próprios interesses forneceram a base de classe. O florescimento das ciências sociais, da filosofia e da economia proporcionou o ambiente intelectual. Juntos, esses fatores convergiram para a publicação do Manifesto Comunista e para o nascimento do socialismo científico.

Marx, Engels e seus contemporâneos, fundadores do socialismo científico, generosamente reconheceram e felicitaram as realizações do desenvolvimento capitalista. No entanto, sua crítica implacável ao capitalismo europeu era o que os diferenciava da maioria de seus pares, assim como a firme convicção de que o sistema capitalista, aparentemente próspero, conduziria ao seu próprio ocaso. Esses socialistas apontaram corajosamente as profundas deficiências e contradições inerentes ao capitalismo, que podem apenas ser aliviadas, mas não erradicadas por esse sistema, apesar do desenvolvimento das forças produtivas e da riqueza material acumuladada, assim como dos avanços associados na política, na sociedade e na cultura. Dessa forma, o capitalismo nunca poderia ser considerado a forma definitiva do desenvolvimento social humano. Ele surgiu na história e será negado pela história.

Os socialistas daquela época acreditavam que a classe trabalhadora e outras forças sociais oprimidas tinham em suas mãos o poder de provocar mudanças e transcender o capitalismo. Para eles, era do interesse da classe trabalhadora buscar uma revolução e desmantelar o velho mundo e o sistema capitalista, em vez de se submeter à contínua exploração e opressão pelas mãos da burguesia. Com lutas políticas e revoluções sociais, as classes oprimidas iriam derrubar a burguesia, se tornariam a classe dominante e iriam construir um sistema mais racional e humano, em substituição ao capitalismo. O sistema ideal era o socialismo, que eventualmente avançaria para uma forma mais desenvolvida, o comunismo. Embora os detalhes precisos dessa sociedade ideal futura não pudessem ser descritos, esses pensadores argumentaram que a classe trabalhadora e seus partidos políticos inevitavelmente avançariam nesse rumo.

Mais importante que isso, no processo de crítica ao capitalismo e de construção de argumentos a favor do socialismo, essa geração de socialistas analisou detidamente as leis gerais do desenvolvimento social humano e formulou uma visão de mundo e uma metodologia cujo cerne era o materialismo histórico. Isso possibilitou que gerações sucessivas desenvolvessem compreensões mais precisas do mundo e do movimento da história humana.

Durante esse período, o modelo clássico de pensamento socialista desenvolvido na Europa consistia em três elementos principais:

1. O socialismo só pode surgir nas sociedades onde o capitalismo está mais desenvolvido. As forças produtivas, as formas políticas e os recursos ideológicos necessários para construir o socialismo são gerados dentro de formas avançadas de capitalismo.

2. O capitalismo pode e inevitavelmente será negado e transcendido. Não importa por quanto tempo o capitalismo se sustente, ele acabará sendo apenas um fragmento da história humana. Devido às suas contradições inerentes, o capitalismo não será um sistema eterno, ainda que possa fazer melhorias internas acompanhando a evolução de suas circunstâncias. Após cumprir sua missão histórica, o capitalismo será relegado à história.

3. O fim do capitalismo é o ponto de partida do socialismo. O socialismo será construído sobre as forças produtivas, a riqueza material, o desenvolvimento intelectual e a modernização já criadas pela humanidade. É precisamente com base nesses recursos acumulados no capitalismo que o socialismo busca resolver tensões e conflitos entre as forças produtivas e as relações de produção, superar as restrições da propriedade privada dos meios de produção e enfrentar todas as contradições que surgem dessa ordem. Sendo o socialismo, de fato, a crítica e a negação do capitalismo, ele também busca alcançar uma nova transcendência e sublimação. Quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais ele prepara as condições materiais, entre outras, para o socialismo. Da mesma forma, à medida que as forças produtivas do capitalismo avançam, as relações de produção se tornam mais complexas, e a governança estatal se torna mais sofisticada, sendo cada vez mais desafiador alcançar maior produtividade, desenvolver forças produtivas mais poderosas, garantir uma verdadeira igualdade e construir uma sociedade harmoniosa. Em outras palavras, a necessidade de construir uma nova sociedade socialista cresce junto com o capitalismo. A humanidade é capaz de construir uma sociedade melhor.

Os socialistas clássicos oferecem uma narrativa abrangente e de imensa vitalidade, iluminando o caminho para a humanidade atravessar a selva do capitalismo e inspirando os povos a se envolverem na longa luta histórica rumo ao socialismo.

Formas transformadoras do socialismo em colônias e semi-colônias

Durante o século XX, o socialismo se desenvolveu de maneira significativamente diferente das expectativas do socialismo clássico. Em vez de progredir linearmente, o desenvolvimento socialista ocorreu alternando entre altos e baixos, incluindo o retrocesso em revoluções socialistas bem sucedidas na União Soviética e no Leste Europeu.

O socialismo não surgiu onde era esperado, ou seja, nos países capitalistas desenvolvidos da Europa. No entanto, novas áreas de crescimento surgiram além da visão dos pensadores marxistas clássicos. O socialismo não emergiu dentro do capitalismo global, mas fora dele; não nos países com as forças produtivas mais avançadas, mas nas regiões economicamente subdesenvolvidas; não no Ocidente, mas em países não ocidentais; não das tradicionais lutas de classes urbanas, mas dos movimentos de libertação nacional nas colônias e semi-colônias então sob o domínio do imperialismo. A lógica e o significado essencial do socialismo foram redefinidos. As conquistas extraordinárias do socialismo na Rússia, na China e em outros lugares transcenderam o marxismo clássico e constituíram uma forma distinta de socialismo transformador.

Na perspectiva do pensamento socialista, uma característica essencial do capitalismo é sua conquista do mundo. A invasão e o saqueio de vastas regiões não ocidentais são necessários para sustentar a prosperidade e o conforto dos centros capitalistas da Europa. O desenvolvimento de países ricos é construído sobre o subdesenvolvimento de países pobres. Dessa forma, o capitalismo não apenas cria desigualdade interna, mas também desigualdade externa. Os pensadores marxistas clássicos reconheceram o impacto destrutivo da expansão colonial capitalista no vasto mundo não ocidental, mas, devido a uma série de condições históricas objetivas, não desenvolveram uma compreensão sistemática e detalhada desse assunto. Apenas com Lenin e com os teóricos marxistas posteriores a ele, as lutas de libertação nacional das colônias e semi-colônias contra a agressão capitalista e imperialista receberam maior atenção. Refletindo essa maior ênfase, a proposição clássica “trabalhadores do mundo, uni-vos!” foi expandida para “trabalhadores do mundo e povos oprimidos, uni-vos!”. Embora o foco da teoria e da prática socialistas na época ainda estivesse nos países capitalistas centrais, a influência do movimento socialista europeu nas vastas colônias e semi-colônias continuou crescendo. As críticas socialistas ao capitalismo, o ideal e a busca de uma sociedade futura melhor, e a coragem e determinação da classe trabalhadora e de seus partidos para derrubar o velho mundo, foram fontes importantes de inspiração nos países colonizados. O socialismo demonstrou a viabilidade de que os povos oprimidos fizessem novas escolhas e construíssem novas sociedades, tornando-se, assim, um recurso intelectual extremamente importante para esses países em sua resistência contra a agressão e a conquista capitalista.

Uma nova e transformadora forma de socialismo se desenvolveu nas colônias e semi-colônias. O desenvolvimento do socialismo na China ilustra muitas das mudanças significativas entre a forma clássica e a forma transformadora. Essa nova forma surgiu da interseção e integração entre a lógica própria de desenvolvimento chinês e a lógica do desenvolvimento socialista.

No caso da China, após estar isolada no Oriente por milhares de anos, as portas do país foram violentamente abertas por potências ocidentais superiores economicamente, militarmente, tecnologicamente e em termos de governança. Essa turbulência não foi apenas o resultado de uma expedição ocidental contra um antigo país oriental, mas também um golpe destrutivo de um sistema capitalista ascendente contra uma ordem feudal em declínio. A humilhação da China, o sofrimento de seu povo e a mancha na civilização chinesa provocaram resistência nacional. Aqueles que buscavam a libertação nacional e a revitalização estavam desesperadamente em busca de novas fontes de inspiração intelectual. Diante do dilema de estagnação intelectual interna, muitos intelectuais chineses voltaram seu olhar para fora, especialmente em direção aos países ocidentais altamente desenvolvidos. Diversas ideias ocidentais foram introduzidas na China, sendo o socialismo e o marxismo apenas uma parte delas. No entanto, o socialismo foi a ideia que mais ressoou entre o povo chinês.

O encontro e integração da China com o socialismo foram o resultado de condições políticas, temporais e espaciais específicas. Em particular, três fatores levaram o povo chinês a abraçar o socialismo.

1. As regiões periféricas do mundo, incluindo a China, eram inerentemente contrárias à agressão dos países capitalistas ocidentais. Sendo uma civilização antiga com uma longa história própria, a China rechaçou a noção de que precisava ser descoberta, iluminada ou civilizada pelas potências do Ocidente. Após ter sido invadida e saqueada pelos países capitalistas ocidentais nos séculos XIX e XX, a China se inclinou mais ao socialismo.

2. O socialismo se identificou com os interesses dos oprimidos e a eles deu prioridade, particularmente à classe trabalhadora nos países capitalistas que resistiam ao domínio burguês, assim como às colônias e semi-colônias que resistiam à conquista por países capitalistas. Como uma nação oprimida, o povo chinês naturalmente tendia a se identificar com outros povos oprimidos e, portanto, os chineses foram atraídos pelo socialismo.

3. O socialismo revelou as falhas inerentes e a decadência do capitalismo. À medida que o povo chinês aprofundava sua compreensão sobre o capitalismo ocidental, tornava-se mais nítido o lado sombrio ocultado sob sua fachada glamorosa. Isso incluía os males do comércio de escravos, a corrida global por colônias, a situação de grupos empobrecidos nos países capitalistas e, especialmente, o massacre sangrento entre os países imperialistas durante a Primeira Guerra Mundial. Essas injustiças refletiam as falhas e contradições internas dos países capitalistas, alimentando assim o anseio do povo chinês por uma sociedade melhor. O socialismo representava a possibilidade de construir uma sociedade ideal.

Além da China, muitas colônias e semi-colônias ao redor do mundo encontraram as ideias socialistas, mas não as integraram da mesma forma. Por que, então, o socialismo se enraizou na China? A chegada do socialismo na China e sua escolha pelo povo chinês apenas demonstraram a potencialidade do movimento histórico. Para transformar esse potencial em realidade e produzir resultados positivos, outras condições cruciais eram indiscutivelmente necessárias. Entre elas, a presença de uma organização de vanguarda exemplar, uma geração de jovens dispostos a sacrificar tudo, intelectuais que simpatizavam com as massas trabalhadoras e líderes com uma compreensão profunda das condições nacionais da China e da essência do marxismo. A China tinha todas essas condições no século XX. Portanto, o socialismo se enraizou e floresceu em solo chinês.

A chegada do socialismo na China mudou a natureza da transformação social no país. No esquema do capitalismo mundial, a China estava situada na periferia, subordinada ao núcleo capitalista e relegada à dominação estrangeira. O desenvolvimento e a superação do status semi-feudal e semi-colonial da China era irrelevante para os países capitalistas centrais. Estes buscavam definir os termos de qualquer transformação social na China e garantir sua condução por agentes políticos que a orientassem para a homogeneização capitalista e os interesses do seu núcleo. Esse esquema foi encerrado após a chegada do socialismo à China, à medida que emergia uma visão diferente de transformação social. O Partido Comunista da China (PCCh) tomou o lugar dos partidos políticos burgueses do país e tornou-se a liderança da transformação social da China. Nesse processo, os operários e os camponeses, juntamente com outras classes, derrubaram a burguesia e tornaram-se a força motriz da transformação social chinesa. O plano da transformação social da China foi fundamentalmente redesenhado e passou a buscar os seguintes objetivos: oposição à agressão, opressão e exploração do capitalismo estrangeiro na China; oposição ao apoio do capitalismo estrangeiro às forças reacionárias na China; fim do domínio do feudalismo, do capitalismo burocrático e do imperialismo na China; e conquista da libertação e independência nacionais. O socialismo delineou uma visão revolucionária para a China, que subverteu completamente o conteúdo e os métodos propostos pela burguesia.

A visão socialista para a transformação social também mudou o método da China para a construção de um Estado moderno. Após a fundação da República Popular da China (RPC) em 1949, o novo Estado buscou uma transição direta para o socialismo, ao invés de seguir um caminho de desenvolvimento capitalista. Consequentemente, todo o processo de construção do Estado seguiu esse princípio, moldando a construção dos sistemas político, econômico e social básicos da China. Além disso, o Estado e suas instituições foram construídos com base nas condições específicas da China e visavam garantir a soberania do povo chinês sobre o país. Entre as principais características desse processo estão: a liderança do PCCh; o sistema de congressos do povo, que se estende do nível local até o nacional; o sistema de cooperação multipartidária e consulta política, organizado na Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC)[1]; o sistema de autonomia regional das minorias étnicas; e o sistema de governança participativa em nível comunitário. Dessa forma, a China conseguiu construir um Estado moderno e alcançar estabilidade política de longo prazo.

Por fim, o socialismo redefiniu o método para a modernização da China. Durante a transição da humanidade de sociedades agrícolas para industriais, os países europeus lideraram o processo inicial de modernização graças à vantagem de seu protagonismo na Revolução Industrial. Durante sua expansão, esses países impuseram formas incompletas e subordinadas de modernização capitalista a muitos países em desenvolvimento, incluindo a China. Esse processo não foi suave, mas caracterizado por retrocessos, estagnação e fracassos. Após a Revolução Chinesa, a República Popular da China seguiu um caminho soberano e não capitalista em direção à modernização. O PCCh efetivamente mobilizou e organizou centenas de milhões de chineses para promover vigorosamente a industrialização do país, buscando criar a base material para o socialismo. Esse processo ocorreu em um ambiente internacional hostil e passou por uma série de reviravoltas nas décadas iniciais após a revolução. Até o final da década de 1970, foi inaugurado um novo método para a modernização da China: a economia socialista de mercado, a participação ativa na economia mundial e a busca da prosperidade comum. Após o início da reforma e abertura, a China alcançou um milagre de desenvolvimento econômico rápido e duradouro, avançando significativamente na industrialização, na urbanização, na inovação tecnológica, no desenvolvimento da economia de mercado e na promoção do comércio internacional. Esses esforços incluíram a China na onda da modernização mundial.

Os parágrafos acima apresentam um esboço geral de como novas formas de socialismo e desenvolvimento socialista emergiram, com referência particular ao caso da China. O surgimento de uma forma transformadora de socialismo na China não representa um processo geral de desenvolvimento socialista, embora possa ter implicações relevantes para outros países. Pelo contrário, o nascimento e crescimento dessa nova forma ilustram vividamente a natureza diversificada do desenvolvimento socialista.

A construção de uma nova forma de socialismo que supere o capitalismo pelo auto-aprimoramento

Em meados do século XIX, o socialismo surgiu na Europa e assumiu sua forma inicial, baseada no desenvolvimento capitalista avançado como um ponto de partida. Essa forma original não desapareceu e continua a crescer lentamente. Ela se manifesta principalmente em críticas ideológicas e culturais ao capitalismo, assim como em movimentos sociais e políticos que buscam advogar pelos interesses das classes oprimidas. No entanto, essa forma de socialismo ainda tem um longo caminho a percorrer antes de poder ascender a uma posição dominante e substituir o capitalismo. As razões para isso incluem as divisões e variações dentro do próprio movimento socialista, bem como a extraordinária resiliência e capacidade de adaptação do capitalismo. Fundamentalmente, no entanto, o socialismo não cresceu nos países capitalistas desenvolvidos do mesmo modo que cresceu nos países em desenvolvimento, devido à ausência de partidos de vanguarda nos primeiros. Como resultado, o capitalismo tem sido capaz de operar normalmente.

No século XX, o movimento socialista abriu novas oportunidades de desenvolvimento em regiões não capitalistas do mundo. Países em desenvolvimento, como a China, definiram por não seguir o caminho oferecido pelos países capitalistas centrais e romperam seus laços com o capitalismo, tornando-se novas áreas de crescimento para o socialismo. Os desafios enfrentados por esses países não poderiam ser respondidos por teorias clássicas sobre a transição direta do capitalismo para o socialismo, visto que tratavam-se de sociedades pré-capitalistas ou semi-capitalistas, e estavam situados em posições históricas de atraso relativo em termos de desenvolvimento econômico, político, cultural e social. Felizmente, eles demonstraram uma iniciativa e criatividade históricas sem precedentes ao buscar revoluções, a construção de nações e a modernização orientadas ao socialismo. Como resultado, nos países em desenvolvimento surgiram teorias e práticas completamente diferentes de construção socialista, junto com novas formas de desenvolvimento socialista.

Como será a continuidade do progresso e desenvolvimento do socialismo no século XXI? Essa questão preocupa a todos os pensadores e militantes do socialismo. É evidente que as formas já mencionadas de desenvolvimento socialista e modernização tardia permanecem importantes em países em desenvolvimento e regiões não capitalistas. Ao mesmo tempo, à medida que o socialismo continua a se desenvolver na China, uma nova forma está surgindo. Tendo alcançado a modernização socialista, as forças produtivas sociais, a capacidade tecnológica, a pujança nacional como um todo e as conquistas da China em outros aspectos do desenvolvimento estão demonstrando a possibilidade de superação do capitalismo pelo socialismo, assim como sua superioridade e potencial. Para que essa nova forma de socialismo se fortaleça, a China deve ir além de seu nível atual de desenvolvimento, para alcançar um patamar mais elevado.

