As novas formas de socialismo no século XXI | 20.12.2023

As novas formas de socialismo no século XXI

Pan Shiwei

Pan Shiwei (潘世伟) é o presidente honorário do Instituto de Marxismo Chinês da Academia de Ciências Sociais de Xangai. Sua pesquisa tem como foco o socialismo chinês, construção partidária e desenvolvimento político. Suas obras publicadas incluem Um estudo do modelo chinês (中国模式研究) e Anuário mundial de Pesquisa Socialista (世界社会主义研究年鉴).

“As novas formas de socialismo no século XXI” (新时代,新自觉——如何在当下重新思考社会主义) foi publicado originalmente no número 3 (2023) da Wenhua Zongheng (文化纵横).

O capitalismo liberal está diante de uma crise, depois de três décadas de expansão após o fim da Guerra Fria. Em meio a grandes desafios impostos pela recessão econômica, por conflitos geopolíticos, por clivagens sociais e pelas novas tecnologias disruptivas, um clima de incertezas envolve o mundo. Nessa conjuntura histórica, é preciso revitalizar o socialismo e desenvolver teorias socialistas ainda mais adequadas às novas condições do século XXI, pavimentando o caminho para um novo futuro para a humanidade.

Um longo percurso foi trilhado desde que Marx e Engels transformaram o socialismo, então utopia, em ciência, tal como sintetizado celebremente no Manifesto Comunista, em meados do século XIX. Nos últimos 175 anos, geração após geração de socialistas seguiram os passos de Marx e Engels, atuando sem cessar para elevar o socialismo de um conceito meramente ideológico à luta de classes, organizações políticas, revoluções sociais, governos e projetos civilizatórios. O desenvolvimento histórico do socialismo pode ser dividido em três modelos principais.

O socialismo clássico nos centros do capitalismo europeu

O movimento socialista se originou na Europa. Não foi coincidência sua transformação, de utopia em ciência, também ter acontecido ali. A Europa se beneficiou pelo capitalismo e se tornou a região mais desenvolvida do mundo. Com as vantagens decorrentes de terem sido os precursores da Revolução Industrial, os principais países europeus criaram uma nova e poderosa força produtiva.

Internamente, uma nova classe tornou-se dominante: a burguesia. Por meio de diferentes modelos de revolução burguesa, a burguesia tomou o poder sucessivamente em uma série de países europeus, criando estruturas sociais, políticas, mercantis e culturais, incluindo o Estado-nação moderno. Os avanços e as transformações do início da modernização capitalista finalmente viraram a página um tanto sombria da era medieval na Europa.

Externamente, os países europeus que lideravam a modernização também criavam as condições para uma globalização centrada na Europa que duraria séculos, por meio da expansão colonial permanente e de instrumentos abrangentes, incluindo guerras militares, imposição religiosa e agressão cultural. Vale a pena observar que, durante esse período, os desenvolvimentos interno e externo do capitalismo europeu estavam interligados e mutuamente condicionados. O desenvolvimento interno da política, da economia, da cultura e da sociedade impulsionou e conduziu a expansão externa. Por sua vez, a expansão externa sustentou e fortaleceu enormemente o desenvolvimento interno.

Por trás das realizações impressionantes do capitalismo europeu, no entanto, uma nova ideologia socialista era silenciosamente gestada e ganhava terreno. O desenvolvimento econômico e político do capitalismo europeu criou as condições sociais para o surgimento do marxismo. O crescimento da classe trabalhadora e o surgimento do movimento operário em luta por seus próprios interesses forneceram a base de classe. O florescimento das ciências sociais, da filosofia e da economia proporcionou o ambiente intelectual. Juntos, esses fatores convergiram para a publicação do Manifesto Comunista e para o nascimento do socialismo científico.

Marx, Engels e seus contemporâneos, fundadores do socialismo científico, generosamente reconheceram e felicitaram as realizações do desenvolvimento capitalista. No entanto, sua crítica implacável ao capitalismo europeu era o que os diferenciava da maioria de seus pares, assim como a firme convicção de que o sistema capitalista, aparentemente próspero, conduziria ao seu próprio ocaso. Esses socialistas apontaram corajosamente as profundas deficiências e contradições inerentes ao capitalismo, que podem apenas ser aliviadas, mas não erradicadas por esse sistema, apesar do desenvolvimento das forças produtivas e da riqueza material acumuladada, assim como dos avanços associados na política, na sociedade e na cultura. Dessa forma, o capitalismo nunca poderia ser considerado a forma definitiva do desenvolvimento social humano. Ele surgiu na história e será negado pela história.