Essa nova forma não pode ser simplesmente uma extensão da forma existente de socialismo transformador, mas uma forma significativamente avançada. Em certo sentido, essa nova forma implica um retorno ao marxismo clássico, pois deve enfrentar a questão de como transcender o capitalismo dos países centrais (embora o faça a partir de fora). A nova forma visa superar o capitalismo por meio do auto-aprimoramento do socialismo.

Objetivamente, essa nova forma está apenas começando a surgir. Ainda não somos capazes de compreender totalmente sua direção geral e suas leis inerentes, apenas de fornecer um esboço básico de seus contornos fundamentais. Para fortalecer essa nova forma de socialismo na China, as seguintes áreas de desenvolvimento são essenciais.

1. Desenvolver uma compreensão teórica profunda e unificada do socialismo e cultivar habilidades correspondentes para alcançar um nível mais elevado de desenvolvimento. O PCCh, que lidera o desenvolvimento do socialismo na China, precisa se envolver em reflexões profundas, planejamento abrangente e estratégias de longo prazo, enquanto se adapta à situação em curso. É importante que o partido estabeleça essa base e sobre ela construa aprendizados adicionais, unifique seu pensamento e gradualmente estabeleça um processo contínuo de auto-aprimoramento. Em particular, desenvolver uma compreensão abrangente do nível de desenvolvimento do país, de seus gargalos, suas condições favoráveis e desfavoráveis, e de seus mecanismos operacionais, juntamente com uma compreensão das experiências práticas do capitalismo nos Estados Unidos e na Europa.

2. Reforçar o desenvolvimento como um todo. O nível de desenvolvimento da China é inconsistente quando diferentes campos são considerados. O desenvolvimento econômico, político, cultural, social e ecológico varia em termos de progresso, prioridades e desequilíbrios. É preciso promover o desenvolvimento equilibrado e integrado nesses cinco campos.

3. Promover o desenvolvimento de alta qualidade da produtividade e aprimorar a base material. Apesar dos grandes avanços da China ao alcançar e, em certos aspectos, superar o desenvolvimento econômico dos países capitalistas centrais, o país ainda tem um longo caminho a percorrer em termos de maior desenvolvimento da produtividade, eficiência produtiva, alta tecnologia e riqueza material. Sem isso, as vantagens inerentes do socialismo não podem ser totalmente concretizadas.

4. Fortalecer a maturidade institucional e as vantagens governamentais singulares. Esforços concretos devem ser feitos para acelerar o processo de consolidação das vantagens institucionais e governamentais singulares do socialismo. Somente assim a China pode desenvolver uma força institucional equivalente às instituições do capitalismo ocidental, que vigoram há centenas de anos.

5. Reforçar as vantagens inerentes do socialismo. O socialismo tem muitas vantagens singulares quando comparado ao capitalismo. Entre elas, tornar o povo os soberanos do país; o método centrado no povo que guia o partido, e não a influência de privilégios individuais e interesses próprios; a busca resoluta pela prosperidade comum para evitar desigualdades extremas de riqueza; os esforços coordenados para manter a natureza progressista, a integridade e a liderança forte do partido; e a ênfase na harmonia social e na prevenção de conflitos ou confrontos fundamentais entre as pessoas. Essas vantagens precisam ser valorizadas e cultivadas cuidadosamente. Além disso, um novo sistema deve ser construído para reunir e mobilizar recursos em todo o país em torno de questões importantes.

6. Reforçar o poder cultural e intelectual. Para a China, é de extrema importância ser uma nação e um Estado-civilização. A civilização chinesa possui características distintivas na linguagem, cultura e pensamento. A integração do marxismo e o surgimento de uma nova forma de socialismo na China devem muito à sua compatibilidade com a cultura chinesa, que sempre esteve profundamente enraizada na sociedade e na vida cotidiana do povo. Deve haver um esforço para transformar criativamente os valiosos recursos culturais da China em uma força cultural e intelectual mais proativa. A China também deve colaborar com outras culturas para destacar o valor da diversidade humana.

7. Destacar as vantagens comparativas globais do desenvolvimento socialista. O desenvolvimento da China criou vantagens comparativas globais em alguns setores, mesmo em relação aos países capitalistas desenvolvidos. A China avançou na modernização de um país com 1,4 bilhão de pessoas, superando a modernização combinada dos países capitalistas desenvolvidos em escala e alcance. Além disso, a modernização da China foi alcançada em um ritmo mais rápido, com custos sociais mais baixos e maior inclusão, utilizando um método mais pacífico. Essa é a maior experiência de modernização da história humana. A China também assumiu a liderança em áreas como energia renovável, proteção ecológica, redução da pobreza e desenvolvimento tecnológico, com conquistas impressionantes e comparáveis às dos países capitalistas desenvolvidos. Com a Nova Rota da Seda, a China embarcou em um ambicioso projeto de desenvolvimento cooperativo com os países do Sul Global, incentivando seus esforços de modernização. Para enfrentar os desafios comuns do mundo, a China apresentou o conceito de construir uma “comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade” (人类命运共同体, rénlèi mìngyùn gòngtóngtǐ), além de uma série de propostas para promover a paz e o desenvolvimento global. A China recebe e incorpora cooperação, concorrência e diferentes formas de modernização e desenvolvimento ao redor do mundo. À medida que a própria modernização da China continua a avançar, suas vantagens comparativas internacionais devem se tornar mais proeminentes. Em relação às tentativas hostis de contenção da China por certos países, a China responderá com perspicácia e capacidade suficiente.

Na terceira década do século XXI, as rodas do progresso avançam rapidamente. O surgimento de novas formas de socialismo entusiasma todos os socialistas. De certa forma, com mais de um século de desenvolvimento socialista, parece que retornamos à era de Marx e Engels, que continuamente refletiram sobre como o socialismo superaria o capitalismo e se tornaria seu coveiro. Hoje podemos ver que o socialismo é melhor que o capitalismo em fazer o que este supostamente faz de melhor, ao mesmo tempo em que é bem sucedido em concretizar muito do que o capitalismo não é capaz. O socialismo na China continua a se fortalecer e se esforça para superar de maneira abrangente as formas mais avançadas do capitalismo contemporâneo, como Marx e Engels imaginavam, e criar uma sociedade melhor para a humanidade. Diante da emergência de uma nova forma de socialismo, precisamos de uma nova consciência.

Notas

1. Nota editorial: O Congresso Nacional do Povo (CNP) e a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC) realizam reuniões simultâneas anualmente, em março, no evento político conhecido como as “Duas Sessões” (两会, liǎnghuì).

A terceira onda do socialismo | 20.12.2023


A terceira onda do socialismo

Yang Ping

Yang Ping (杨平) é um destacado intelectual e editor da comunidade ideológica e cultural da China contemporânea. Em 1993, fundou Estratégia e Gestão (战略与管理), uma importante revista que se contrapôs à influência do liberalismo na cultura e ideologia chinesa. Em 2008, fundou a Wenhua Zongheng (文化纵横), revista que foca na construção do sistema de valores fundamentais da sociedade chinesa, levantando sistematicamente a bandeira do socialismo. Nos últimos 15 anos, a revista tornou-se uma das plataformas de pensamento mais importantes da China.

“A terceira onda do socialismo” (社会主义的第三次浪潮) foi publicada originalmente em Junho de 2021, no número 3 da Wenhua Zongheng (文化纵横).

O capitalismo enfrenta uma grave crise

A crise financeira de 2008 e a pandemia de Covid-19 evidenciaram a grave crise enfrentada pelo capitalismo. A economia global experimentou estagnação e declínio prolongados, desemprego generalizado, desigualdades de renda abissais, dívidas excessivas e bolhas de ativos. De maneira trágica, isso foi acompanhado por uma perda significativa de vidas humanas. A atual crise do capitalismo global é a maior e mais severa desde a Grande Depressão (1929-1933).

Nessa crise, os limites do capitalismo estão cada vez mais aparentes, sejam eles limites de mercado, tecnológicos ou ecológicos. Em primeiro lugar, a escassez de novos mercados e fontes de lucro levam a uma diminuição da força motriz da acumulação de capital. Em segundo lugar, embora a inovação tecnológica impulsionada por crises permaneça ativa, os benefícios dessa inovação estão cada vez mais concentrados em poucas mãos, marginalizando a maioria das pessoas no atual sistema capitalista. Em terceiro lugar, a capacidade ecológica do mundo tem sido pressionada até seu limite e o ecossistema do planeta não pode mais sustentar as pressões impostas pelo modo de vida e de produção capitalistas.

Os mecanismos acionados tradicionalmente para lidar com crises capitalistas falharam diante da crise atual. Após quase quatro décadas de neoliberalismo, os governos capitalistas enfrentam uma crise do gasto público, na medida em que a busca por mais reformas estruturais para estimular o capital privado entra em conflito direto com a necessidade de manter os níveis mínimos de bem-estar social. As políticas de flexibilização quantitativa criaram enormes bolhas de ativos e espirais de dívida, exacerbando as severas disparidades de riqueza previamente existentes.

Sob esta crise, ressurgem muitos elementos que caracterizaram o panorama do capitalismo global antes das duas grandes guerras mundiais: o crescimento do populismo, do militarismo e do fascismo; a intensificação de divisões sociais internas; um aumento na hostilidade e na competição de soma zero entre as nações; e tendências em direção à desglobalização e à política de blocos. Com o aumento das tensões internacionais, também aumenta a possibilidade de outra guerra mundial.

As crises desencadeiam guerras e as guerras levam a revoluções. Esse tem sido um tema recorrente na história do sistema capitalista. Na terceira década do século XXI, em meio a essa grave crise, o capitalismo irá passar por reformas profundas e superar sua crise? Ou este é o “momento Chernobyl” do capitalismo, que se encaminha para o seu fim?

A história chegou, novamente, a uma encruzilhada crítica.

As três ondas do socialismo

Como movimento e crítica ao capitalismo, o socialismo sempre coexistiu com este sistema, sendo um poderoso contrapeso e buscando, constantemente, caminhos alternativos para superar e substituir o capitalismo. Desde a criação da Primeira Internacional (1864-1876), o movimento socialista mundial passou por três grandes ondas.

A primeira onda ocorreu na Europa do século XIX, quando o movimento operário europeu transitava gradualmente de um estado de existência para um estado de autoconsciência. As principais características desse período foram o surgimento do marxismo, o estabelecimento de organizações internacionais de trabalhadores e as primeiras tentativas de realizar uma revolução socialista, como a Comuna de Paris, em 1871. A primeira onda do socialismo impulsionou o despertar político e a consciência da classe trabalhadora, dando origem a partidos políticos operários em diversos países. Durante essa onda, no entanto, ainda não surgiria uma forma de Estado socialista.

A segunda onda começou com o fim da Primeira Guerra Mundial, a partir da Revolução de Outubro, em 1917, e perdurou até a dissolução da União Soviética e dos Estados comunistas do Leste europeu, entre 1989 e 1991. Durante a segunda onda, um grande número de Estados socialistas surgiu em todo o mundo, primeiro na União Soviética e no leste europeu e, após o fim da Segunda Guerra Mundial, na China, em Cuba, na Coreia e no Vietnã, entre outros. Juntos, esses países formaram um sistema ou bloco socialista internacional. Além desse sistema formado por Estados, durante a Guerra Fria, uma grande parte do movimento socialista mundial se concentrou nos movimentos de libertação nacional da Ásia, África e América Latina. Muitos deles se identificavam como socialistas ou eram significativamente influenciados pelo socialismo. Assim, as duas principais características da segunda onda do socialismo foram o surgimento da forma de Estado socialista, com ampla propriedade estatal e planejamento econômico, e os movimentos de libertação nacional.

Após o fim da Guerra Fria, o socialismo sofreu grandes retrocessos globais. Apesar disso, no entanto, uma nova onda surgiria. A terceira onda começou a se formar após a China lançar suas reformas e abertura, no final da década de 1970, e foi capaz de resistir aos severos choques e testes após a dissolução da União Soviética e dos Estados comunistas do leste europeu. Enquanto o socialismo estava em baixa no mundo, a China permaneceu comprometida com o socialismo, ao mesmo tempo em que buscava reformas e abertura, trilhando gradualmente o caminho conhecido como “socialismo com características chinesas”. A principal característica do socialismo com características chinesas foi a incorporação de uma economia de mercado no sistema socialista, formando gradualmente uma economia socialista de mercado. Hoje, apenas três décadas depois da Guerra Fria, o socialismo com características chinesas experimentou um rápido crescimento, tornando-se uma força crucial que está remodelando a ordem mundial e o futuro da humanidade. Embora esta onda do socialismo ainda esteja em seus estágios iniciais, já provoca impactos significativos e atrai a atenção de todo o mundo, oferecendo novas opções para países que buscam seguir um caminho de desenvolvimento independente, o que representa um questionamento contundente àqueles que argumentavam que o capitalismo marcava o “fim da história”.

Os limites da segunda onda do socialismo

Antes de avançar na análise da realidade atual e das perspectivas futuras da terceira onda do socialismo, devemos primeiro revisitar a segunda onda e compreender as razões que provocaram seu retrocesso.

Com a Revolução de Outubro, em 1917, e a Revolução Chinesa, em 1949, o socialismo impactou o mundo, não apenas formando um bloco de Estados que representava uma ameaça significativa ao capitalismo, mas também impulsionando uma onda de movimentos de libertação nacional no vasto Terceiro Mundo da Ásia, África e América Latina. Nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o sistema capitalista mundial estava em uma situação precária. À medida que o socialismo se espalhava globalmente, países socialistas implementaram economias planejadas no modelo soviético e sistemas de propriedade estatal, atingindo a etapa inicial da industrialização e construindo sistemas econômicos nacionais socialistas.

No entanto, o modelo soviético de economia planejada e o modelo de propriedade estatal pura tinham uma série de desvantagens. Primeiro, a economia planejada não era capaz de alocar recursos sociais e econômicos de maneira eficaz e flexível, resultando em um sistema econômico nacional rígido e distorcido que não respondia adequadamente aos indicadores da economia real. Segundo, o modelo de propriedade estatal pura e o sistema de distribuição igualitária careciam de mecanismos suficientes de incentivo ao trabalho nos níveis micro e intermediário. Isso levou à falta de concorrência construtiva e à pressão entre empresas e trabalhadores, resultando, em geral, em um nível baixo de eficiência econômica. Terceiro, as restrições e a eliminação da economia mercantil e do setor privado violaram a lei do valor e ultrapassaram o estágio de desenvolvimento das forças sociais produtivas. Disso resultou um fracasso sistêmico e de longo prazo em que o Estado não foi capaz de atender às necessidades complexas da vida econômica e social, nem de proporcionar melhorias significativas na qualidade de vida da população. Finalmente, ao longo do tempo, o planejamento e a gestão econômica do modelo soviético levaram ao desenvolvimento de um sistema cada vez mais fechado e voltado para dentro, caracterizado pelo burocratismo e dogmatismo, assim como por uma falta de sensibilidade e de capacidade de responder ao progresso tecnológico e à inovação organizacional.

Embora os retrocessos significativos da segunda onda do socialismo nas décadas de 1980 e 1990 possam ser atribuídos, em parte, a fatores externos, como a força do sistema capitalista e a fragmentação do bloco socialista, os fatores determinantes para tais retrocessos foram, em última instância, a inadequação dos mecanismos institucionais e os sistemas econômicos e sociais dos países socialistas. A insustentabilidade desses sistemas internos impulsionou as mudanças dramáticas na União Soviética, assim como o giro da China em direção à reforma e abertura.

O socialismo com características chinesas e a terceira onda do socialismo

Com o avanço da reforma e abertura, o socialismo com características chinesas se configurou como um caminho de desenvolvimento que se distinguiu tanto do modelo soviético de socialismo tradicional, quanto do capitalismo clássico de livre mercado. As teorias e a trajetória de desenvolvimento da China entram de forma contundente no cenário mundial. Embora o socialismo com características chinesas não seja um modelo estático e as práticas da China passem constantemente por experimentações, seis características principais podem ser identificadas após mais de quatro décadas dessa experiência.

A primeira característica é a prioridade dada ao desenvolvimento das forças produtivas. O socialismo com características chinesas ousa aprender com formas econômicas adequadas do capitalismo e permite o desenvolvimento do setor privado para promover o desenvolvimento rápido das forças produtivas avançadas. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da economia estatal foi planejado estrategicamente em setores-chave, formando uma relação complementar com a economia privada e criando uma estrutura de propriedade mista.

A segunda característica é que a China promoveu uma profunda integração de sua base econômica e das relações de produção socialistas com a economia de mercado, estabelecendo gradualmente um sistema econômico socialista de mercado.

A terceira característica é que, enquanto se abria e se integrava ao sistema capitalista mundial, a China sempre se empenhou em manter sua soberania nacional e em garantir a natureza continuamente socialista do Partido Comunista da China (PCCh). A China permanece vigilante contra os riscos de desvio ao capitalismo, relacionados com as demandas de desenvolver uma economia de mercado.

A quarta característica é o método chinês de enfrentar, por meio do desenvolvimento, questões relacionadas à justiça social e às desigualdades. O desenvolvimento pode proporcionar o aumento da riqueza, mas, por uma série de fatores, isso também poderia levar ao aumento de divisões sociais. Somente um desenvolvimento mais avançado pode produzir a base material e a riqueza social necessárias para superar tais divisões e desigualdades sociais. No socialismo com características chinesas, o desenvolvimento tem sido a principal estratégia para enfrentar questões de justiça social, ao passo que outros métodos são adotados complementarmente. Isso exige medidas dinâmicas e proativas, em vez de métodos rígidos e uniformes.

A quinta característica é a adoção, pelo Estado, de uma série de medidas para equilibrar a desigualdade de riqueza dentro da economia socialista de mercado. Campanhas massivas de erradicação da pobreza foram realizadas para incluir grupos marginalizados pela economia de mercado e apoiar sua saída da pobreza por meio de esforços direcionados. Além disso, a prática de assistência pareada conecta instituições públicas, empresas e outros atores de áreas desenvolvidas com áreas pobres para transferir recursos e assistência a regiões menos desenvolvidas. Ao mesmo tempo, para enfrentar desigualdades regionais, transferências de recursos das regiões mais desenvolvidas do leste para as áreas menos desenvolvidas do centro e oeste tem contribuído para reduzir as distâncias entre a receita fiscal e a capacidade de investimento. Em países capitalistas, onde a propriedade privada é considerada sagrada e onde os processos eleitorais sustentam apenas os interesses da classe dominante, essas medidas são difíceis de se imaginar, quanto mais de serem implementadas.

A sexta característica é o fato de que o PCCh não está subordinado a interesses restritos de determinados setores da sociedade. Para manter-se nessa posição, o PCCh deve permanecer imune às tentativas de infiltrações e de controle do capital, além de superar as influências do populismo e do igualitarismo rígido, mantendo um equilíbrio dinâmico entre vitalidade econômica e equidade social.

A relação entre o socialismo e a economia de mercado

A história demonstrou que é impossível eliminar artificialmente a economia de mercado no socialismo. As limitações e o fracasso do modelo soviético de socialismo são evidências disso.

A economia de mercado é uma forma econômica antiga e sua lei de oferta e demanda regula espontaneamente o comportamento econômico humano. Ela pode ser combinada com o feudalismo, com o capitalismo e com o socialismo. O grau de combinação depende do excedente de produção social. Em termos gerais, quanto maior o excedente, mais desenvolvida se torna a economia de mercado. Como disse Deng Xiaoping, “não há contradição fundamental entre o socialismo e uma economia de mercado. A questão é como desenvolver as forças produtivas de forma mais eficaz”.[1] Da mesma forma, ele afirmou: “uma economia planejada não é equivalente ao socialismo, porque também há planejamento no capitalismo. Uma economia de mercado não é capitalismo, porque também há mercados no socialismo. Tanto o planejamento como as forças de mercado são meios de controlar a atividade econômica”.[2]

O capital é o protagonista principal em uma economia de mercado moderna. O capital possui uma natureza dual: é a força mais eficiente para a alocação de recursos na economia de mercado, mas também pode manipular e monopolizar o mercado. Fernand Braudel, historiador francês e destacado estudioso da escola historiográfica Annales, argumentou que a economia de mercado não poderia ser equiparada ao capitalismo. Para Braudel, a economia de mercado “não passa de um fragmento num vasto conjunto, pela sua própria natureza que a reduz ao papel de ligação entre a produção e o consumo, e pelo fato de que, antes do século XIX, era uma simples camada mais ou menos espessa e resistente, por vezes muito delgada, entre o oceano da vida cotidiana que a inclui e os processos do capitalismo que, uma vez em cada duas, a manobram de cima”.[3] Distinto da economia de mercado, Braudel escreveu que “o capitalismo deriva, por excelência, das atividades econômicas desenvolvidas na cúpula ou que tendem para a cúpula. Por conseguinte, esse capitalismo de alto vôo flutua sobre a dupla espessura subjacente da vida material e da economia coerente do mercado, representando a zona de alto lucro”.[4] Na atual economia de mercado global, dominada pelo capitalismo moderno, forças internas de resistência a esse sistema continuam a emergir, impulsionando demandas e movimentos por igualdade econômica e social. Esses movimentos tendem a se aproximar e a defender o socialismo para enfrentar e superar as desigualdades do capitalismo. Dessa forma, o socialismo também é uma força interna da economia de mercado, um componente orgânico que, naturalmente, se opõe ao capitalismo.

Além do capital, o Estado também é um ator-chave em uma economia de mercado moderna. O Estado é um produto da demanda social por ordem e regras. Sua existência não é uma força externa imposta ao mercado, mas uma exigência intrínseca da economia de mercado. Mesmo em uma sociedade de mercado sem Estado, entidades quase governamentais irão surgir, como associações e câmaras de comércio. Além de regular e administrar a economia de mercado, o Estado frequentemente promove e desenvolve o mercado, especialmente nas fases iniciais das economias de mercado em países em desenvolvimento. Na verdade, é frequente que o Estado se torne a força motriz por trás da economia de mercado. Portanto, é um equívoco colocar o Estado e o mercado em completa oposição um ao outro, como se fossem entidades dicotômicas. O liberalismo considera o Estado como um mal absoluto e o modelo soviético de socialismo equipara a economia de mercado diretamente ao capitalismo: ambos cometem erros formalistas.

Uma economia socialista de mercado é aquela em que o movimento da economia de mercado é guiado por valores socialistas. Por um lado, esse sistema econômico adota a regulação estratégica nacional, para alavancar plenamente o papel fundamental da economia de mercado na organização da produção e do comércio, na orientação do consumo e da distribuição, e para aproveitar completamente a liderança do capital no desenvolvimento das forças produtivas avançadas. Por outro lado, utiliza o poderoso capital estatal e a superestrutura socialista para conter e equilibrar o capital privado, superar a tendência inerente da economia de mercado à divisão social e evitar o controle do capital sobre a vida econômica e social.

A economia socialista de mercado é um sistema que utiliza o papel decisivo da economia de mercado ao otimizar a função do Estado. Representa a combinação da economia de mercado moderna e do modo de produção socialista.

Manter o caráter socialista de uma economia socialista de mercado

A superestrutura e a ideologia do capital são compatíveis com seu modo de produção e seguem sua lógica operacional. Essa lógica não se altera sob as condições de uma economia socialista de mercado. O movimento espontâneo da economia de mercado e a busca dos atores capitalistas por lucro tendem a corroer a superestrutura e a ideologia do socialismo, podendo levar ao desequilíbrio ou mesmo à desintegração da economia socialista de mercado, o que conduziria a sociedade em direção ao capitalismo. Na era do capitalismo global, os desafios enfrentados pelas economias socialistas de mercado em nações soberanas tornam-se ainda mais evidentes à medida que o capital penetra nas fronteiras nacionais. Como, então, a China consegue manter o caráter e a direção socialista de sua economia socialista de mercado?

Em primeiro lugar, a chave está na liderança do PCCh e na garantia de que a natureza socialista do partido não seja alterada. Na economia socialista de mercado, o PCCh alavancou plenamente o papel do capital no desenvolvimento das forças produtivas avançadas e na promoção do crescimento contínuo da riqueza social, impedindo, ao mesmo tempo, a infiltração e manipulação do partido pelo capital. O partido controla ativamente o capital, colocando-o a serviço da maioria do povo. O Secretário-Geral Xi Jinping enfatiza a relação essencial entre a liderança do partido e o socialismo, afirmando que “a característica essencial e a maior vantagem do sistema do socialismo com características chinesas são a liderança do PCCh, sendo o Partido a suprema força de liderança política”.[5]

Em segundo lugar, a estabilidade da economia socialista de mercado também resulta do fato de que a China acumulou uma grande quantidade de ativos estatais nos últimos 70 anos de desenvolvimento, incluindo empresas, instituições financeiras e terras. O controle estatal desses ativos estratégicos sustenta a governança do PCCh e garante a independência do partido em relação às forças do capital, permitindo um governo baseado nos interesses fundamentais do país e do povo.

Em uma economia socialista de mercado, as empresas estatais e o capital estatal também devem operar e competir de acordo com as leis da economia de mercado. As lógicas do mercado e do capital penetram profundamente o comportamento cotidiano não apenas das empresas privadas, mas também das empresas estatais. Portanto, é especialmente importante garantir que os gestores desses ativos estatais massivos não se tornem agentes da burguesia, a fim de evitar que os ativos estatais sejam transformados em ativos privados ou que os gestores estabeleçam um controle interno vinculado aos interesses burgueses. Para manter o caráter socialista da economia socialista de mercado, o PCCh deve garantir tanto a eficiência operacional quanto a manutenção da propriedade estatal desses ativos.

Em terceiro lugar, a superestrutura e a ideologia do socialismo devem ser controladas pelo partido. Em setores como educação, publicações e mídia, a busca por benefícios econômicos deve estar subordinada aos benefícios sociais. A lógica da economia de mercado não deve dominar esses setores, e a liderança do partido deve ser integrada às suas operações cotidianas. Se o socialismo não fornecer liderança ideológica e cultural, o capitalismo inevitavelmente o fará.

Em quarto lugar, sob as condições de uma economia de mercado, o PCCh liderou o desenvolvimento da sociedade civil e de organizações não governamentais. O crescimento dessas forças sociais é um fenômeno inevitável em uma economia de mercado. Uma consequência do efeito de diferenciação da economia de mercado é o surgimento de demandas de diferentes grupos de interesse para lidar com questões como desigualdade de renda, degradação ambiental, desmoralização da sociedade e outros problemas gerados pelo capital privado. Considerando a forte tradição histórica de “feudalismo burocrático” da China, o desenvolvimento e construção dessas forças sociais pode contribuir para a superação do formalismo e da burocracia excessiva nos departamentos governamentais. Portanto, o partido liderou o desenvolvimento dessas forças sociais e incentivou sua organização, promovendo o desenvolvimento estável e de longo prazo da economia socialista de mercado.

Promovendo a terceira onda do socialismo

A oportunidade para uma nova onda global do socialismo emerge neste momento de grandes crises enfrentadas pelo sistema capitalista contemporâneo. O socialismo com características chinesas é um fator-chave dessa onda. À medida que a China continua a crescer e assume uma posição de liderança como potência global, o caminho do desenvolvimento chinês deve atrair mais atenção como uma alternativa viável, tanto de modo de produção como de estilo de vida, promovendo a formação de um novo sistema socialista global e de um sistema de valores que seja cada vez mais aceito pelas pessoas ao redor do mundo.

Ao mesmo tempo, durante esse período histórico de transição, o socialismo com características chinesas também enfrenta desafios e ameaças particularmente agudas. Desde a crise financeira de 2008, e especialmente desde a pandemia de Covid-19, as fortalezas do socialismo chinês tornaram-se cada vez mais evidentes no cenário internacional. A China transformou muitas dessas crises em oportunidades, impulsionando o país a alcançar um patamar mais elevado de desenvolvimento e aprimorando seu sistema e capacidade de governança. O contraste marcante entre a China e os países ocidentais nesses aspectos abalou fundamentalmente a narrativa do capitalismo ocidental. O impacto disso é maior do que apenas o poder militar e as taxas de crescimento econômico.

Como reação, diversas forças do capital internacional se mobilizam contra a China. São incontáveis os ataques e difamações de forças políticas liberais, nacionalistas e populistas. Até mesmo algumas forças da esquerda internacional criticam severamente a China em questões de democracia, direitos humanos e proteção ambiental, chegando a questionar se a China é verdadeiramente socialista. Desde que a administração Biden assumiu o poder nos Estados Unidos, a política de alianças aumentou em escala global. Uma “santa aliança” burguesa liderada pelos EUA está se formando rapidamente sob o pretexto de conter a China.

A terceira onda de socialismo que está emergindo sem dúvida irá enfrentar uma noite escura e experimentará tumultos e caos ainda mais intensos dentro do sistema capitalista mundial. Os socialistas chineses devem estar preparados.

Referências bibliográficas

Braudel, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Traduzido por Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

Deng Xiaoping. “Excerpts from Talks Given in Wuchang, Shenzhen, Zhuhai, and Shanghai” [Trechos de falas proferidas em Wuchang, Shenzhen, Zhuhai e Xangai], 18 de janeiro – 21 de fevereiro de 1992. Em Selected Works of Deng Xiaoping,vol. 5, 1982–1992 [Obras escolhidas de Deng Xiaoping, vol. 5, 1982-1992]. Pequim: Foreign Languages Press, 1994. https://en.theorychina.org.cn/llzgyw/WorksofLeaders_984/deng-xiaoping-/.

Deng Xiaoping. “Não existe contradição fundamental entre o socialismo e a economia de mercado”, 23 de outubro de 1985. Traduzido por Swen Zettler. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/deng-xiaoping/1985/10/23.htm

Partido Comunista da China. “Resolução do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre as Grandes Conquistas e Experiências Históricas na Luta Centenária do Partido”. Xinhua Português, 16 de novembro de 2021. Disponível em: http://portuguese.news.cn/2021-11/16/c_1310314696.htm.

Notas do autor

1. Deng Xiaoping, “Não existe contradição fundamental entre o socialismo e a economia de mercado”, 23 de outubro de 1985, traduzido por Swen Zettler. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/deng-xiaoping/1985/10/23.htm

2. Deng Xiaoping, “Excerpts from Talks Given in Wuchang, Shenzhen, Zhuhai, and Shanghai” [Trechos de falas proferidas em Wuchang, Shenzhen, Zhuhai e Xangai], 18 de janeiro – 21 de fevereiro de 1992, em Selected Works of Deng Xiaoping,vol. 5, 1982–1992[Obras escolhidas de Deng Xiaoping, vol. 5, 1982-1992] (Pequim: Foreign Languages Press, 1994), 361. https://en.theorychina.org.cn/llzgyw/WorksofLeaders_984/deng-xiaoping-/.

3. Fernand Braudel, A dinâmica do capitalismo, trad. Álvaro Cabral (Rio de Janeiro: Rocco, 1987), 29.

4. Braudel, A dinâmica do capitalismo, 73.

5. Ver “Resolução do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre as Grandes Conquistas e Experiências Históricas na Luta Centenária do Partido”, Xinhua Português, 16 de novembro de 2021. Disponível em: http://portuguese.news.cn/2021-11/16/c_1310314696.htm.

Vol.1 N.º 4 | 20.12.2023

Wenhua Zongheng: Revista Trimestral do Pensamento Chinês | VOL.1 N.º 4

Perspectivas chinesas sobre o socialismo do século XXI


Lü Yanchun (吕延春), Domicílios familiares do nordeste chinês (关东人家), 2005.

Como quebrar o círculo vicioso do subdesenvolvimento no Sul Global

Marco Fernandes

Marco Fernandes é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, co-fundador do Coletivo Dongsheng, membro da campanha Basta de Guerra Fria. Colabora com artigos e entrevistas para diversas mídias, sobretudo no Brasil, China e Rússia. Bacharel e Mestre em História, Doutor em Psicologia Social (todos pela Universidade de São Paulo, Brasil). Contribui com organizações populares do Sul Global. Mora em Pequim.

Diz um ditado popular chinês contemporâneo que “em 1949, o socialismo salvou a China. No século XXI, a China vai salvar o socialismo”. Em um discurso de 2018 a novos membros do Comitê Central, o presidente chinês Xi Jinping (习近平) lembrou que, após o colapso da União Soviética, se a experiência chinesa tivesse fracassado, “então a prática do socialismo teria que vagar na escuridão por um longo tempo e, de novo, seria um espectro”, como disse Marx em sua época.

Mas quais as principais características do socialismo com características chinesas? Por que mercado e planejamento não são antagônicos e como podem ser integrados em uma estratégia socialista? O que diferencia o socialismo chinês do modelo soviético? Quais os maiores desafios que a China enfrenta diante das contradições que o mercado impõe ao socialismo? A experiência chinesa pode inspirar outros países no caminho do socialismo? Estas são algumas das questões centrais levantadas pelos dois ensaios que publicamos no quarto número da edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横): o primeiro de Yang Ping (杨平), editor-chefe da edição chinesa da Wenhua Zongheng, e o segundo de Pan Shiwei (潘世伟), presidente honorário do Instituto de Marxismo Chinês da Academia de Ciências Sociais de Xangai.

No artigo A terceira onda do socialismo, Yang Ping sugere que, durante o último século e meio, existiram três ondas de socialismo científico: o surgimento do Marxismo e de movimentos revolucionários na Europa, durante o século XIX (primeira onda); a criação de um grande número de Estados socialistas e movimentos de libertação nacional, durante o século XX (segunda onda); e, diante do colapso da experiência soviética e do esgotamento do socialismo da Era Mao Tse Tung, o surgimento de uma economia socialista de mercado, iniciada com a reforma e abertura da China, nos anos 1970 (terceira onda). Da mesma forma, no artigo As novas formas do socialismo no século XXI, Pan Shiwei afirma que surgiram três formas principais de socialismo: o socialismo clássico nos centros do capitalismo europeu, as formas transformadoras de socialismo nas colônias e semi-colônias e uma nova forma de socialismo que está se desenvolvendo na China e tem como objetivo superar o capitalismo. Ambos os autores acreditam que a nova onda, ou nova forma de socialismo, está em seus estágios iniciais e discutem como ela pode fortalecer ainda mais o socialismo na China e servir de inspiração para outras nações do mundo.

Em tempos de declínio econômico das potências imperialistas, mergulhadas em um frenesi bélico na Ucrânia e na Palestina – que corre o risco de se expandir para o Leste e Sudeste da Ásia e afundar a humanidade na terceira guerra mundial –, quais são as oportunidades que a ascensão da China socialista traz para o Sul Global? Dialogando com as perspectivas dos autores dos artigos, propomos algumas ideias nesta nota editorial.

Feitos e desafios do socialismo chinês

Após 45 anos de reforma e abertura, o socialismo de mercado transformou a China em uma potência industrial, tecnológica, financeira, comercial e militar. Pelo PIB por paridade de poder de compra (PPC), uma medida mais real para a comparação de economias nacionais, a China já supera os Estados Unidos com certa folga. Em 2002, o PIB PPC da China foi de US$30,32 trilhões contra US$25,46 trilhões dos EUA. Ou seja, o PIB PPC chinês equivale a 119% do estadunidense. Para que tenhamos uma dimensão histórica desse feito para o campo socialista, em 1975, no auge econômico da URSS, seu PIB PPC chegou, no máximo, a 58% do PIB dos EUA.