Os socialistas daquela época acreditavam que a classe trabalhadora e outras forças sociais oprimidas tinham em suas mãos o poder de provocar mudanças e transcender o capitalismo. Para eles, era do interesse da classe trabalhadora buscar uma revolução e desmantelar o velho mundo e o sistema capitalista, em vez de se submeter à contínua exploração e opressão pelas mãos da burguesia. Com lutas políticas e revoluções sociais, as classes oprimidas iriam derrubar a burguesia, se tornariam a classe dominante e iriam construir um sistema mais racional e humano, em substituição ao capitalismo. O sistema ideal era o socialismo, que eventualmente avançaria para uma forma mais desenvolvida, o comunismo. Embora os detalhes precisos dessa sociedade ideal futura não pudessem ser descritos, esses pensadores argumentaram que a classe trabalhadora e seus partidos políticos inevitavelmente avançariam nesse rumo.

Mais importante que isso, no processo de crítica ao capitalismo e de construção de argumentos a favor do socialismo, essa geração de socialistas analisou detidamente as leis gerais do desenvolvimento social humano e formulou uma visão de mundo e uma metodologia cujo cerne era o materialismo histórico. Isso possibilitou que gerações sucessivas desenvolvessem compreensões mais precisas do mundo e do movimento da história humana.

Durante esse período, o modelo clássico de pensamento socialista desenvolvido na Europa consistia em três elementos principais:

1. O socialismo só pode surgir nas sociedades onde o capitalismo está mais desenvolvido. As forças produtivas, as formas políticas e os recursos ideológicos necessários para construir o socialismo são gerados dentro de formas avançadas de capitalismo.

2. O capitalismo pode e inevitavelmente será negado e transcendido. Não importa por quanto tempo o capitalismo se sustente, ele acabará sendo apenas um fragmento da história humana. Devido às suas contradições inerentes, o capitalismo não será um sistema eterno, ainda que possa fazer melhorias internas acompanhando a evolução de suas circunstâncias. Após cumprir sua missão histórica, o capitalismo será relegado à história.

3. O fim do capitalismo é o ponto de partida do socialismo. O socialismo será construído sobre as forças produtivas, a riqueza material, o desenvolvimento intelectual e a modernização já criadas pela humanidade. É precisamente com base nesses recursos acumulados no capitalismo que o socialismo busca resolver tensões e conflitos entre as forças produtivas e as relações de produção, superar as restrições da propriedade privada dos meios de produção e enfrentar todas as contradições que surgem dessa ordem. Sendo o socialismo, de fato, a crítica e a negação do capitalismo, ele também busca alcançar uma nova transcendência e sublimação. Quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais ele prepara as condições materiais, entre outras, para o socialismo. Da mesma forma, à medida que as forças produtivas do capitalismo avançam, as relações de produção se tornam mais complexas, e a governança estatal se torna mais sofisticada, sendo cada vez mais desafiador alcançar maior produtividade, desenvolver forças produtivas mais poderosas, garantir uma verdadeira igualdade e construir uma sociedade harmoniosa. Em outras palavras, a necessidade de construir uma nova sociedade socialista cresce junto com o capitalismo. A humanidade é capaz de construir uma sociedade melhor.

Os socialistas clássicos oferecem uma narrativa abrangente e de imensa vitalidade, iluminando o caminho para a humanidade atravessar a selva do capitalismo e inspirando os povos a se envolverem na longa luta histórica rumo ao socialismo.

Formas transformadoras do socialismo em colônias e semi-colônias

Durante o século XX, o socialismo se desenvolveu de maneira significativamente diferente das expectativas do socialismo clássico. Em vez de progredir linearmente, o desenvolvimento socialista ocorreu alternando entre altos e baixos, incluindo o retrocesso em revoluções socialistas bem sucedidas na União Soviética e no Leste Europeu.

O socialismo não surgiu onde era esperado, ou seja, nos países capitalistas desenvolvidos da Europa. No entanto, novas áreas de crescimento surgiram além da visão dos pensadores marxistas clássicos. O socialismo não emergiu dentro do capitalismo global, mas fora dele; não nos países com as forças produtivas mais avançadas, mas nas regiões economicamente subdesenvolvidas; não no Ocidente, mas em países não ocidentais; não das tradicionais lutas de classes urbanas, mas dos movimentos de libertação nacional nas colônias e semi-colônias então sob o domínio do imperialismo. A lógica e o significado essencial do socialismo foram redefinidos. As conquistas extraordinárias do socialismo na Rússia, na China e em outros lugares transcenderam o marxismo clássico e constituíram uma forma distinta de socialismo transformador.

Na perspectiva do pensamento socialista, uma característica essencial do capitalismo é sua conquista do mundo. A invasão e o saqueio de vastas regiões não ocidentais são necessários para sustentar a prosperidade e o conforto dos centros capitalistas da Europa. O desenvolvimento de países ricos é construído sobre o subdesenvolvimento de países pobres. Dessa forma, o capitalismo não apenas cria desigualdade interna, mas também desigualdade externa. Os pensadores marxistas clássicos reconheceram o impacto destrutivo da expansão colonial capitalista no vasto mundo não ocidental, mas, devido a uma série de condições históricas objetivas, não desenvolveram uma compreensão sistemática e detalhada desse assunto. Apenas com Lenin e com os teóricos marxistas posteriores a ele, as lutas de libertação nacional das colônias e semi-colônias contra a agressão capitalista e imperialista receberam maior atenção. Refletindo essa maior ênfase, a proposição clássica “trabalhadores do mundo, uni-vos!” foi expandida para “trabalhadores do mundo e povos oprimidos, uni-vos!”. Embora o foco da teoria e da prática socialistas na época ainda estivesse nos países capitalistas centrais, a influência do movimento socialista europeu nas vastas colônias e semi-colônias continuou crescendo. As críticas socialistas ao capitalismo, o ideal e a busca de uma sociedade futura melhor, e a coragem e determinação da classe trabalhadora e de seus partidos para derrubar o velho mundo, foram fontes importantes de inspiração nos países colonizados. O socialismo demonstrou a viabilidade de que os povos oprimidos fizessem novas escolhas e construíssem novas sociedades, tornando-se, assim, um recurso intelectual extremamente importante para esses países em sua resistência contra a agressão e a conquista capitalista.

Uma nova e transformadora forma de socialismo se desenvolveu nas colônias e semi-colônias. O desenvolvimento do socialismo na China ilustra muitas das mudanças significativas entre a forma clássica e a forma transformadora. Essa nova forma surgiu da interseção e integração entre a lógica própria de desenvolvimento chinês e a lógica do desenvolvimento socialista.

No caso da China, após estar isolada no Oriente por milhares de anos, as portas do país foram violentamente abertas por potências ocidentais superiores economicamente, militarmente, tecnologicamente e em termos de governança. Essa turbulência não foi apenas o resultado de uma expedição ocidental contra um antigo país oriental, mas também um golpe destrutivo de um sistema capitalista ascendente contra uma ordem feudal em declínio. A humilhação da China, o sofrimento de seu povo e a mancha na civilização chinesa provocaram resistência nacional. Aqueles que buscavam a libertação nacional e a revitalização estavam desesperadamente em busca de novas fontes de inspiração intelectual. Diante do dilema de estagnação intelectual interna, muitos intelectuais chineses voltaram seu olhar para fora, especialmente em direção aos países ocidentais altamente desenvolvidos. Diversas ideias ocidentais foram introduzidas na China, sendo o socialismo e o marxismo apenas uma parte delas. No entanto, o socialismo foi a ideia que mais ressoou entre o povo chinês.

O encontro e integração da China com o socialismo foram o resultado de condições políticas, temporais e espaciais específicas. Em particular, três fatores levaram o povo chinês a abraçar o socialismo.

1. As regiões periféricas do mundo, incluindo a China, eram inerentemente contrárias à agressão dos países capitalistas ocidentais. Sendo uma civilização antiga com uma longa história própria, a China rechaçou a noção de que precisava ser descoberta, iluminada ou civilizada pelas potências do Ocidente. Após ter sido invadida e saqueada pelos países capitalistas ocidentais nos séculos XIX e XX, a China se inclinou mais ao socialismo.

2. O socialismo se identificou com os interesses dos oprimidos e a eles deu prioridade, particularmente à classe trabalhadora nos países capitalistas que resistiam ao domínio burguês, assim como às colônias e semi-colônias que resistiam à conquista por países capitalistas. Como uma nação oprimida, o povo chinês naturalmente tendia a se identificar com outros povos oprimidos e, portanto, os chineses foram atraídos pelo socialismo.

3. O socialismo revelou as falhas inerentes e a decadência do capitalismo. À medida que o povo chinês aprofundava sua compreensão sobre o capitalismo ocidental, tornava-se mais nítido o lado sombrio ocultado sob sua fachada glamorosa. Isso incluía os males do comércio de escravos, a corrida global por colônias, a situação de grupos empobrecidos nos países capitalistas e, especialmente, o massacre sangrento entre os países imperialistas durante a Primeira Guerra Mundial. Essas injustiças refletiam as falhas e contradições internas dos países capitalistas, alimentando assim o anseio do povo chinês por uma sociedade melhor. O socialismo representava a possibilidade de construir uma sociedade ideal.