A China é a maior potência industrial desde o final dos anos 2000. O país produziu, no ano passado, 26,7% de toda a manufatura do mundo, seguida pelos EUA (15,4%), Japão (5,3%) e Alemanha (4%). Ou seja, a produção industrial chinesa supera a soma da produção das três maiores nações industriais do Norte Global. Os chineses também deram saltos tecnológicos impressionantes nas últimas décadas, passando a liderar mundialmente setores como telecomunicações (5G), trens de alta velocidade, energias renováveis, refino de minerais e veículos elétricos, além de terem atingido estágios avançados em muitos outros setores, incluindo inteligência artificial, computação quântica, biotecnologia e construção civil.

A China é a maior potência comercial do mundo, sendo a principal parceira comercial de mais de 120 países. Em 2022, exportou US$6,28 trilhões, com um superávit de US$860 bilhões, fechando o ano com reservas internacionais de US$3,13 trilhões. Nas finanças, o Estado chinês controla os quatro maiores bancos do mundo – Industrial and Commercial Bank of China (ICBC), China Construction Bank (CCB), Agricultural Bank of China (ABC) e Bank of China –, com um total de cerca de US$20 trilhões em ativos. O país tornou-se a maior fonte de financiamento para o desenvolvimento global, superando todos os países e todas as instituições multilaterais, inclusive o Banco Mundial.

Por fim, a China foi capaz de um dos maiores feitos da história: a retirada de 850 milhões de pessoas da extrema pobreza entre 1978 e 2021. Segundo o Banco Mundial, isso corresponde a 76% de toda a população mundial que se encontrava nesta situação no período.

No entanto, a China ainda é um país em desenvolvimento e enfrenta enormes desafios econômicos, sociais e políticos para avançar além do “estágio primário” do socialismo, como eles assim definem. Esses desafios incluem necessidade de reduzir a desigualdade entre campo e cidade e entre regiões do país (o Leste é muito mais desenvolvido do que o Oeste), de elevar a renda e o bem-estar social dos mais de 300 milhões de trabalhadores migrantes, de reduzir o alto desemprego na juventude, de diminuir a enorme dependência econômica do setor imobiliário sob a lógica financeirizada, de enfrentar as consequências ambientais causadas por uma industrialização hiper acelerada, de se adaptar ao envelhecimento da população e à desaceleração da taxa de natalidade, de retomar a formação política marxista no Partido Comunista da China e entre as massas (uma das prioridade de Xi Jinping), e de enfrentar as táticas de guerra híbrida aplicadas pelas potências ocidentais para tentar conter o avanço chinês.

Uma onda socialista ou desenvolvimentista no Sul Global?

A China conseguiu quebrar a maldição do Terceiro Mundo e rompeu o círculo vicioso de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Após décadas de independência de sua condição de colônias das potências ocidentais, esse círculo vicioso continua definindo a experiência dos países da periferia do sistema capitalista. Graças a seu tremendo sucesso econômico, cada vez mais países do Sul Global veem a China como um exemplo que poderia ser seguido – levando-se em conta as particularidades locais –, mas também como uma possível parceira na busca de uma estratégia desenvolvimentista. A China, por sua vez, move-se cada vez mais para construir estas parcerias.

Em outubro de 2022, o relatório do 20º Congresso Nacional do PCCh apresentou uma contundente crítica marxista ao modelo ocidental de modernização, baseado na colonização, pilhagem, escravidão e exploração predatória dos recursos naturais e dos povos do Sul Global. Esse modelo não apenas serviu de base para os processos de industrialização da Europa e dos Estados Unidos, mas também para sua dominação econômica, política e militar sobre o resto do mundo, resultando na formação do imperialismo. Em resposta, a China elaborou o “caminho da modernização chinesa”, que pode ser caracterizado pelos princípios da prosperidade compartilhada entre uma população gigantesca, do progresso material e ético-cultural, da harmonia entre humanos e natureza e do desenvolvimento pacífico.

Essa consciência histórica formata a política de Estado da China, particularmente a Nova Rota da Seda (NRS), lançada em 2013, visando impulsionar o desenvolvimento do oeste chinês a partir de sua conexão com a Ásia Central. “Atravessando o rio, enquanto sente as pedras”, ao estilo Deng Xiaoping (邓小平), o governo chinês percebeu que esse poderia ser o pilar de sua estratégia para o Sul Global, assolado por mais de três décadas de neoliberalismo. Dez anos e centenas de bilhões de dólares depois, essa direção foi reforçada no 20º Congresso Nacional do PCCh, cujo relatório afirma o comprometimento da China em atuar para diminuir a distância entre o Norte Global e o Sul Global, apoiando a aceleração do desenvolvimento nas nações do Sul Global.

As recentes movimentações apontam para um estágio mais elevado de cooperação entre a China e os países em desenvolvimento. Por exemplo, na cúpula entre a China e países africanos – logo após a 15ª cúpula do BRICS, em agosto – líderes da África expressaram reconhecimento por todos os esforços chineses nas últimas duas décadas para promover a infraestrutura do continente, mas pediram à China que mude seu foco de investimento da infraestrutura para a industrialização.[1] Xi Jinping concordou com a proposta. A propósito, debate semelhante foi feito na cúpula Rússia-África, em julho, confirmando a atual estratégia africana.

Em grande parte do Sul Global, a necessidade de industrialização volta a ocupar o debate público, desde países como o Brasil e a África do Sul, até países como a Bolívia e o Zimbábue. No primeiro caso, são países que já tiveram indústrias sólidas e diversificadas, mas que sofreram um processo de desindustrialização nas últimas décadas. No segundo caso, apesar de Bolívia e Zimbábue possuírem abundantes recursos naturais, nunca tiveram condições de acumular capital suficiente para iniciar um processo de industrialização consistente, devido à dinâmica de exploração pelas potências ocidentais.

Inúmeras parcerias entre empresas chinesas estatais e privadas com países do Sul Global têm sido estabelecidas no último período, muitas delas relacionadas ao processamento local de minerais de alta demanda, ou à produção de carros elétricos. Por exemplo, bilhões de dólares estão sendo investidos pela China em fábricas de processamento de lítio na Bolívia, em uma mega usina siderúrgica e uma fábrica de lítio no Zimbábue, em plantas de processamento de níquel na Indonésia e um hub de fábricas de veículos elétricos no Marrocos. Há uma grande expectativa de que iniciativas regionais, como a NRS, o BRICS 11 e a Organização de Cooperação de Xangai, possam servir como alavancas desse processo, ainda que enfrentem oposição das potências ocidentais.

Sem esse esforço de industrialização, os povos do Sul Global não conseguirão superar os profundos problemas que ainda enfrentam, como a fome, o desemprego, a falta de acesso à educação, à moradia e à saúde de qualidade. Por outro lado, isso não será possível apenas pelas relações com a China (ou com a Rússia). Sem o fortalecimento dos projetos populares nacionais, contando com ampla participação de setores sociais progressistas, sobretudo das classes populares, dificilmente os frutos de um eventual ciclo de desenvolvimento serão colhidos por aqueles que mais precisam. Porém, são raros os países do Sul Global que vivem processo de ascensão das lutas de massas. Por isso, ainda é muito difícil vislumbrar uma “terceira onda socialista” global, mas uma nova onda desenvolvimentista – que pode tomar um caráter progressista – parece viável. A contradição principal da nossa época é o imperialismo. E todos os esforços para enfrentá-lo são estratégicos.

Não há dúvida de que a China, assim como a Rússia, têm sido tão atacadas pelas potências imperialistas exatamente porque construíram fortes nações soberanas nas últimas décadas. Além disso, a China e, em menor medida, a Rússia oferecem um leque de capacidades industriais, tecnológicas, financeiras, comunicacionais e militares às quais o Sul Global nunca teve acesso. Isso amplia as opções do Sul Global e tem o potencial de enfraquecer a hegemonia das potências ocidentais. Não foi exatamente isso que faltou para o sucesso do “projeto do terceiro mundo” entre os anos 1950 e 1970, quando ocorreu a grande onda de processos de libertação nacional e de desenvolvimentismo, cujos sonhos foram abortados pelo neoliberalismo e pela máquina de guerra do Império?

Notas do autor

1. Ver “As relações entre a China e a África na era da Nova Rota da Seda”, Wenhua Zongheng (文化纵横), edição internacional 1, número 3 (outubro de 2023). Disponível em: https://dongshengnews.org/pt/whzh-vol1-no3-pt/.

A terceira onda do socialismo

Yang Ping

As novas formas de socialismo no século XXI

Pan Shiwei

A Nova Rota da Seda da China e a industrialização africana | 03.10.2023
Zhao Jianqiu (赵溅球), Saudades de casa  (回望故乡), s.d.. Pintura com tinta chinesa, 60 x 90 cm. Crédito: Fundo Nacional de Arte da China.

A Nova Rota da Seda da China e a industrialização africana

Tang Xiaoyang

Tang Xiaoyang (唐晓阳) é diretor e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Tsinghua. Seus interesses de pesquisa incluem filosofia política, o processo de modernização global e o envolvimento da China com os países em desenvolvimento. É autor de Coevolutionary Pragmatism: Approaches and Impacts of China-Africa Economic Cooperation (Cambridge University Press, 2020) e de uma série de publicações sobre a Nova Rota da Seda. Trabalhou como consultor para o Banco Mundial, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).

O artigo “A nova rota da seda da China e a industrialização africana” (激活非洲工业化:“一带一路”能带来什么) foi publicado originalmente em agosto de 2022, no número 4/2022 da Wenhua Zongheng (文化纵横).

Há muito tempo, os governos dos países da África chegaram a um consenso: “a industrialização é a essência do desenvolvimento”.[1] Na segunda metade do século XX, as nações africanas buscaram a industrialização continuamente, empreendendo diversos caminhos para desenvolver suas próprias indústrias. Nos anos 1960 e 1970, as políticas industriais enfatizaram a auto-suficiência e a substituição de importações. Nas décadas seguintes, a adoção de programas de ajuste estrutural impulsionados pelos países ocidentais foram caracterizados pela liberalização do mercado. Entretanto, nenhuma destas políticas foram capazes de garantir o crescimento industrial sustentável na África e sua transformação.

No século XXI, os países africanos remodelaram seus caminhos rumo à industrialização e ao desenvolvimento. Por todo o continente, os governos se tornaram mais unificados na forma de pensar e formularam a ambiciosa Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (2001) e o Plano de Ação para o Desenvolvimento Industrial Acelerado da África (2007). No entanto, os objetivos dessas iniciativas ainda estão por ser concretizados. Embora, de forma geral, o valor absoluto da produção da indústria de transformação na África Subsaariana tenha crescido, a cada ano, nas últimas duas décadas, a taxa de crescimento tem sido lenta e, consequentemente, a participação da manufatura no Produto Interno Bruto (PIB) diminuiu (Gráfico 1).

Gráfico 1: Participação percentual da manufatura no PIB da África Subsaariana (1971-2018). Fonte: Banco Mundial.

Na África, o maior desafio para a industrialização é a dificuldade de integração de diversas partes em um sistema. No início da revolução industrial do século XVIII, o economista Adam Smith observou que a alta produtividade da industrialização derivava, principalmente, da divisão do trabalho, da colaboração e do uso de maquinário em várias etapas dos processos de produção, de modo a executar ações extremamente simples de forma altamente efetiva.[2] Esse padrão básico ainda é aplicado na manufatura, mas a profundidade e amplitude da divisão do trabalho e da colaboração excedem em muito as do passado. Atualmente, a manufatura de quaisquer produtos, sejam broches, calçados, bonés, computadores ou carros, requer a cooperação de uma série de empresas e fábricas. A cadeia industrial contém muitos elos e conexões relacionadas com as matérias primas, as ferramentas e o maquinário, o design, as partes e acessórios, a aprovação de produtos finalizados, a embalagem e as vendas. Uma empresa pode ser responsável por um ou por alguns desses elos, especializando-se para vencer a concorrência de mercado em uma área delimitada. Dentro de cada empresa, o processo produtivo também é altamente segmentado: uma linha de produção geralmente é composta por centenas de processos, operados simultaneamente por centenas ou milhares de trabalhadores, com o uso de um grande número de máquinas e equipamentos.

O sistema industrial moderno é estreitamente interligado e requer que cada parte execute sua respectiva tarefa de forma precisa e cronometrada. A operação de toda uma cadeia de produção pode ser perturbada por qualquer ausência ou atraso provocado por qualquer entidade, indivíduo ou mesmo por uma peça de máquina. Além disso, o fluxo massivo de materiais requer grandes quantidades de infraestrutura e capacidade de gestão integrada. Assim, o desenvolvimento da indústria moderna não pode depender apenas de empresas ou setores isolados, mas sim das capacidades abrangentes de produção e circulação do país em questão.

Os países africanos têm sido, historicamente, marginalizados na economia global, servindo como fonte de matérias primas para a Europa e a América do Norte. Muitos países do continente não tem um setor industrial completo e suas fábricas, em geral, precisam importar grande parte das peças e do maquinário do exterior. A infraestrutura e o abastecimento local de água e energia são muitas vezes limitados e incapazes de atender a demanda da produção em larga escala. Ao mesmo tempo, instalações precárias de transporte, ineficiências administrativas e complexidades políticas e geográficas resultam em um baixo nível de intercâmbio e circulação de materiais, tanto dentro da África quanto entre o continente e outras regiões. Finalmente, devido à falta de experiência prática e de treinamento sistemático, há uma série de deficiências nas habilidades técnicas e profissionais de trabalhadores, assim como nas capacidades organizacionais e de coordenação de gerentes. Esses fatores restringiram, em múltiplos níveis, o aprofundamento de uma divisão do trabalho interconectada no continente e, ao longo do tempo, a distância entre o desenvolvimento industrial africano e o de outras regiões do mundo tem crescido.

Como a Nova Rota da Seda tem promovido a industrialização na África?

A maior parte das economias africanas ainda depende primariamente da agricultura tradicional de pequena escala e se apoia na produção de subsistência. A produtividade somente poderá ser aprimorada de forma significativa e sustentável por meio da promoção da produção industrial altamente especializada e profissionalizada, junto com reformas de mercado apropriadas. Durante muito tempo, a economia da China também foi majoritariamente agrícola e passou por muitas dificuldades no caminho para o desenvolvimento industrial nacional. A partir do início da reforma e da abertura, no final da década de 1970, a China alcançou um crescimento industrial explosivo, tornando-se a “fábrica do mundo”. A experiência exitosa de industrialização chinesa despertou muito interesse em todo o mundo, inclusive entre os países africanos. Esse crescimento industrial contínuo aumentou ainda mais a demanda da China por recursos, mão de obra e mercados. No contexto de saturação dos mercados europeus e norte-americanos e de intensa concorrência doméstica, é urgente que a China encontre novos parceiros para a cooperação, assim como novas oportunidades de crescimento. Tendo em vista os interesses e aspirações comuns da China e de outros países em desenvolvimento, na Nova Rota da Seda (NRS) o fortalecimento da capacidade industrial é uma área identificada como importante para a cooperação mutuamente benéfica. Nesse mesmo sentido, a industrialização e a cooperação industrial têm sido recorrentemente enfatizadas nos planos de ação do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC). A cooperação em capacidade industrial da China com os países africanos se concentra em três aspectos principais.

1. A construção de parques industriais. Em geral, os países africanos enfrentam a escassez de fatores de produção, devido a seu nível relativamente baixo de industrialização. Visando garantir maior velocidade e fluidez nas operações da produção industrial em larga escala, as empresas chinesas investiram na criação de parques industriais locais em alguns países, introduzindo empresas nos diferentes elos da cadeia industrial para colaboração vertical, construindo infraestrutura e fornecendo serviços básicos para promover a formação de clusters industriais regionais de empresas, fornecedores e instituições interconectados. Em 2007, por exemplo, a estatal (SOE pela sigla em inglês) China Nonferrous Metal Mining Group (CNMC) criou a Zona de Cooperação Econômica e Comercial Zâmbia-China (ZCCZ), em Chambishi, na Zâmbia, para o processamento profundo de recursos naturais extraídos localmente. As empresas que operam nessa área são, em sua maioria, subsidiárias da CNMC. Elas abrangem diversas etapas da cadeia industrial de recursos de cobre e cobalto, incluindo a mineração, a fundição e o processamento. Uma série de empresas privadas chinesas e zambianas fornecem serviços de apoio, como logística e reparação de máquinas.[3] Esse projeto de parque industrial tem contribuído com os esforços da Zâmbia para, a partir da mineração de recursos, progredir gradualmente para as atividades de processamento de maior valor agregado. Em 2009, a ZCCZ inaugurou uma subzona no entorno de Lusaka, capital zambiana, agrupando empresas da indústria leve, como processamento de alimentos, bebidas e produtos plásticos, entre outros setores relacionados com a economia urbana. Mesmo sem haver conexões comerciais diretas entre as empresas estabelecidas na subzona, o fato de que tenham acesso aos serviços ali prestados, como água, energia elétrica, transporte e segurança, diminui os custos da instalação de fábricas. Em grande medida, isso contribui para encurtar o ciclo de investimento. Sem os serviços prestados nessa subzona, só o processo de licenciamento para o uso industrial de energia elétrica poderia levar anos. Pequenas e médias empresas, sem experiência internacional nem grandes volumes de capital, também podem trocar informações, aproveitando da força numérica e economizando recursos que teriam que ser despendidos devido a sua inexperiência.

2. A sinergia entre investimento industrial e construção de infraestrutura. A China é líder global nas indústrias de construção e manufatura. Em 2019, as empresas chinesas responderam por 61,9% do mercado de construção na África.[4] A construção de infraestrutura pela China provê as instalações necessárias para uma série de setores na África, como energia e transporte e, assim, apoia o desenvolvimento industrial. Para desempenhar um papel sustentável no continente, esses projetos de infraestrutura devem ser combinados com a industrialização. A necessidade de investimentos de grande escala, com um horizonte de longo prazo para o retorno lucrativo, são os principais desafios para a construção de infraestrutura na África.