Além da China, muitas colônias e semi-colônias ao redor do mundo encontraram as ideias socialistas, mas não as integraram da mesma forma. Por que, então, o socialismo se enraizou na China? A chegada do socialismo na China e sua escolha pelo povo chinês apenas demonstraram a potencialidade do movimento histórico. Para transformar esse potencial em realidade e produzir resultados positivos, outras condições cruciais eram indiscutivelmente necessárias. Entre elas, a presença de uma organização de vanguarda exemplar, uma geração de jovens dispostos a sacrificar tudo, intelectuais que simpatizavam com as massas trabalhadoras e líderes com uma compreensão profunda das condições nacionais da China e da essência do marxismo. A China tinha todas essas condições no século XX. Portanto, o socialismo se enraizou e floresceu em solo chinês.

A chegada do socialismo na China mudou a natureza da transformação social no país. No esquema do capitalismo mundial, a China estava situada na periferia, subordinada ao núcleo capitalista e relegada à dominação estrangeira. O desenvolvimento e a superação do status semi-feudal e semi-colonial da China era irrelevante para os países capitalistas centrais. Estes buscavam definir os termos de qualquer transformação social na China e garantir sua condução por agentes políticos que a orientassem para a homogeneização capitalista e os interesses do seu núcleo. Esse esquema foi encerrado após a chegada do socialismo à China, à medida que emergia uma visão diferente de transformação social. O Partido Comunista da China (PCCh) tomou o lugar dos partidos políticos burgueses do país e tornou-se a liderança da transformação social da China. Nesse processo, os operários e os camponeses, juntamente com outras classes, derrubaram a burguesia e tornaram-se a força motriz da transformação social chinesa. O plano da transformação social da China foi fundamentalmente redesenhado e passou a buscar os seguintes objetivos: oposição à agressão, opressão e exploração do capitalismo estrangeiro na China; oposição ao apoio do capitalismo estrangeiro às forças reacionárias na China; fim do domínio do feudalismo, do capitalismo burocrático e do imperialismo na China; e conquista da libertação e independência nacionais. O socialismo delineou uma visão revolucionária para a China, que subverteu completamente o conteúdo e os métodos propostos pela burguesia.

A visão socialista para a transformação social também mudou o método da China para a construção de um Estado moderno. Após a fundação da República Popular da China (RPC) em 1949, o novo Estado buscou uma transição direta para o socialismo, ao invés de seguir um caminho de desenvolvimento capitalista. Consequentemente, todo o processo de construção do Estado seguiu esse princípio, moldando a construção dos sistemas político, econômico e social básicos da China. Além disso, o Estado e suas instituições foram construídos com base nas condições específicas da China e visavam garantir a soberania do povo chinês sobre o país. Entre as principais características desse processo estão: a liderança do PCCh; o sistema de congressos do povo, que se estende do nível local até o nacional; o sistema de cooperação multipartidária e consulta política, organizado na Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC)[1]; o sistema de autonomia regional das minorias étnicas; e o sistema de governança participativa em nível comunitário. Dessa forma, a China conseguiu construir um Estado moderno e alcançar estabilidade política de longo prazo.

Por fim, o socialismo redefiniu o método para a modernização da China. Durante a transição da humanidade de sociedades agrícolas para industriais, os países europeus lideraram o processo inicial de modernização graças à vantagem de seu protagonismo na Revolução Industrial. Durante sua expansão, esses países impuseram formas incompletas e subordinadas de modernização capitalista a muitos países em desenvolvimento, incluindo a China. Esse processo não foi suave, mas caracterizado por retrocessos, estagnação e fracassos. Após a Revolução Chinesa, a República Popular da China seguiu um caminho soberano e não capitalista em direção à modernização. O PCCh efetivamente mobilizou e organizou centenas de milhões de chineses para promover vigorosamente a industrialização do país, buscando criar a base material para o socialismo. Esse processo ocorreu em um ambiente internacional hostil e passou por uma série de reviravoltas nas décadas iniciais após a revolução. Até o final da década de 1970, foi inaugurado um novo método para a modernização da China: a economia socialista de mercado, a participação ativa na economia mundial e a busca da prosperidade comum. Após o início da reforma e abertura, a China alcançou um milagre de desenvolvimento econômico rápido e duradouro, avançando significativamente na industrialização, na urbanização, na inovação tecnológica, no desenvolvimento da economia de mercado e na promoção do comércio internacional. Esses esforços incluíram a China na onda da modernização mundial.

Os parágrafos acima apresentam um esboço geral de como novas formas de socialismo e desenvolvimento socialista emergiram, com referência particular ao caso da China. O surgimento de uma forma transformadora de socialismo na China não representa um processo geral de desenvolvimento socialista, embora possa ter implicações relevantes para outros países. Pelo contrário, o nascimento e crescimento dessa nova forma ilustram vividamente a natureza diversificada do desenvolvimento socialista.