Nos países em desenvolvimento, a receita gerada pelos projetos de infraestrutura pode ser insuficiente para manter as instalações em operação. Com isso em mente, os países africanos e a China planejaram conjuntamente projetos industriais interconectados com projetos de infraestrutura, de modo a melhorar a utilidade e o retorno desses empreendimentos. O caso da ferrovia Addis Ababa-Djibouti é um exemplo. Em 2016, o governo chinês orientou suas empresas a “combinar a construção de infraestrutura de grande escala com a implementação de parques industriais e zonas econômicas especiais, visando construir um cinturão industrial em torno da ferrovia para uma interação harmoniosa entre a infraestrutura de larga escala e o desenvolvimento industrial”.[5] As empresas privadas chinesas já construíram dois parques industriais próximos à capital da Etiópia, Addis Ababa, mas, nos últimos anos, as estatais da China passaram a desempenhar um papel importante. Para aproveitar toda a capacidade da Ferrovia Addis Ababa-Djibouti, a Empresa de Engenharia e Construção Civil da China (China Civil Engineering Construction Corporation) firmou acordos com o governo da Etiópia para construir uma série de parques industriais ao longo da ferrovia, em Hawassa, Dire Dawa, Kombolcha e Adama. Além disso, o China Merchants Group, estatal, participou na construção do Porto de Doraleh, com o objetivo de aumentar significativamente sua capacidade de escoamento, absorvendo o aumento do volume de carga da nova ferrovia. Da mesma forma, China e Quênia firmaram um acordo para aprimorar o porto de Mombasa e construir uma zona econômica especial em seu entorno, visando promover o desenvolvimento de longo prazo ao longo da Ferrovia Mombasa-Nairobi.

3. O foco do investimento industrial da China na África é na produção adequada aos mercados locais e, portanto, em sinergia com o desenvolvimento local, promovendo impulso sustentado para a industrialização. Alguns economistas previram que a África seguiria os países asiáticos na atração da manufatura global intensiva em trabalho, devido aos baixos custos de sua força de trabalho. O continente embarcaria, assim, em um caminho para o desenvolvimento industrial orientado para as exportações.[6] Na prática, entretanto, as indústrias africanas dependem da importação de muitos insumos, como matérias primas, componentes e peças de reposição. Sem um ecossistema bem desenvolvido de fornecedores e prestadores de serviço bem desenvolvido, as fábricas africanas enfrentam problemas crônicos, incluindo atrasos administrativos, congestionamento de tráfego, logística deficiente e taxas de câmbio instáveis, o que resulta na dificuldade de garantir a qualidade e a pontualidade dos pedidos.[7]

As empresas industriais que se estabeleceram na África para operações de longo prazo e que, simultaneamente, impulsionam o crescimento conjunto de empresas locais, tem como foco principal os mercados domésticos dos países africanos, distanciando-se, portanto, de modelos orientados à exportação. Suas operações de produção, abastecimento, marketing e vendas estão todas enraizadas no continente africano. Um exemplo é Sun Jian (孙坚), empresário da província de Wenzhou, na China, que, em 2010 viajou pela Nigéria e percebeu que uma grande quantidade de produtos de cerâmica era importado do exterior. Sun viu uma oportunidade comercial. Por serem pesados e frágeis, os produtos de cerâmica não são propícios para o transporte. Se uma empresa produzisse localmente, teria grande vantagem no mercado. Com um investimento de 40 milhões de dólares, Sun rapidamente estabeleceu a Fábrica de Cerâmica Wangkang na Nigéria, e seus produtos foram rapidamente popularizados entre consumidores locais, de modo que a oferta tornou-se insuficiente.[8]Ao longo da última década, a empresa construiu cinco fábricas de revestimentos na Nigéria, em Gana, na Tanzânia e em Uganda, respondendo por 25% da capacidade de produção de revestimento de cerâmica em toda África. Esse exemplo ilustra como o desenvolvimento industrial pode ocorrer a partir de um exame minucioso do mercado africano e da identificação de nichos.

As empresas transnacionais costumam negligenciar o mercado africano e raramente se dedicam a atender as necessidades e os interesses dos consumidores locais. Em geral, os produtos exportados para a África são mais caros e ultrapassados. Ao estabelecer relações econômicas e comerciais mais próximas com os países africanos, as empresas chinesas desenvolveram um conhecimento mais apurado sobre o mercado africano, identificando novas tendências. As empresas chinesas têm estabelecido suas fábricas para produzir localmente bens de uso cotidiano, como materiais de construção, móveis, plásticos, alimentos, medicamentos, roupas e calçados. A produção local não apenas reduz significativamente os custos de transporte como também assegura que os produtos sejam segmentados e respondam às tendências do mercado e às mudanças nas preferências dos consumidores. Esses produtos fabricados localmente não substituem as importações, mas preenchem lacunas no mercado.

São duas as razões pelas quais as empresas chinesas podem entender melhor os mercados africanos e aproveitar oportunidades industriais: os vários anos de cooperação econômica entre China e África e a força do sistema industrial chinês. O fundador da Wangkang não era, originalmente, empresário do setor de revestimentos, mas, quando percebeu a oportunidade, entrou rapidamente em contato com fornecedores de equipamentos de produção de cerâmica na China e, em poucos meses, conseguiu montar linhas de produção na África. Wangkang pôde contar com as empresas chinesas para instalação, depuração, treinamento e serviços de manutenção. A China é o único país do mundo que reúne todas as categorias listadas na Classificação Internacional Normalizada Industrial de Todas as Atividades Econômicas (CINI) das Nações Unidas, abrangendo tanto as tecnologias de alta precisão quanto os setores tradicionais de baixo custo.[9]

Devido ao fornecimento instável de energia e às dificuldades de manutenção especializada, muitos maquinários de precisão provenientes da Europa e dos Estados Unidos não são os mais adequados para utilização na indústria africana. Em sentido inverso, alguns equipamentos básicos fabricados na China funcionam bem nesse cenário, assim como são econômicos e duráveis. O sistema industrial abrangente da China pode ser usado pelos investimentos industriais no mercado africano, de modo a fornecer serviços robustos de suporte para as atividades de produção na África. Essas fábricas obtêm as principais matérias primas localmente, assim como vendem sua produção no mercado local, formando gradualmente um sistema industrial inicial de produção e circulação. Embora essas indústrias comecem pequenas, elas podem impulsionar o desenvolvimento cíclico abrangente e são um caminho mais sustentável para a industrialização.

Isso é exemplificado pelo crescimento da indústria local de reciclagem de plástico, em Gana. Inicialmente, uma empresa da província de Fujian, na China, começou a coletar os vasilhames de água descartados pela população local, pois estes poderiam ser processados e vendidos como sacolas plásticas de compra. Embora esse fosse um trabalho difícil e cansativo, a empresa era lucrativa porque não enfrentava nenhuma concorrência. Isso logo atraiu muitos seguidores. Assim, mais de dez empresas chinesas seguiram o exemplo, e foram seguidas por empresas locais. Como seus parceiros chineses, estas empresas encontraram fornecedores de máquinas e equipamentos e também entraram nesse setor. Nos primeiros seis ou sete anos, os novos atores não se envolveram em uma concorrência feroz. Ao contrário, trabalharam em conjunto para aumentar o tamanho do “bolo” da indústria (把行业蛋糕做大, bǎ hángyè dàngāo zuòdà).

O alcance geográfico da reciclagem gradualmente se expandiu, de Accra, capital, para todo o país, assim como foram desenvolvidas divisões na cadeia industrial. Por estarem mais familiarizadas com o ambiente social, as empresas locais são mais eficazes em localizar os depósitos de embalagens descartadas e têm se concentrado mais na reciclagem e no processamento primário, empregando centenas de trabalhadores na coleta de resíduos sólidos. As empresas chinesas têm maior domínio sobre produção e maquinário, tendo crescentemente investido em alta tecnologia e processamento final. Além disso, muitas empresas chinesas e ganesas voltaram sua atenção para outros tipos de reciclagem e processamento de plástico. Ao identificar oportunidades de mercado, as empresas chinesas e ganesas impulsionaram o desenvolvimento de toda a cadeia de reciclagem e processamento de plásticos e de um pólo industrial em Gana.[10]

Desafios e soluções da cooperação industrial sino-africana

A cooperação industrial sino-africana teve importantes conquistas nas duas primeiras décadas do século XXI, apoiando-se em um modelo singular de colaboração e complementaridade de estruturas econômicas. Em todo o continente africano, milhares de empresas chinesas investiram em, ou co-construíram, dezenas de parques industriais, empregando uma grande quantidade de trabalhadores locais e impulsionando o crescimento de fornecedores, prestadores de serviços e empresas derivadas.[11]A China estabeleceu seis zonas de cooperação comercial e econômica em países como Egito, Zâmbia, Nigéria, Ilhas Maurício e Etiópia, atraindo mais de 300 empresas e empregando mais de 30 mil trabalhadores locais.[12] Entretanto, os desafios de longo prazo que a África segue enfrentando em sua busca por industrialização são também desafios para o crescimento sustentável da cooperação industrial sino-africana.

Conforme discutido anteriormente, o desafio central da industrialização africana está relacionado com a falta de cooperação sistemática. A cooperação sino-africana avançou ao solucionar alguns problemas de coordenação por meio da construção de infraestrutura e parques industriais, do estabelecimento de cadeias de abastecimento e da conexão entre mercados. Contudo, para um maior desenvolvimento industrial será necessário muito mais do que o fornecimento de equipamentos ou a construção de fábricas. Para se industrializar, os países em desenvolvimento precisam passar por mudanças profundas em suas estruturas sociais e em sua visão de mundo. Esse processo será diferente em cada país ou região, já que dependem das particularidades das histórias, culturas e costumes locais. Por sua vez, ao estabelecer parcerias com países africanos, a China deve compreender as condições e complexidades locais. As empresas chinesas precisam encontrar as formas mais adequadas para lidar com as contradições e com os conflitos que possam surgir, envolvendo os trabalhadores locais, as comunidades nativas, os parceiros comerciais e os órgãos governamentais. Isso se torna particularmente importante com o aumento das tensões internacionais e as tentativas de forças políticas estrangeiras de inflamar controvérsias, instrumentalizando-as para favorecer suas próprias agendas.

No início dos anos 1970, Gunnar Myrdal, economista sueco laureado do prêmio Nobel, apontou que os sistemas sócio-econômicos se auto-reforçam. Devido à inércia social, as dificuldades para os países não industrializados impulsionarem a transição em direção às sociedades industriais são muito maiores do que aquelas que os países desenvolvidos enfrentam para continuar seu desenvolvimento industrial. São diversos os fatores políticos, econômicos, sociais e culturais que atuam para manter esses países em um estado de equilíbrio rebaixado.[13] De acordo com o economista singapurense-americano Yuen Yuen Ang, o desenvolvimento tem um “problema fundamental”, no qual a prosperidade econômica de um país geralmente requer um forte apoio institucional, “mas a obtenção dessas pré-condições também parece depender do nível de riqueza econômica”.[14] Isso cria um dilema do tipo “o ovo ou a galinha”: muitos países em desenvolvimento não tem os recursos para aprimorar seus ambientes institucionais e, consequentemente, não são capazes de impulsionar o desenvolvimento industrial sustentável e de longo prazo. Dessa forma, a economia declina ainda mais, assim como o ambiente institucional se deteriora.

A superação desse dilema cíclico é fundamental para a industrialização africana, assim como para o sucesso de longo prazo da cooperação sino-africana. Para reverter esse círculo vicioso, é preciso aprimorar tanto o “ovo” quanto a “galinha”, ou seja, o crescimento econômico e o desenvolvimento institucional, promovendo, assim, um ciclo de reforço mútuo.

A formação dessa sinergia só poderá ocorrer quando os esforços de todas as partes envolvidas no processo de industrialização estiverem orientados para atingir o mesmo objetivo de promover o crescimento sustentável da produtividade. Na prática, entretanto, não é fácil concretizar esse tipo de cooperação. Na busca pela industrialização, a maioria dos membros da sociedade não se orientam para o crescimento de longo prazo da produtividade, mas só conseguem enxergar as atividades locais e buscar benefícios de curto prazo, desviando-se, assim, do objetivo final. Nesse sentido, para que os países africanos rompam com as limitações do passado e alcancem um progresso contínuo, a determinação de como promover o amplo reconhecimento e o compromisso de todas as partes da sociedade com a industrialização se torna uma questão importante.

Um dos principais desafios da cooperação comercial e econômica sino-africana tem a ver com as diferentes perspectivas e objetivos dos diferentes atores.[15] Um exemplo disso é a Empresa Têxtil de Amizade Tanzânia-China, operada conjuntamente por ambos países. Se, por um lado, os principais objetivos dos executivos chineses são melhorar a produtividade e os lucros da empresa, por outro lado, os executivos tanzanianos, nomeados pelo governo local, não estão preocupados apenas com a eficiência operacional, mas também com a geração de empregos e a receita tributária, além de buscar o aumento das compras de algodão produzido localmente.[16] Da mesma forma, geralmente há diferenças entre os objetivos dos atores envolvidos na construção de infraestrutura e de parques industriais: as empresas chinesas, por exemplo, pretendem aumentar seus lucros, os funcionários do governo chinês buscam melhorar as relações políticas bilaterais, os funcionários dos governos africanos estão preocupados com a receita fiscal e com as oportunidades de geração de emprego, enquanto as populações locais, por sua vez, esperam que os projetos beneficiem as comunidades e suas condições de vida. Mesmo que esses objetivos estejam relacionados entre si e que sejam compatíveis de muitas formas, prioridades distintas podem levar a desacordos e conflitos. No sentido de construir consensos e coordenar os esforços, os diferentes atores precisam fazer ajustes e priorizar o objetivo maior de industrialização, em detrimento de seus respectivos objetivos individuais. Isso contribui para encontrar um terreno comum, respeitando as diferenças, e para obter resultados mutuamente benéficos, o chamado “ganha-ganha” para todos.

Um processo semelhante de adaptação e integração de diferentes perspectivas também aconteceu durante as reformas na China. Em momentos variados ao longo das últimas quatro décadas, o Estado teve que lidar com diferentes tendências na sociedade, incluindo conservadorismo, protecionismo e liberalismo. Por meio de orientação teórica e gestão administrativa, foi possível, finalmente, unificar os diferentes setores nos esforços de desenvolvimento industrial. O desafio da cooperação internacional sino-africana é o fato de incluir múltiplos Estados, cada um com seu próprio sistema de governança. Existem, portanto, questões que não podem ser resolvidas por uma liderança centralizada. O único caminho para a cooperação é por meio de intercâmbios em pé de igualdade. Nesse sentido, os parceiros sino-africanos deveriam aderir ao espírito progressista de “cruzar o rio sentindo as pedras” (摸着石头过河, mōzhe shítou guòhé), segundo o qual há uma ênfase em diálogos robustos, disposição para compromissos e ajustes, entendimento mútuo e consensos. No exemplo da Empresa Têxtil de Amizade Tanzânia-China, o lado chinês respeita as tradições e os interesses tanzanianos, mantém um grande número de funcionários de carreira e dialoga ativamente com as organizações sindicais, ao mesmo tempo em que destaca a natureza de mercado da empresa, introduzindo o sistema de bônus por peça e identificando áreas para melhorar a produtividade.[17] Da mesma forma, nos projetos de parques industriais e de infraestrutura, a cooperação sino-africana aprende com o rápido desenvolvimento econômico da China nos últimos quarenta anos, mas não se limita a um molde fixo. Essa cooperação é orientada pelo princípio “ganha-ganha” na busca de um crescimento econômico sustentável e de longo prazo, que considera as necessidades das partes e tem abertura para sacrificar alguns lucros comerciais de curto prazo em função de interesses políticos e sociais mais amplos.[18]

É evidente que a troca de ideias nem sempre conduz ao entendimento mútuo entre atores que cooperam entre si. A longo prazo, entretanto, tais intercâmbios são fundamentais, além de ser o método mais efetivo para assegurar o desenvolvimento contínuo e profundo da cooperação sino-africana. Esse é um ponto enfatizado pela China em sua parceria com países africanos, baseando-se em sua própria experiência de desenvolvimento, o que torna esse método muito diferente da abordagem dos países ocidentais.

O caráter e significado das relações sino-africanas

O Ocidente tende a adotar uma postura condescendente em relação ao desenvolvimento e à industrialização da África. Seja no papel de governante colonial, suserano ou doador, os países desenvolvidos ocidentais sempre julgaram os países africanos de acordo com seus próprios sistemas políticos e econômicos, criticando a África como “atrasada” e impondo seus próprios modelos ao continente. Por exemplo, durante o Consenso de Washington, os Estados Unidos e os países europeus frequentemente usaram métodos coercitivos, como a recusa de ajuda e a aplicação de sanções para forçar os países africanos a implementar as políticas econômicas ocidentais de livre mercado. Consequentemente, a abordagem ocidental não só não conseguiu se integrar organicamente às sociedades africanas, como também promoveu a divisão e a instabilidade, atrasando os esforços africanos para alcançar uma transformação industrial abrangente e sustentável.

Em sua própria história e desenvolvimento, a China sofreu pressões externas e contratempos semelhantes aos dos países africanos. Por meio de sua própria busca, o país encontrou um caminho eficaz para a industrialização. Portanto, quando se trata das contradições, dos desafios e das complexidades enfrentadas pelos países em desenvolvimento na busca pela industrialização, a China tem perspectivas e compreensões diferentes das ocidentais. Em suas relações com os países africanos, a China destaca a importância do desenvolvimento econômico e do crescimento contínuo da produtividade. Ao mesmo tempo em que busca constantemente sua própria modernização e crescimento industrial, a China também pretende promover o desenvolvimento comum com a África, de modo que o continente possa romper com a pobreza e o subdesenvolvimento e não seja mais controlado e oprimido pelo Ocidente. Assim, a China coopera com os países africanos com o objetivo de aumentar a produtividade. O país mantém uma atitude aberta e pragmática em relação à forma como os países africanos buscam a transformação econômica em suas condições nacionais diversas e singulares. Em vez de impor políticas ao continente africano, a China incentiva cada país a trilhar seu próprio caminho de desenvolvimento, sem que sigam cegamente nenhum modelo. A Nova Rota da Seda é orientada pelos princípios de desenvolvimento colaborativo e soberania nacional e, assim, promove conexão de infraestrutura, comércio, integração financeira, políticas complementares e intercâmbios entre pessoas.