A construção de uma nova forma de socialismo que supere o capitalismo pelo auto-aprimoramento

Em meados do século XIX, o socialismo surgiu na Europa e assumiu sua forma inicial, baseada no desenvolvimento capitalista avançado como um ponto de partida. Essa forma original não desapareceu e continua a crescer lentamente. Ela se manifesta principalmente em críticas ideológicas e culturais ao capitalismo, assim como em movimentos sociais e políticos que buscam advogar pelos interesses das classes oprimidas. No entanto, essa forma de socialismo ainda tem um longo caminho a percorrer antes de poder ascender a uma posição dominante e substituir o capitalismo. As razões para isso incluem as divisões e variações dentro do próprio movimento socialista, bem como a extraordinária resiliência e capacidade de adaptação do capitalismo. Fundamentalmente, no entanto, o socialismo não cresceu nos países capitalistas desenvolvidos do mesmo modo que cresceu nos países em desenvolvimento, devido à ausência de partidos de vanguarda nos primeiros. Como resultado, o capitalismo tem sido capaz de operar normalmente.

No século XX, o movimento socialista abriu novas oportunidades de desenvolvimento em regiões não capitalistas do mundo. Países em desenvolvimento, como a China, definiram por não seguir o caminho oferecido pelos países capitalistas centrais e romperam seus laços com o capitalismo, tornando-se novas áreas de crescimento para o socialismo. Os desafios enfrentados por esses países não poderiam ser respondidos por teorias clássicas sobre a transição direta do capitalismo para o socialismo, visto que tratavam-se de sociedades pré-capitalistas ou semi-capitalistas, e estavam situados em posições históricas de atraso relativo em termos de desenvolvimento econômico, político, cultural e social. Felizmente, eles demonstraram uma iniciativa e criatividade históricas sem precedentes ao buscar revoluções, a construção de nações e a modernização orientadas ao socialismo. Como resultado, nos países em desenvolvimento surgiram teorias e práticas completamente diferentes de construção socialista, junto com novas formas de desenvolvimento socialista.

Como será a continuidade do progresso e desenvolvimento do socialismo no século XXI? Essa questão preocupa a todos os pensadores e militantes do socialismo. É evidente que as formas já mencionadas de desenvolvimento socialista e modernização tardia permanecem importantes em países em desenvolvimento e regiões não capitalistas. Ao mesmo tempo, à medida que o socialismo continua a se desenvolver na China, uma nova forma está surgindo. Tendo alcançado a modernização socialista, as forças produtivas sociais, a capacidade tecnológica, a pujança nacional como um todo e as conquistas da China em outros aspectos do desenvolvimento estão demonstrando a possibilidade de superação do capitalismo pelo socialismo, assim como sua superioridade e potencial. Para que essa nova forma de socialismo se fortaleça, a China deve ir além de seu nível atual de desenvolvimento, para alcançar um patamar mais elevado.

Essa nova forma não pode ser simplesmente uma extensão da forma existente de socialismo transformador, mas uma forma significativamente avançada. Em certo sentido, essa nova forma implica um retorno ao marxismo clássico, pois deve enfrentar a questão de como transcender o capitalismo dos países centrais (embora o faça a partir de fora). A nova forma visa superar o capitalismo por meio do auto-aprimoramento do socialismo.

Objetivamente, essa nova forma está apenas começando a surgir. Ainda não somos capazes de compreender totalmente sua direção geral e suas leis inerentes, apenas de fornecer um esboço básico de seus contornos fundamentais. Para fortalecer essa nova forma de socialismo na China, as seguintes áreas de desenvolvimento são essenciais.

1. Desenvolver uma compreensão teórica profunda e unificada do socialismo e cultivar habilidades correspondentes para alcançar um nível mais elevado de desenvolvimento. O PCCh, que lidera o desenvolvimento do socialismo na China, precisa se envolver em reflexões profundas, planejamento abrangente e estratégias de longo prazo, enquanto se adapta à situação em curso. É importante que o partido estabeleça essa base e sobre ela construa aprendizados adicionais, unifique seu pensamento e gradualmente estabeleça um processo contínuo de auto-aprimoramento. Em particular, desenvolver uma compreensão abrangente do nível de desenvolvimento do país, de seus gargalos, suas condições favoráveis e desfavoráveis, e de seus mecanismos operacionais, juntamente com uma compreensão das experiências práticas do capitalismo nos Estados Unidos e na Europa.

2. Reforçar o desenvolvimento como um todo. O nível de desenvolvimento da China é inconsistente quando diferentes campos são considerados. O desenvolvimento econômico, político, cultural, social e ecológico varia em termos de progresso, prioridades e desequilíbrios. É preciso promover o desenvolvimento equilibrado e integrado nesses cinco campos.