Além de ser necessária para o crescimento econômico, essa perspectiva singular da cooperação industrial sino-africana é orientada por um pensamento político profundo. Embora enfatize o desenvolvimento econômico e a eficiência do mercado, a China não ignora o conteúdo político em sua cooperação com os países africanos. A ênfase na produtividade decorre da experiência prática chinesa na luta contra o domínio das potências ocidentais: somente com desenvolvimento industrial e com uma economia de mercado o país foi capaz de resistir à influência e interferência estrangeiras. Essa orientação também é consistente com a política chinesa de longa duração de apoio à independência e à soberania dos países africanos e de oposição ao hegemonismo ocidental. No período contemporâneo, o apoio político internacional é mais eficaz e sustentável por meios econômicos. Ao mesmo tempo, a ênfase no intercâmbio igualitário na cooperação sino-africana não é uma postura puramente política, mas se orienta pelo fato de que a comunicação e a cooperação de longo prazo são necessárias para o estabelecimento de um novo sistema industrial e de mercado global que se liberte do histórico círculo vicioso do “ovo ou galinha”.

À medida que os países africanos avançam em seus caminhos para a industrialização, distintas classes sociais serão afetadas de maneiras profundamente diversas e, assim, seus sentimentos e suas visões sobre as reformas econômicas poderão ser muito diferentes. Esse é um grande desafio e uma oportunidade histórica para a cooperação industrial sino-africana. À medida que a infraestrutura, as instalações industriais e outros projetos chineses se desenvolvem na África, ambos os lados aprofundam seu entendimento mútuo e sua integração por meio da prática. De uma perspectiva tanto política quanto econômica, África e China compartilham os mesmos objetivos gerais de promoção da industrialização e, portanto, podem superar barreiras temporárias e contratempos por meio de diálogos e ajustes. Nesse processo gradual, a cooperação rica e extensiva em múltiplos níveis pode ajudar China e África na construção de consensos e de conexões mais próximas e profundas.

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Notas do autor

1. União Africana. Action Plan for the Accelerated Industrial Development of Africa [Plano de Ação para o Desenvolvimento Industrial Acelerado da África]. Addis Ababa: União Africana, 2007.https://new-ndpc-static1.s3.amazonaws.com/pubication/AU+ActionPlanAcceleratedIndDevt+In+Africa_2007.pdf.

2. Adam Smith, A Riqueza das Nações (1776). Edição brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

3. Tang Xiaoyang e Tang Xiyuan, “Da iniciativa governamental à orientação de mercado: a trajetória do desenvolvimento sustentável em Zonas Industriais no exterior” [从政府推动走向市场主导:海外产业园区的可持续发展路径], Revista de Relações Internacionais [外交评论], n. 6 (2019).

4. “ENR’s 2018 Top 250 International Contractors” [ENR: 250 maiores empreiteiras internacionais de 2018], Engineering News-Record, Agosto de 2018. Disponível em: https://www.enr.com/toplists/2018-Top-250-International-Contractors-1.

5. “Comentários de Lin Songtian, Diretor-geral do Departamento de Relações Africanas do Ministério de Relações Exteriores, na sessão plenária da 5ª Reunião do Fórum de Think Tanks China-África” [外交部非洲司司长林松添在中非智库论坛第五届会议全体会上的发言], Ministério de Relações Exteriores da República Popular da China, 18 de abril de 2016.

6. Justin Yifu Lin, “From Flying Geese to Leading Dragons: New Opportunities and Strategies for Structural Transformation in Developing Countries” [De gansos voadores a dragões líderes: novas oportunidades e estratégias para a transformação estrutural nos países em desenvolvimento], Policy Research Working Paper 5702, World Bank, Washington, DC, Junho 2011, https://deliverypdf.ssrn.com/delivery.php?ID=151120095066121017086110100011097102095011057072042089006030028017046042056053014031125070127085022090033079045099115074121104122000080072113026007085123126126119109090069088106028078078071&EXT=pdf&INDEX=TRUE.

7. Tang Xiaoyang, “The Impact of Asian Investment on Africa’s Textile Industries” [O impacto do investimento asiático na indústria têxtil da África]. Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy, Pequim, Agosto 2014. https://carnegieendowment.org/files/china_textile_investment.pdf.

8. Sun Jian (fundador do grupo Wangkang), entrevista realizada pelo autor, estado de Ogun, Nigeria, Julho de 2014.

9. Yang Yang, “China Becomes World Leader in Industrial Economy Scale” [China se torna líder mundial em economia industrial de escala], China Daily, 23 de setembro de 2019. Disponível em: https://global.chinadaily.com.cn/a/201909/23/WS5d888ad6a310cf3e3556cf80.html.

10. Tang Xiaoyang, “8 Geese Flying to Ghana? A Case Study of the Impact of Chinese Investments on Africa’s Manufacturing Sector” [8 gansos voando para Gana? Um estudo de caso sobre o impacto dos investimentos chineses no setor industrial da África]. Journal of Contemporary China 27, n. 114, 2018.

11. Irene Yuan Sun, Kartik Jayaram e Omid Kassiri. “Dance of the Lions and Dragons: How Are Africa and China Engaging, and How Will the Partnership Evolve?” [Dança de leões e dragões: como a África e a China se articulam e como essa parceria irá evoluir?], McKinsey & Company, Junho de 2017, disponível em: https://www.mckinsey.com/~/media/mckinsey/featured%20insights/middle%20east%20and%20africa/the%20closest%20look%20yet%20at%20chinese%20economic%20engagement%20in%20africa/dance-of-the-lions-and-dragons.ashx.

12. Tang Xiaoyang. Coevolutionary Pragmatism: Approaches and Impacts of China-Africa Economic Cooperation [Pragmatismo co-evolucionário: Abordagens e impactos da cooperação econômica China-África]. Cambridge: Cambridge University Press, 2020.

13. Gunnar Myrdal, The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline [O desafio da pobreza mundial: esboço de um programa mundial de combate à pobreza]. Londres: Allen Lane, 1970, p. 268.

14. Yuen Yuen Ang, How China Escaped the Poverty Trap [Como a China escapou da armadilha da pobreza]. Ithaca: Cornell University Press, 2016, p. 1.

15. Kuang Lulin, “A influência das diferenças culturais na cooperação comercial e econômica sino-africana e as medidas de resposta” [文化差异对中非经贸合作的影响及其应对], Tribuna de Ciência e Indústria [产业与科技论坛], n. 3, 2019.

16. Wu Bin (executivo da Empresa Têxtil de Amizade Tanzânia-China), entrevistas com o autor, Dar es Salaam, Tanzânia, Setembro 2011 e Agosto 2014.

17. Ibidem.

18. Tang, Coevolutionary Pragmatism.

O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente? | 03.10.2023

Pan Jianglong (潘江龙), Ao leste do Saara (撒哈拉以东), 2017. Técnica mista sobre tela, 120 x 120 cm. Crédito: Fundo Nacional de Arte da China.


O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente?

Zhou Jinyan

Zhou Jinyan (周瑾艳) é professora assistente na Academia de Governança Global e Estudos de Área de Xangai (SAGGAS, pela sigla em inglês), da Universidade de Estudos Internacionais de Xangai (SISU). Suas pesquisas recentes têm como foco principal os caminhos de desenvolvimento africano e a comparação entre a cooperação chinesa e ocidental para o desenvolvimento da África. Ela realizou pesquisa de campo em Angola, Etiópia, Tanzânia e Ruanda.

O artigo “O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente?” (中国方案与非洲自主工业化的新可能) foi originalmente publicado em fevereiro de 2019, no número 1/2019 da Wenhua Zongheng (文化纵横).

Desde que conquistaram a independência, os países africanos têm sido incansáveis em sua busca por industrialização, visando superar sua situação de dependência na ordem econômica global. Em 1989, a Organização da Unidade Africana (precursora da União Africana) e, em seguida, a Assembleia Geral das Nações Unidas declararam o 20 de novembro como o Dia da Industrialização da África para incentivar a conscientização e cooperação internacional em apoio à industrialização africana. Infelizmente, essas aspirações ainda não foram alcançadas.

O desenvolvimento econômico do continente tem passado por processos importantes no século XXI. As relações entre a África e as economias emergentes, incluindo a China, se desenvolveram rapidamente, alterando a posição estratégica do continente na globalização. Entre 2000 e 2014, um período de altas taxas de crescimento levou ao surgimento de uma narrativa sobre “o crescimento africano” na mídia ocidental. A imagem da África se transformava, de um “continente de desespero” em um “continente repleto de esperança”.[1] No entanto, por trás das representações de ascensão da África, os números permaneceram desanimadores. Em 1970, a participação da África na manufatura global era de 3% e, em 2014, a participação havia caído para menos de 2%. Enquanto isso, em 2017, em toda a África Subsaariana, a participação da indústria manufatureira no Produto Interno Bruto (PIB) girava em torno de 10%, percentual semelhante ao da década de 1970. Com exceção de alguns países, como a África do Sul, Egito, Nigéria e Marrocos, a taxa de crescimento industrial na maior parte dos países africanos tem sido inferior à taxa de crescimento econômico geral. Em suma, a África tem experimentado crescimento sem industrialização. Suas altas taxas de crescimento econômico são resultado do aumento da demanda e dos preços de recursos naturais, o que as torna insustentáveis.

Partindo de uma análise das experiências da África em direção à industrialização, esse artigo pretende responder a três questões. Por que as décadas de ajuda ocidental não promoveram a industrialização africana? Quais foram as experiências realizadas pelos países africanos em seus caminhos rumo à industrialização? E, finalmente, como aprendiz e parceira no caminho da industrialização, como a China pode contribuir com a industrialização da África?

O fracasso do receituário ocidental para o desenvolvimento

Na década de 1960, os Estados africanos, recém independentes, iniciaram seu caminho de desenvolvimento industrial. Após seis décadas, no entanto, eles ainda não conseguiram concretizar a industrialização. As explicações mais comuns costumam responsabilizar fatores endógenos pelos baixos níveis de desenvolvimento no continente, tais como o clima, a geografia, a diversidade étnica e a cultura. No entanto, essas explicações não consideram que tais questões existem, de uma forma ou de outra, em todos os países que hoje são desenvolvidos.[2] Além disso, em geral os impactos históricos e atuais da intervenção ocidental no continente são reduzidos ou ignorados. O colonialismo transformou a África em uma fonte de matéria-prima para os poderes imperialistas e em um depósito de mercadorias, produzindo subdesenvolvimento em diversos aspectos. Por exemplo, os governos coloniais criaram sistemas educacionais focados em treinar funcionários para auxiliar a administração das colônias, ao invés de formar cientistas e engenheiros. Nas décadas recentes, as receitas e modelos fracassados impostos pelo Ocidente à África também tiveram impactos negativos no desenvolvimento do continente.

Uma série de disputas em torno dos papéis que o Estado e o mercado deveriam ter no desenvolvimento econômico marcaram o debate ocidental. Durante a primeira metade do século XX, economistas ocidentais influentes, entre eles John Maynard Keynes, propuseram teorias incentivando os governos a fortalecer seu papel de regulação e intervenção na economia. Tais políticas foram amplamente implementadas na Europa ocidental e nos Estados Unidos, até a década de 1970 e início dos anos 1980, quando a intervenção estatal passou a ser desacreditada e o liberalismo econômico favorecido. Os países ocidentais passaram a considerar que os modelos econômicos liderados pelo Estado não eram mais sustentáveis e começaram a implementar as políticas neoliberais. Tais políticas incluíam a privatização de empresas estatais e de instituições públicas, assim como a redução do gasto público.[3] O Ocidente também usou a força para impor políticas neoliberais em grande parte do mundo e, com frequência, testou suas ideias neoliberais em países do Sul Global, incluindo os países da África, impedindo sua busca por industrialização. A imposição da ideologia e das teorias econômicas ocidentais impediram que os países africanos formulassem estratégias de desenvolvimento adequadas às suas condições nacionais.[4]

Nos anos 1960 e 1970, os países africanos implementaram uma variedade de estratégias de desenvolvimento lideradas pelo Estado. No entanto, o desempenho econômico do continente ficou atrás de outras regiões em desenvolvimento. Os modelos de desenvolvimento liderado pelo Estado foram responsabilizados não apenas pelo crescimento econômico lento, como também pela corrupção e ineficiências governamentais. Junto com as crises cambiais que afetaram a maioria dos países africanos durante os anos 1980, estes não viram alternativa a não ser recorrer às instituições de Bretton Woods, aceitando os programas de ajuste estrutural impostos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Durante as décadas seguintes, a onda de liberalização econômica, privatizações e desregulação varreu toda a África. Orientados pelo receituário neoliberal do Ocidente, os países africanos foram essencialmente desindustrializados, o que significou um retrocesso em muitos dos avanços das décadas anteriores. As políticas de laissez-faire não trouxeram desenvolvimento e prosperidade para a África. Nos anos 1960 e 1970, a renda per capita de países da África Subsaariana cresceu em uma taxa anual de 1,6%. Entre 1980 e 2004, a renda per capita decresceu 0,3% ao ano.[5]

Na primeira década do século XXI, a maioria dos países africanos experimentou um rápido crescimento econômico devido ao boom das commodities. No entanto, sob o neoliberalismo e como consequência da ausência de estratégias de industrialização, poucos países conseguiram alcançar transformações econômicas estruturais e avanços tecnológicos. Durante esse período, o Banco Mundial e os países ocidentais doadores mudaram o foco de sua Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) da África para “melhorar o ambiente de negócios”, ou seja, para promover reformas favoráveis ao setor privado. Segundo eles, isso conduziria ao desenvolvimento industrial.[6] De acordo com uma pesquisa realizada pela Brookings Institution em oito economias subsaarianas, essa agenda de ajuda foi “mal implementada e insuficiente”.[7] De fato, as reformas que visam aprimorar o ambiente de negócios são inadequadas para resolver os desafios enfrentados pelas economias africanas na concorrência industrial global. Além disso, mesmo em países africanos de baixa renda, com ambientes de negócios extremamente frágeis, o crescimento rápido pode ser alcançado em áreas e indústrias específicas.[8] As políticas orientadas a aprimorar o ambiente de negócios refletem a crença da comunidade ocidental de ajuda ao desenvolvimento, segundo a qual a industrialização só poderia ser construída em bases neoliberais. O economista chinês Wen Yi (文一) sintetizou o problema do receituário ocidental de desenvolvimento como “tomar o teto como fundação, tomar o resultado como causa […] tomar os resultados da industrialização ocidental como pré-requisito para o desenvolvimento econômico”.[9]

A ajuda ocidental promoveu a dependência econômica da África, enquanto a hegemonia política, econômica e ideológica do Ocidente reduziu a autonomia e o espaço político do continente. Dos programas neoliberais de ajuste estrutural às estratégias de reformas orientadas a aprimorar o ambiente de investimento e negócios, o receituário ocidental não apoiou o desenvolvimento africano. Sob esse modelo, muitas políticas de desenvolvimento africano foram formuladas fora do continente, sem as contribuições, nem a liderança, do pensamento africano nativo sobre o desenvolvimento. Em matéria de industrialização e desenvolvimento econômico, as posições dominantes no panorama intelectual foram ocupadas por acadêmicos e políticos sediados em Paris e Washington. O pensamento africano independente foi marginalizado, ao mesmo tempo que a elaboração pelos países africanos, de estratégias de industrialização baseadas em suas condições nacionais, foi desencorajada.

Finalmente, dois fatores adicionais impediram que a ajuda ocidental promovesse a industrialização na África. Em primeiro lugar, a preocupação dos países ocidentais doadores é que, se a África alcançar a industrialização, o continente se tornará um concorrente. Por isso, colocam limites aos avanços industriais da África. Em segundo lugar, os países ocidentais industrializados transferiram os setores industriais altamente poluentes e de mão de obra intensiva, e de baixo custo, para o Leste Asiático, entrando em um estágio de desenvolvimento pós-industrial. Com essa divisão internacional da produção, o Ocidente não precisa transferir indústrias para a África e, portanto, não tem motivos para promover a industrialização africana.

A busca da África por um caminho de industrialização independente

Nos últimos anos, o continente vive uma ênfase renovada na industrialização. A União Africana (UA), diversas organizações regionais e muitos países africanos publicaram uma série de estratégias de industrialização. A Agenda 2063 da União Africana apresenta uma proposta bem definida para a transformação econômica no continente por meio do desenvolvimento industrial, especialmente a manufatura, para aumentar o valor agregado dos recursos da África, os níveis de emprego e a renda da população.

Em todo o continente, tem sido gradualmente formado um consenso em torno da visão de que a industrialização é fundamental para a transformação econômica da África. O próximo passo é determinar como promovê-la, efetivamente. Atualmente, as experimentações africanas de um caminho soberano para a industrialização estão focadas em quatro áreas principais.

1. O papel do Estado e do mercado na industrialização. Diferente dos anos 1980 e 1990, auge do fundamentalismo do mercado na África, atualmente poucos governos negam completamente o papel do Estado na industrialização. No entanto, ainda existem desacordos com relação à natureza e ao escopo deste papel. Ou seja, se o Estado deveria focar em prover serviços públicos onde a oferta do mercado é insuficiente, como educação, infraestrutura, pesquisa e desenvolvimento, ou se o Estado deveria intervir diretamente na economia e influenciar a alocação de recursos, como, por exemplo, apoiando determinados setores e empresas para remodelar o processo de desenvolvimento econômico.

Em 2016, a Comissão Econômica das Nações Unidas para a África (UNECA) publicou Política Industrial Transformadora para a África [Transformative Industrial Policy for Africa]. O documento enfatiza a importância da política industrial para promover o desenvolvimento econômico nacional e a transformação estrutural, argumentando que “em um país economicamente atrasado, o setor manufatureiro não pode se desenvolver sem uma política industrial coerente e inteligente”. O economista coreano Ha-Joon Chang, principal autor do documento, é um conhecido defensor da política industrial, que há muito tempo defende que a intervenção estatal na industrialização foi essencial para o desenvolvimento de todos os países atualmente ricos. Contrário à narrativa fundamentalista do mercado, Chang argumenta que esses países adotaram níveis significativos de protecionismo nos primeiros estágios de seu desenvolvimento econômico e que assim seguiram em grande parte do período pós Segunda Guerra Mundial. Consequentemente, Chang argumenta que os países em desenvolvimento deveriam rejeitar o receituário neoliberal ocidental e deveriam implementar políticas industriais em suas trajetórias para a industrialização. Esse economista se tornou uma voz influente nos atuais debates sobre industrialização no continente africano. Embora muitos países africanos tenham se afastado dos modelos de industrialização por substituição de importações do período pós-guerra, e agora tendem a adotar políticas orientadas à exportação aos mercados estrangeiros, Chang aponta Etiópia e Ruanda como países africanos com experiências de política industrial bem sucedidas na era contemporânea. Ele convoca os formuladores de políticas a estudar a ampla gama de países, indústrias e medidas para desenvolver uma “imaginação política” abrangente.

2. A interação entre integração regional e industrialização. Em 2009, o tema escolhido para o Dia da Industrialização da África foi “industrialização para a integração”. Em 2017, o tema enfatizou que o “desenvolvimento industrial africano” era “uma pré-condição para uma área de livre comércio continental efetiva e sustentável”. De fato, desde que conquistaram sua independência, os países africanos estabeleceram a integração regional e a industrialização como as “duas asas” para transformar a posição marginal da África no sistema político e econômico global. A industrialização promove o desenvolvimento econômico da África e contribui para aumentar a participação do continente na produção e no comércio global, enquanto a integração regional fomenta o comércio intra-africano e beneficia o desenvolvimento industrial. Em março de 2018, 44 países africanos assinaram, em Kigali, Ruanda, o acordo da Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA, pela sigla em inglês), um marco no estabelecimento de um mercado africano unificado.

Atualmente, 86% do total do comércio da África ainda é realizado com outras regiões do mundo e não dentro do continente.[10] A composição da exportação da África para outras regiões do mundo consiste em grande medida em commodities primárias não processadas. Em um nítido contraste, dois terços do comércio intra-africano é composto por produtos industrializados.[11] A expectativa é que a AfCFTA aumente as oportunidades de comércio intra-africano, com a criação de um grande mercado continental, atuando como um trampolim para a industrialização africana e fomentando a autonomia e independência do continente. Embora alguns países africanos tenham tratamento preferencial de isenção de impostos nos mercados europeus e dos Estados Unidos, por meio da iniciativa “Tudo Menos Armas” e da “Lei de Oportunidade e Crescimento Africano” (respectivamente EBA e AGOA, pelas siglas em inglês), o continente está sujeito a outros impedimentos e, inevitavelmente, sofre um tratamento injusto. Por exemplo, em 2016, para apoiar a indústria têxtil local, os países membros da Comunidade da África Oriental (CAO) concordaram em reduzir gradualmente a importação de roupas usadas, até a proibição total, em 2019. No mesmo ano, Tanzânia, Ruanda e Uganda aumentaram os impostos para a importação de roupas usadas. Essas medidas provocaram uma disputa comercial com os Estados Unidos, com a ameaça da administração Trump de cancelar os benefícios comerciais do AGOA para esses três países.

3. O desenvolvimento coordenado de urbanização e industrialização. No relatório econômico Urbanização e Industrialização para a Transformação da África, em 2017, a UNECA afirmou que a urbanização acelerada na África deveria ser aproveitada como uma força propulsora do desenvolvimento industrial no continente.[12] Em outras partes do mundo, a urbanização tem sido estreitamente associada à industrialização, com a primeira sendo concretizada pelo aumento da produtividade agrícola e industrial. No entanto, o relatório aponta que a urbanização da África foi desconectada de seu desenvolvimento industrial e da transformação econômica estrutural como um todo. A África não atingiu um desenvolvimento coordenado da industrialização e da urbanização. O resultado foi a criação de “cidades de consumo”, que apresentam níveis elevados de importações, baixos níveis de criação de empregos formais e, principalmente, serviços de baixa produtividade, em vez de “cidades produtivas”.[13] Reduzir a distância entre urbanização e industrialização, e reconectar esses dois processos de desenvolvimento de maneira mutuamente benéfica, é um grande desafio para a África.

4. O protagonismo da manufatura no desenvolvimento econômico. A história do desenvolvimento dos países atualmente ricos demonstra que a manufatura sempre foi a engrenagem do desenvolvimento econômico. Poucos países conseguiram desenvolver suas economias sem uma indústria de base. Mesmo assim, no Ocidente, há quem argumente que a importância do setor de serviços está superando crescentemente o setor manufatureiro e que, por isso, a África poderia pular o estágio de industrialização. Por exemplo, o ex-economista chefe do Banco Mundial e prêmio Nobel em economia, Joseph E. Stiglitz, argumentou que a África não pode reproduzir o modelo do leste asiático, liderado pela manufatura, e que a indústria moderna de serviços será a engrenagem do desenvolvimento africano.[14] No mesmo sentido, em 2018, a Brookings Institution e a Universidade das Nações Unidas – Instituto Mundial para a Pesquisa do Desenvolvimento Econômico (UNU-WIDER, pela sigla em inglês) publicaram conjuntamente Indústria sem chaminés: a industrialização na África reconsiderada, onde propõem que serviços comercializáveis (como serviços baseados em informação e comunicação, turismo, transporte e logística), agro-indústria e horticultura poderiam impulsionar o crescimento econômico e a transformação estrutural da África.[15]

No entanto, a África tem uma compreensão sóbria sobre o papel da manufatura na estratégia de industrialização do continente e sobre o receituário ocidental de desenvolvimento. Na Agenda 2063 da União Africana e nas políticas industriais elaboradas pela UNECA, o setor manufatureiro é nitidamente entendido como uma base indispensável para a criação de emprego, a transformação econômica e o desenvolvimento da região. Em 2016, o ex-vice-governador do Banco Central da Nigéria, Kingsley Moghalu, convocou os países africanos a “rejeitar a noção enganosa de que eles poderiam se juntar ao Ocidente se tornando sociedades pós-industriais, sem que tenham sido industriais”.[16]

Ainda assim, especialistas ocidentais em tecnologia, como Alec Ross, continuam argumentando que os países africanos poderiam usar a tecnologia para dar um “salto econômico”, apontando Ruanda como um exemplo.[17] Em seu livro de 2016, Ross afirmou que “a ideia é que Ruanda passe diretamente de uma economia agrícola a uma economia baseada no conhecimento, ignorando completamente a fase industrial”.[18] No entanto, esse argumento ignora que a manufatura continua sendo o propulsor da economia do conhecimento. Mesmo Ruanda, que já desenvolveu rapidamente este setor, continua impulsionando com vigor sua produção industrial.

A África elaborou um conjunto de estratégias para a industrialização, incluindo a melhoria da infraestrutura, a atração de investimento externo, a promoção da integração regional, a coordenação do desenvolvimento da agricultura e da indústria, o estabelecimento de zonas econômicas especiais e de parques industriais, e a integração às cadeias globais de produção. Enquanto a África promove ativamente sua industrialização, a China, parceiro estratégico mais importante do continente, está passando por sua própria transformação econômica interna e pela modernização industrial. Na China, há uma capacidade excedente de produção de aço e cimento, os custos de mão de obra estão aumentando e os setores intensivos em mão de obra enfrentam dificuldades. Por sua vez, com força de trabalho jovem e grande mercado, a África precisa de industrialização. Nesse período, há oportunidades significativas para a complementaridade entre os objetivos da África e da China. Duas questões importantes para o futuro das relações entre China e África são as seguintes. Qual é o papel que a China irá jogar no caminho de industrialização da África? E, como o método chinês pode contribuir com insights diferentes das receitas ocidentais para a África?

Como a China pode contribuir com o desenvolvimento industrial da África

Nos marcos do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC, pela sigla em inglês), criado em 2000, a China se comprometeu a trabalhar com a África para superar os gargalos do desenvolvimento, como o déficit de infraestrutura, a formação de trabalhadores qualificados e a falta de financiamento. As iniciativas da FOCAC tem se dedicado, de forma consistente, à cooperação relacionada com a capacidade industrial, incluindo os “dez grandes planos de cooperação China-África”, propostos na Cúpula de Joanesburgo, em 2015, assim como as “oito grandes iniciativas de colaboração com a África”, propostas na Cúpula de Pequim, em 2018. As contribuições da China à industrialização africana podem ser organizadas em três áreas principais: 1) construção de infraestrutura, 2) oferecimento de novas opções de desenvolvimento pelo compartilhamento de suas próprias experiências e 3) mudança de paradigma de cooperação internacional, melhorando a posição global da África por meio da cooperação China-África.

1. A China apoia a industrialização africana pela construção de infraestrutura. A África tem um grave gargalo de infraestrutura. No setor energético, isso provoca apagões frequentes e altos preços de eletricidade. As frágeis redes de transporte dificultam a integração regional e, com uma população de cerca de 1,4 bilhão, o continente tem apenas 64 portos marítimos. Nisso, a China tem sido um parceiro importante, ao construir um grande número de ferrovias, estradas, aeroportos e portos, além de outras infraestruturas de transporte, água e energia na África. A China também se comprometeu a apoiar a construção e expansão dos trens de alta velocidade, das rodovias e da malha aérea na África. Nos anos 1950 e 1960, a assistência externa chinesa seguiu um modelo “pronto para uso” que, em alguns casos, enfrentou dificuldades operacionais após a implementação. Após essas experiências, a China agora está muito atenta à manutenção e operação dos projetos externos de infra-estrutura, e tenta, continuamente, combinar a construção de infraestrutura na África com a cooperação em capacidade industrial. Por exemplo, criou-se uma sinergia entre os parques industriais na Etiópia e a ferrovia Addis Ababa-Djibuti, ambos construídos pela China, o que contribuiu para o estabelecimento de um corredor econômico e para a promoção do desenvolvimento industrial.

2. As experiências de desenvolvimento da China demonstram caminhos alternativos para a industrialização de países africanos. Enquanto as potências ocidentais impuseram seus modelos ao Sul Global, levando à desindustrialização de muitos países em desenvolvimento, a China seguiu um caminho diferente. Como disse o economista e ex-vice premiê chinês, Liu He (刘鹤), “a China aderiu às suas próprias características e não copiou cegamente o modelo ocidental […] Em contraste com o método ‘um ou outro’ e ‘preto e branco’ dos economistas ocidentais, em relação às questões como direitos de propriedade e concorrência, a China encontrou um meio-termo com base em suas condições concretas, trilhando um caminho único e sinuoso em relação à abertura da economia para o mercado”.[19]

As experiências de industrialização da China oferecem lições em muitos aspectos do desenvolvimento que podem ser aprendidas pelos países africanos, como a unidade dialética entre reforma, desenvolvimento, estabilidade e inovação; a gestão das relações entre governo, mercado e sociedade; a importância de uma liderança capaz e com forte vontade política; a necessidade de definição de estratégias claras; e uma série de projetos de desenvolvimento industrial e de infraestrutura. Além disso, a China acumulou anos de experiência de relações construtivas com os países desenvolvidos para modernizar sua própria capacidade produtiva. Ao cooperar com o desenvolvimento de capacidade industrial e facilitar a transferência de tecnologia para a África, a China pode aproveitar e compartilhar suas próprias experiências semelhantes no desenvolvimento da capacidade produtiva, da urbanização e da industrialização.

Ao compartilhar sua experiência, a China pode oferecer insights aos países africanos. Essa contribuição não é menos importante do que a construção de pontes e rodovias. Embora a China não imponha seu próprio modelo de desenvolvimento, países africanos expressaram sua vontade de aprender com a experiência da China. A experiência de desenvolvimento da China tem três princípios importantes, que incluem transcender estruturas, paradigmas e modelos dogmáticos, partir das próprias condições concretas e ajustar as ações com base em experiências e lições aprendidas. Por exemplo, a mesa redonda de CEOs da Tanzânia, que reúne executivos das 200 maiores empresas do país, publicou, em 2017, um livro sobre industrialização que analisa em profundidade a experiência da China. Citando a criação da Zona Econômica Especial de Shenzhen, em 1980, por Deng Xiaoping (邓小平), os autores afirmam que “começar com pouco e experimentar poderia nos permitir falhar rápido, aprender mais rápido e mudar as coisas com velocidade na medida em que for necessário. Após ajustar o modelo durante um período, nós podemos expandir nacionalmente com mais qualidade, ao invés de uma expansão com menos qualidade, dadas as limitações de capacidades financeiras e de implementação, que inviabilizam a realização de gestões e ajustes eficientes diante de desafios e, portanto, resultaria em um programa de industrialização nacional desorganizado”.[20] É importante destacar que não há um “consenso chinês” ou um “modelo chinês” sobre o desenvolvimento econômico. A relação entre a China e a África é de aprendizado mútuo, e não de instrução unilateral.

Nesse sentido, somente um resumo das experiências bem sucedidas da China não é suficiente para os países africanos e outros países em desenvolvimento. Tão importante quanto é a compreensão sobre os fracassos das experiências chinesas. Ministro e Assessor Especial do Primeiro Ministro da Etiópia, e designer-chefe dos parques industriais da Etiópia, Arkebe Oqubay abordou isso em uma entrevista que realizei com ele no início de 2018: “Nós sabemos que nem todos os parques industriais da China foram bem sucedidos, alguns fracassaram. Mas, durante minhas pesquisas na China, eu não consegui encontrar nenhum documento ou relatório que sintetize os aprendizados a partir desses fracassos”. Um aspecto importante da cooperação China-África é, portanto, o estabelecimento de uma forma de sistematizar e comunicar as experiências de industrialização chinesa.

3. As relações China-África podem desenvolver um novo paradigma para a cooperação internacional e melhorar a posição estratégica do continente, seu espaço político e sua autonomia. Na Cúpula do G20 em 2016, a China apresentou, pela primeira vez, uma proposta para apoiar a industrialização na África e no grupo de Países Menos Desenvolvidos, conforme denominado pela ONU. As discussões ocidentais sobre a África costumam girar em torno de usar ajuda externa para solucionar a pobreza, mas a ajuda externa, por si só, não pode resolver a pobreza ou promover industrialização. Em outra direção, a cooperação China-África tem como foco o desenvolvimento, ao combinar ajuda, comércio, investimento e outras medidas para apoiar o desenvolvimento independente do continente.

A influência indireta na forma como os países ocidentais se relacionam com o continente africano é um dos aspectos mais significativos da cooperação China-África. Devido à ansiedade provocada pela crescente parceria China-África, de certa maneira os países ocidentais têm sido pressionados a não tratar os países africanos apenas como receptores de ajuda externa, mas como parceiros de investimentos e negócios. A natureza dessa relação tem mudado paulatinamente e a África tem sido capaz de melhorar sua posição global, se tornando um foco de investimento. Nos últimos anos, por exemplo, a empresa alemã Volkswagen investiu e construiu fábricas na África do Sul, na Nigéria e no Quênia, enquanto a Zipline, empresa estadunidense de logística, inaugurou uma fábrica de montagem de drones em Ruanda. Esses processos podem ser promissores para a industrialização da África.

Em última instância, o verdadeiro motor da industrialização da África está nas mãos dos próprios países africanos. Capital, tecnologia e experiência da China ou de outros países podem apenas apoiar seus esforços. Como exemplo, projetos ou formas de cooperação semelhantes podem ter resultados diferentes em cada país. No caso da construção de parques industriais, a Zona Industrial Oriental da Etiópia, construída pela China, não apenas foi capaz de gerar milhares de empregos locais, como também levou à criação das primeiras regulações de parques industriais no país. Já no caso de Angola, um país rico em petróleo, a Zona do Parque Industrial de Viana não conseguiu alcançar nem o patamar básico de “três conexões e um nivelamento” (三通一平, sāntōng yīpíng), ou seja, a garantia de que o local de construção esteja conectado à água, eletricidade e estradas, e que o solo esteja nivelado antes do início do projeto. Isso porque o partido local que recebeu o terreno para o projeto falhou em estabelecer e operar atividades comerciais no parque industrial. Para apoiar a industrialização da África, a China deve alinhar seus métodos com as estratégias de desenvolvimento nacionais específicas de cada país africano, que são peças-chaves para o êxito ou o fracasso do caminho para a industrialização.

Referências bibliográficas

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Notas do autor

1. Ver, por exemplo, as reportagens publicadas pelo The Economist, separadas por uma década: “The Hopeless Continent” [O continente sem esperança], The Economist, 13 de maio de 2000, disponível em: https://www.economist.com/weeklyedition/2000-05-13; “Africa Rising” [África em ascensão], The Economist, 3 de dezembro de 2011, disponível em: https://www.economist.com/leaders/2011/12/03/africa-rising.

2. Comissão Econômica das Nações Unidas para a África (UNECA), Transformative Industrial Policy for Africa [Política industrial transformadora para a África]. Addis Ababa: UNECA, 2016. Disponível em: https://repository.uneca.org/handle/10855/23015.