3. Promover o desenvolvimento de alta qualidade da produtividade e aprimorar a base material. Apesar dos grandes avanços da China ao alcançar e, em certos aspectos, superar o desenvolvimento econômico dos países capitalistas centrais, o país ainda tem um longo caminho a percorrer em termos de maior desenvolvimento da produtividade, eficiência produtiva, alta tecnologia e riqueza material. Sem isso, as vantagens inerentes do socialismo não podem ser totalmente concretizadas.

4. Fortalecer a maturidade institucional e as vantagens governamentais singulares. Esforços concretos devem ser feitos para acelerar o processo de consolidação das vantagens institucionais e governamentais singulares do socialismo. Somente assim a China pode desenvolver uma força institucional equivalente às instituições do capitalismo ocidental, que vigoram há centenas de anos.

5. Reforçar as vantagens inerentes do socialismo. O socialismo tem muitas vantagens singulares quando comparado ao capitalismo. Entre elas, tornar o povo os soberanos do país; o método centrado no povo que guia o partido, e não a influência de privilégios individuais e interesses próprios; a busca resoluta pela prosperidade comum para evitar desigualdades extremas de riqueza; os esforços coordenados para manter a natureza progressista, a integridade e a liderança forte do partido; e a ênfase na harmonia social e na prevenção de conflitos ou confrontos fundamentais entre as pessoas. Essas vantagens precisam ser valorizadas e cultivadas cuidadosamente. Além disso, um novo sistema deve ser construído para reunir e mobilizar recursos em todo o país em torno de questões importantes.

6. Reforçar o poder cultural e intelectual. Para a China, é de extrema importância ser uma nação e um Estado-civilização. A civilização chinesa possui características distintivas na linguagem, cultura e pensamento. A integração do marxismo e o surgimento de uma nova forma de socialismo na China devem muito à sua compatibilidade com a cultura chinesa, que sempre esteve profundamente enraizada na sociedade e na vida cotidiana do povo. Deve haver um esforço para transformar criativamente os valiosos recursos culturais da China em uma força cultural e intelectual mais proativa. A China também deve colaborar com outras culturas para destacar o valor da diversidade humana.

7. Destacar as vantagens comparativas globais do desenvolvimento socialista. O desenvolvimento da China criou vantagens comparativas globais em alguns setores, mesmo em relação aos países capitalistas desenvolvidos. A China avançou na modernização de um país com 1,4 bilhão de pessoas, superando a modernização combinada dos países capitalistas desenvolvidos em escala e alcance. Além disso, a modernização da China foi alcançada em um ritmo mais rápido, com custos sociais mais baixos e maior inclusão, utilizando um método mais pacífico. Essa é a maior experiência de modernização da história humana. A China também assumiu a liderança em áreas como energia renovável, proteção ecológica, redução da pobreza e desenvolvimento tecnológico, com conquistas impressionantes e comparáveis às dos países capitalistas desenvolvidos. Com a Nova Rota da Seda, a China embarcou em um ambicioso projeto de desenvolvimento cooperativo com os países do Sul Global, incentivando seus esforços de modernização. Para enfrentar os desafios comuns do mundo, a China apresentou o conceito de construir uma “comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade” (人类命运共同体, rénlèi mìngyùn gòngtóngtǐ), além de uma série de propostas para promover a paz e o desenvolvimento global. A China recebe e incorpora cooperação, concorrência e diferentes formas de modernização e desenvolvimento ao redor do mundo. À medida que a própria modernização da China continua a avançar, suas vantagens comparativas internacionais devem se tornar mais proeminentes. Em relação às tentativas hostis de contenção da China por certos países, a China responderá com perspicácia e capacidade suficiente.

Na terceira década do século XXI, as rodas do progresso avançam rapidamente. O surgimento de novas formas de socialismo entusiasma todos os socialistas. De certa forma, com mais de um século de desenvolvimento socialista, parece que retornamos à era de Marx e Engels, que continuamente refletiram sobre como o socialismo superaria o capitalismo e se tornaria seu coveiro. Hoje podemos ver que o socialismo é melhor que o capitalismo em fazer o que este supostamente faz de melhor, ao mesmo tempo em que é bem sucedido em concretizar muito do que o capitalismo não é capaz. O socialismo na China continua a se fortalecer e se esforça para superar de maneira abrangente as formas mais avançadas do capitalismo contemporâneo, como Marx e Engels imaginavam, e criar uma sociedade melhor para a humanidade. Diante da emergência de uma nova forma de socialismo, precisamos de uma nova consciência.

Notas

1. Nota editorial: O Congresso Nacional do Povo (CNP) e a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC) realizam reuniões simultâneas anualmente, em março, no evento político conhecido como as “Duas Sessões” (两会, liǎnghuì).

A terceira onda do socialismo | 20.12.2023


A terceira onda do socialismo

Yang Ping

Yang Ping (杨平) é um destacado intelectual e editor da comunidade ideológica e cultural da China contemporânea. Em 1993, fundou Estratégia e Gestão (战略与管理), uma importante revista que se contrapôs à influência do liberalismo na cultura e ideologia chinesa. Em 2008, fundou a Wenhua Zongheng (文化纵横), revista que foca na construção do sistema de valores fundamentais da sociedade chinesa, levantando sistematicamente a bandeira do socialismo. Nos últimos 15 anos, a revista tornou-se uma das plataformas de pensamento mais importantes da China.

“A terceira onda do socialismo” (社会主义的第三次浪潮) foi publicada originalmente em Junho de 2021, no número 3 da Wenhua Zongheng (文化纵横).

O capitalismo enfrenta uma grave crise

A crise financeira de 2008 e a pandemia de Covid-19 evidenciaram a grave crise enfrentada pelo capitalismo. A economia global experimentou estagnação e declínio prolongados, desemprego generalizado, desigualdades de renda abissais, dívidas excessivas e bolhas de ativos. De maneira trágica, isso foi acompanhado por uma perda significativa de vidas humanas. A atual crise do capitalismo global é a maior e mais severa desde a Grande Depressão (1929-1933).

Nessa crise, os limites do capitalismo estão cada vez mais aparentes, sejam eles limites de mercado, tecnológicos ou ecológicos. Em primeiro lugar, a escassez de novos mercados e fontes de lucro levam a uma diminuição da força motriz da acumulação de capital. Em segundo lugar, embora a inovação tecnológica impulsionada por crises permaneça ativa, os benefícios dessa inovação estão cada vez mais concentrados em poucas mãos, marginalizando a maioria das pessoas no atual sistema capitalista. Em terceiro lugar, a capacidade ecológica do mundo tem sido pressionada até seu limite e o ecossistema do planeta não pode mais sustentar as pressões impostas pelo modo de vida e de produção capitalistas.

Os mecanismos acionados tradicionalmente para lidar com crises capitalistas falharam diante da crise atual. Após quase quatro décadas de neoliberalismo, os governos capitalistas enfrentam uma crise do gasto público, na medida em que a busca por mais reformas estruturais para estimular o capital privado entra em conflito direto com a necessidade de manter os níveis mínimos de bem-estar social. As políticas de flexibilização quantitativa criaram enormes bolhas de ativos e espirais de dívida, exacerbando as severas disparidades de riqueza previamente existentes.

Sob esta crise, ressurgem muitos elementos que caracterizaram o panorama do capitalismo global antes das duas grandes guerras mundiais: o crescimento do populismo, do militarismo e do fascismo; a intensificação de divisões sociais internas; um aumento na hostilidade e na competição de soma zero entre as nações; e tendências em direção à desglobalização e à política de blocos. Com o aumento das tensões internacionais, também aumenta a possibilidade de outra guerra mundial.

As crises desencadeiam guerras e as guerras levam a revoluções. Esse tem sido um tema recorrente na história do sistema capitalista. Na terceira década do século XXI, em meio a essa grave crise, o capitalismo irá passar por reformas profundas e superar sua crise? Ou este é o “momento Chernobyl” do capitalismo, que se encaminha para o seu fim?

A história chegou, novamente, a uma encruzilhada crítica.

As três ondas do socialismo

Como movimento e crítica ao capitalismo, o socialismo sempre coexistiu com este sistema, sendo um poderoso contrapeso e buscando, constantemente, caminhos alternativos para superar e substituir o capitalismo. Desde a criação da Primeira Internacional (1864-1876), o movimento socialista mundial passou por três grandes ondas.

A primeira onda ocorreu na Europa do século XIX, quando o movimento operário europeu transitava gradualmente de um estado de existência para um estado de autoconsciência. As principais características desse período foram o surgimento do marxismo, o estabelecimento de organizações internacionais de trabalhadores e as primeiras tentativas de realizar uma revolução socialista, como a Comuna de Paris, em 1871. A primeira onda do socialismo impulsionou o despertar político e a consciência da classe trabalhadora, dando origem a partidos políticos operários em diversos países. Durante essa onda, no entanto, ainda não surgiria uma forma de Estado socialista.