3. Chen Zhiwu, Chen Zhiwu fala sobre a economia da China [陈志武说经济] Taiyuan: Shanxi Economic Press, 2010.

4. Zhou Jinyan, “Percepções de Institutos africanos sobre as soluções da China na Nova Era e suas implicações para o intercâmbio de experiências de governança na China e na África” [非洲智库对新时代中国方案的认知及其对中非治国理政经验交流的启示], Estudos do Mundo Árabe [阿拉伯世界研究], n. 4, 2021.

5. Ha-Joon Chang, “Economic History of the Developed World: Lessons for Africa” [História econômica do mundo desenvolvido: lições para a África]. Conferência no Programa de Oradores Ilustres do Banco de Desenvolvimento Africano, Tunes, Tunísia, 26 de fevereiro de 2009, disponível em: https://www.afdb.org/fileadmin/uploads/afdb/News/Chang%20AfDB%20lecture%20text.pdf.

6. Ver Jacques Morriset, “Foreign Direct Investment in Africa: Policies Also Matter” [Investimento estrangeiro direto na África: políticas públicas também importam]. Policy Research Working Paper 2481. Washington: Banco Mundial, 2000. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/245851468767965780/pdf/multi-page.pdf.

7. John Page. “Africa’s Failure to Industrialize: Bad Luck or Bad Policy?” [O fracasso da África em industrializar-se: má sorte ou má política pública?]. The Brookings Institution, 20 de novembro de 2014, disponível em: https://www.brookings.edu/blog/africa-in-focus/2014/11/20/africas-failure-to-industrialize-bad-luck-or-bad-policy/.

8. Justin Yifu Lin e Célestin Monga. Beating the Odds: Jump-Starting Developing Countries [Superando as adversidades: o pontapé inicial de países em desenvolvimento]. Princeton: Princeton University Press, 2017.

9. Wen Yi, A grande revolução industrial chinesa [伟大的中国工业革命]. Beijing: Tsinghua University Press, 2016, p. 15.

10. UNECA. “Momentum Builds for Free Movement under AfCFTA” [Aumenta o impulso para a livre circulação sob o AfCFTA] 29 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.uneca.org/stories/momentum-builds-for-free-movement-under-afcfta.

11. UNECA e Banco Mundial. “Promoting Connectivity in Africa: The Role of Aid for Trade in Boosting Intra-African Trade” [Promovendo a conectividade na África: o papel da ajuda ao comércio no fomento do comércio intra-africano], Addis Ababa: UNECA, outubro de 2017. Disponível em: https://www.wto.org/english/tratop_e/devel_e/a4t_e/promotingconnect17_e.pdf.

12. UNECA. Economic Report on Africa 2017: Urbanisation and Industrialisation for Africa’s Transformation [Relatório Econômico sobre a África 2017: Urbanização e Industrialização para a Transformação da África]. Addis Ababa: UNECA, 2017. Disponível em: https://www.uneca.org/economic-report-africa-2017.

13. UNECA. Urbanização e Industrialização, p. 138. Ver também Tom Goodfellow, “Urban Fortunes and Skeleton Cityscapes: Real Estate and Late Urbanisation in Kigali and Addis Ababa” [Fortunas urbanas e o esqueleto de paisagens urbanas: imóveis e urbanização tardia em Kigali e Addis Ababa]. International Journal of Urban and Regional Research 41, n. 5, setembro de 2017, disponível em https://doi.org/10.1111/1468-2427.12550; Bai Lulu, Zhao Shengbo, Wang Xingping e Zheng Jieling, “Pesquisa sobre a relação entre urbanização e indústria manufatureira na África Subsaariana” [撒哈拉以南非洲城镇化与制造业发展关系研究], Planejamento Urbano Internacional [国际城市规划], n.5, 2015.

14. Joseph E. Stiglitz “From Manufacturing Led Export Growth to a 21st Century Inclusive Growth Strategy for Africa (Africa Cannot Repeat East Asian Miracle)” [Do crescimento das exportações lideradas pela manufatura para uma estratégia de crescimento inclusivo do século 21 para a África (a África não pode repetir o milagre do leste asiático)] Conferência proferida na Cúpula do Crescimento Inclusivo, realizada pelo Bureau for Economic Research, Economic Research Southern Africa e pelo Research Project on Employment, Income Distribution and Inclusive Growth. Cidade do Cabo, 15 de novembro de 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q-OikAtwkig&ab_channel=ACET.

15. Richard Newfarmer, John Page e Finn Tarp (orgs). Industries without Smokestacks: Industrialisation in Africa Reconsidered [Indústrias sem chaminés: a industrialização da África reconsiderada]. UNU-WIDER Studies in Development Economics. New York: Oxford University Press, 2018. Disponível em: https://www.wider.unu.edu/publication/industries-without-smokestacks-2.

16. Kingsley Moghalu. “Africa Has to Go through Its Own Industrial Revolution” [África deve passar por sua própria revolução industrial], Financial Times, 16 de maio de 2016, disponível em: https://www.ft.com/content/d68f27fe-1aad-11e6-b286-cddde55ca122.

17. Alec Ross. The Industries of the Future [As indústrias do futuro]. New York: Simon & Schuster, 2016, p. 237.

18. Ross, The Industries of the Future, p. 238.

19. Liu He, “O milagre contínuo do crescimento: 30º aniversário da reforma e abertura” [没有画上句号的增长奇迹:于改革开放三十周年]. In: Wu Jinglian (org.). Trinta anos de economia da China vistos por 50 economistas chineses [中国经济50 人看三十年]. Pequim: China Economic Publishing House, 2008.

20. Ali A. Mufuruki, Rahim Mawji, Gilman Kasiga e Moremi Marwa. Tanzania’s Industrialisation Journey, 2016–2056: From an Agrarian to a Modern Industrialised State in Forty Years [A jornada de industrialização da Tanzânia, 2016-2056: de um Estado agrário a um Estado industrializado moderno em quarenta anos]. Nairobi: Moran Publishers, 2017, p. 11.

Vol.1 N.º 3 | 03.10.2023

Wenhua Zongheng: Revista Trimestral do Pensamento Chinês | VOL.1 N.º 3

As relações entre a China e a África na era da Nova Rota da Seda


Guo Hongwu (郭宏武), A amizade revolucionária é tão profunda quanto o oceano (革命友谊深如海), 1975. Pôster, 54 x 77 cm. Crédito: chineseposters.net, coleção Landsberger, BG E15/581.

Os esforços de industrialização da África e da China

Grieve Chelwa

Grieve Chelwa é professor associado de economia política no The Africa Institute e pesquisador sênior não residente do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Sua pesquisa tem como foco a economia política e as perspectivas para o desenvolvimento africano. Ele já atuou como diretor de pesquisa do Instituto sobre Raça, Poder e Economia Política da The New School e como conferencista sênior de economia da Escola de Pós-Graduação em Negócios da Universidade da Cidade do Cabo.

O apelo à industrialização tem sido uma palavra de ordem dos países africanos desde a conquista de sua independência. No século XX, a década de 1960 foi paradigmática das lutas de libertação nacional no continente. De Kwame Nkrumah (Gana) a Julius Nyerere (Tanzânia) e Kenneth Kaunda (Zâmbia), muitos integrantes da primeira geração africana de líderes pós-coloniais tinham um forte apreço pelo papel que a industrialização desempenharia na emancipação total do continente. Eles compreendiam a dependência econômica da África como fruto dos pecados originais do imperialismo e do colonialismo, que condenaram o continente à posição de eternos provedores de matérias-primas baratas para os países ricos, em troca de produtos industrializados caros. O rompimento com essa lógica colonial e imperial, ou seja, romper o jugo da dependência, exigiria uma reorientação estrutural das economias africanas, passando da produção de matérias-primas à produção industrial. Além disso, a industrialização era vista como o meio que conduziria a um alto nível de emprego e a salários decentes para a grande maioria da população, cujas vidas foram desestruturadas pelo colonialismo e o imperialismo.

Com esse objetivo em mente, os países africanos elaboraram planos locais e regionais, colocando a industrialização no centro do desenvolvimento. Em 1980, por exemplo, a Organização de Unidade Africana (precursora da União Africana) desenvolveu um marco estratégico chamado “Plano de Ação de Lagos para o desenvolvimento econômico da África”, no qual foi atribuído um papel destacado à indústria. O Plano de Ação de Lagos incentivou os Estados africanos a “em seus planos de desenvolvimento, conferir um papel principal à industrialização, tendo em vista seus impactos no atendimento das necessidades básicas da população e assegurando a integração da economia e a modernização da sociedade”.[1]

Nesse sentido, o Plano de Ação de Lagos declarou de maneira enfática: “para que a África alcance uma parcela maior na produção industrial mundial, assim como para atingir rapidamente um nível elevado de autossuficiência coletiva, os Estados Membros [da Organização de Unidade Africana] proclamam o período de 1980 a 1990 como a Década do Desenvolvimento Industrial da África”.[2] Infelizmente, apesar de todo esse fervor, o continente africano como um todo não foi industrializado em nenhuma forma substantiva ao longo dos últimos 60 anos. Em muitos países do continente, o nível industrial continua o mesmo da época da independência política nos anos 1960. Na verdade, muitos passaram pela desindustrialização. Ou seja, a participação da indústria na produção econômica é, hoje, inferior à do período da independência.

Essa incapacidade de industrialização teve implicações consideráveis para a vida econômica do continente africano e de seu povo. Por exemplo, os salários reais, que são geralmente sustentados pela produção industrial, diminuíram e hoje são mais baixos do que eram na década de 1970.[3] Ademais, nas últimas três décadas, o número de pessoas vivendo em situação de pobreza diminuiu em todas as regiões do mundo, menos na África, onde está acontecendo exatamente o oposto. Em 1990, na África, cerca de 300 milhões de pessoas viviam na pobreza. Até 2020, esse número cresceu para 400 milhões e é provável que cresça ainda mais na década atual.[4] Finalmente, em comparação com o período da independência, o continente africano é, hoje, mais dependente do resto do mundo, especialmente do Ocidente, como mercado para suas commodities primárias.

Enquanto nas últimas seis décadas a industrialização foi difícil para o continente africano, a China registrou, durante o mesmo período, conquistas inigualáveis nessa área. Desde as reformas preconizadas por Deng Xiaoping (邓小平), no final dos anos 1970, o crescimento da base industrial da China tem sido constante o que, por sua vez, possibilitou um dos processos de redução da pobreza mais rápidos de toda a história humana.[5] Em 1981, cerca de 90% da população chinesa vivia em situação de pobreza. Em 2018, a taxa de pobreza da China havia diminuído para menos de 1%.[6]

Somado a isso, o crescimento da produção industrial do país tem viabilizado sua ascensão como um ator econômico e político relevante no cenário mundial, com uma capacidade inquestionável de determinar seu destino.

Considerando o sucesso da China na industrialização e as dificuldades da África, chama a atenção a escassez de trabalhos acadêmicos comparativos que busquem extrair as lições da China para a industrialização da África. Menos ainda são os trabalhos que analisam se a China pode ser uma aliada eficaz na até então mal sucedida busca da África por industrialização.

O presente número da edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横) procura suprir essa lacuna. Os dois artigos publicados foram escritos por ilustres pesquisadores chineses do desenvolvimento econômico comparado. O primeiro artigo, escrito pela professora da Universidade de Estudos Internacionais de Xangai, Zhou Jinyan (周瑾艳), tem como título O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente?. Como o título sugere, o artigo busca descrever e analisar a experiência histórica da África com a industrialização, considerando o papel que a China pode ter nos esforços para o desenvolvimento do continente. O artigo começa com o reconhecimento dos fatos apresentados anteriormente, sobretudo de que a África tem um passado desastroso com relação à industrialização. Em vez de colocar a culpa nos ombros dos africanos, como especialmente os analistas ocidentais costumam fazer, a professora Zhou vê esse histórico de baixo desempenho industrial como resultado, em grande medida, do “fracasso do receituário ocidental de desenvolvimento”. Ela enfatiza, por exemplo, que “a ajuda ocidental promoveu a dependência econômica da África, enquanto a hegemonia política, econômica e ideológica do Ocidente reduziu a autonomia e o espaço político do continente. Dos programas neoliberais de ajuste estrutural às estratégias de reformas orientadas a aprimorar o ambiente de investimento e negócios, o receituário ocidental não apoiou o desenvolvimento africano”. Em sintonia com alguns de meus próprios trabalhos, a professora Zhou critica o domínio total de intelectuais e especialistas ocidentais no processo de formulação de políticas públicas na África.[7]

A última sessão do artigo da professora Zhou analisa três caminhos pelos quais a China pode contribuir para o desenvolvimento industrial da África. Primeiro, ela argumenta que o impulso extraordinário da China para a construção de infraestrutura em todo o continente africano, ao longo das últimas três décadas, contribui para as aspirações do continente em torno da industrialização. A construção de portos modernos, rodovias e centrais elétricas podem reduzir os custos de produção e, assim, promover a industrialização. Em segundo lugar, a China pode apoiar a industrialização por meio de seu ideário de desenvolvimento, ao promover um modelo alternativo e liderado pelo Estado, em oposição ao modelo liderado pelo setor privado e centrado no mercado, como reza a cartilha do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Finalmente, a China pode contribuir para a industrialização africana por meio do fortalecimento da autonomia da África na arena geopolítica global, ao prover uma via alternativa para a interação do continente com o resto do mundo, junto com princípios de respeito e reforço mútuos.

O segundo artigo, intitulado A Nova Rota da Seda da China e a industrialização africana, foi escrito pelo professor Tang Xiaoyang (唐晓阳), da Universidade Tsinghua. O autor busca compreender o impacto que a Nova Rota da Seda (NRS) da China teve nas possibilidades de industrialização da África. O professor Tang inicia seu artigo afirmando que, “na África, o maior desafio para a industrialização é a dificuldade de integração de diversas partes da produção em um sistema”. Em outras palavras, seguindo Adam Smith, a industrialização da África fracassou, em parte, pela ausência de uma divisão do trabalho em seu setor industrial. Visto dessa forma, entidades no setor industrial do continente operam de modo segmentado e isolado, com poucas conexões entre si. O professor Tang argumenta, ainda, que a ausência da divisão do trabalho é, em si, resultado da falta de uma infraestrutura de larga escala no continente, que poderia viabilizar as conexões intra e inter setoriais. A Nova Rota da Seda pretende aliviar esses limites por meio da promoção da “conectividade de infraestrutura”. Assim, o professor Tang é enfático ao considerar a NRS como uma estratégia pró-industrialização da África.

De maneira geral, o foco da presente edição da Wenhua Zongheng na industrialização da África é uma contribuição bem vinda em nossos debates sobre as perspectivas de desenvolvimento emancipatório na África. Como os artigos demonstram, a África tem muito a aprender com a experiência chinesa de industrialização. Além disso, a China tem muito a contribuir para o progresso das aspirações do continente por uma industrialização que seja justa, humana e camarada.

Referências bibliográficas

Chelwa, Grieve. “Does Economics Have an “Africa Problem”?” [A teoria econômica tem um “problema africano”?] , Economy and Society 50, n. 1, 2021.

Banco Mundial e Centro de Pesquisa sobre o Desenvolvimento do Conselho de Estado da República Popular da China. Four Decades of Poverty Reduction in China: Drivers, Insights for the World, and the Way Ahead [Quatro décadas de redução da pobreza na China: fatores determinantes, lições para o mundo e caminho futuro]. Washington: Banco Mundial, 2022, p.1. https://thedocs.worldbank.org/en/doc/bdadc16a4f5c1c88a839c0f905cde802-0070012022/original/Poverty-Synthesis-Report-final.pdf.

Organização da Unidade Africana. Lagos Plan of Action for the Economic Development of Africa, 1980–2000 [Plano de Ação de Lagos para o desenvolvimento econômico da África]. Addis Ababa: Organização da Unidade Africana, 1980. Disponível em: https://www.nepad.org/publication/lagos-plan-of-action

Rodrik, Dani. “An African Growth Miracle?” [Um milagre africano do crescimento?]. Journal of African Economies v. 27, n. 1, 2018.

Notas do autor

1. Organização da Unidade Africana. Lagos Plan of Action for the Economic Development of Africa, 1980–2000 [Plano de Ação de Lagos para o desenvolvimento econômico da África]. Addis Ababa: Organização da Unidade Africana, 1980, p.15. Disponível em: https://www.nepad.org/publication/lagos-plan-of-action.

2. Organização da Unidade Africana. Plano de Ação de Lagos, p.15.

3. Dani Rodrik. “An African Growth Miracle?” [Um milagre africano do crescimento?]. Journal of African Economies v. 27, n. 1, 2018.

4. As estatísticas sobre a pobreza na África são da Plataforma sobre Pobreza e Desigualdade do Banco Mundial, disponível em: https://pip.worldbank.org/home.

5.  Ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China, Estudos sobre o socialismo em construção no. 1, julho 2021, https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-1-socialismo-em-construcao/.

6. Banco Mundial e Centro de Pesquisa sobre o Desenvolvimento do Conselho de Estado da República Popular da China. Four Decades of Poverty Reduction in China: Drivers, Insights for the World, and the Way Ahead [Quatro décadas de redução da pobreza na China: fatores determinantes, lições para o mundo e caminho futuro]. Washington: Banco Mundial, 2022, p.1. https://thedocs.worldbank.org/en/doc/bdadc16a4f5c1c88a839c0f905cde802-0070012022/original/Poverty-Synthesis-Report-final.pdf.

7. Ver Grieve Chelwa. “Does Economics Have an “Africa Problem”?” [A teoria econômica tem um “problema africano”?] , Economy and Society 50, n. 1, 2021.

O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente?

Zhou Jinyan

A Nova Rota da Seda da China e a industrialização africana

Tang Xiaoyang