A segunda onda começou com o fim da Primeira Guerra Mundial, a partir da Revolução de Outubro, em 1917, e perdurou até a dissolução da União Soviética e dos Estados comunistas do Leste europeu, entre 1989 e 1991. Durante a segunda onda, um grande número de Estados socialistas surgiu em todo o mundo, primeiro na União Soviética e no leste europeu e, após o fim da Segunda Guerra Mundial, na China, em Cuba, na Coreia e no Vietnã, entre outros. Juntos, esses países formaram um sistema ou bloco socialista internacional. Além desse sistema formado por Estados, durante a Guerra Fria, uma grande parte do movimento socialista mundial se concentrou nos movimentos de libertação nacional da Ásia, África e América Latina. Muitos deles se identificavam como socialistas ou eram significativamente influenciados pelo socialismo. Assim, as duas principais características da segunda onda do socialismo foram o surgimento da forma de Estado socialista, com ampla propriedade estatal e planejamento econômico, e os movimentos de libertação nacional.

Após o fim da Guerra Fria, o socialismo sofreu grandes retrocessos globais. Apesar disso, no entanto, uma nova onda surgiria. A terceira onda começou a se formar após a China lançar suas reformas e abertura, no final da década de 1970, e foi capaz de resistir aos severos choques e testes após a dissolução da União Soviética e dos Estados comunistas do leste europeu. Enquanto o socialismo estava em baixa no mundo, a China permaneceu comprometida com o socialismo, ao mesmo tempo em que buscava reformas e abertura, trilhando gradualmente o caminho conhecido como “socialismo com características chinesas”. A principal característica do socialismo com características chinesas foi a incorporação de uma economia de mercado no sistema socialista, formando gradualmente uma economia socialista de mercado. Hoje, apenas três décadas depois da Guerra Fria, o socialismo com características chinesas experimentou um rápido crescimento, tornando-se uma força crucial que está remodelando a ordem mundial e o futuro da humanidade. Embora esta onda do socialismo ainda esteja em seus estágios iniciais, já provoca impactos significativos e atrai a atenção de todo o mundo, oferecendo novas opções para países que buscam seguir um caminho de desenvolvimento independente, o que representa um questionamento contundente àqueles que argumentavam que o capitalismo marcava o “fim da história”.

Os limites da segunda onda do socialismo

Antes de avançar na análise da realidade atual e das perspectivas futuras da terceira onda do socialismo, devemos primeiro revisitar a segunda onda e compreender as razões que provocaram seu retrocesso.

Com a Revolução de Outubro, em 1917, e a Revolução Chinesa, em 1949, o socialismo impactou o mundo, não apenas formando um bloco de Estados que representava uma ameaça significativa ao capitalismo, mas também impulsionando uma onda de movimentos de libertação nacional no vasto Terceiro Mundo da Ásia, África e América Latina. Nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o sistema capitalista mundial estava em uma situação precária. À medida que o socialismo se espalhava globalmente, países socialistas implementaram economias planejadas no modelo soviético e sistemas de propriedade estatal, atingindo a etapa inicial da industrialização e construindo sistemas econômicos nacionais socialistas.

No entanto, o modelo soviético de economia planejada e o modelo de propriedade estatal pura tinham uma série de desvantagens. Primeiro, a economia planejada não era capaz de alocar recursos sociais e econômicos de maneira eficaz e flexível, resultando em um sistema econômico nacional rígido e distorcido que não respondia adequadamente aos indicadores da economia real. Segundo, o modelo de propriedade estatal pura e o sistema de distribuição igualitária careciam de mecanismos suficientes de incentivo ao trabalho nos níveis micro e intermediário. Isso levou à falta de concorrência construtiva e à pressão entre empresas e trabalhadores, resultando, em geral, em um nível baixo de eficiência econômica. Terceiro, as restrições e a eliminação da economia mercantil e do setor privado violaram a lei do valor e ultrapassaram o estágio de desenvolvimento das forças sociais produtivas. Disso resultou um fracasso sistêmico e de longo prazo em que o Estado não foi capaz de atender às necessidades complexas da vida econômica e social, nem de proporcionar melhorias significativas na qualidade de vida da população. Finalmente, ao longo do tempo, o planejamento e a gestão econômica do modelo soviético levaram ao desenvolvimento de um sistema cada vez mais fechado e voltado para dentro, caracterizado pelo burocratismo e dogmatismo, assim como por uma falta de sensibilidade e de capacidade de responder ao progresso tecnológico e à inovação organizacional.

Embora os retrocessos significativos da segunda onda do socialismo nas décadas de 1980 e 1990 possam ser atribuídos, em parte, a fatores externos, como a força do sistema capitalista e a fragmentação do bloco socialista, os fatores determinantes para tais retrocessos foram, em última instância, a inadequação dos mecanismos institucionais e os sistemas econômicos e sociais dos países socialistas. A insustentabilidade desses sistemas internos impulsionou as mudanças dramáticas na União Soviética, assim como o giro da China em direção à reforma e abertura.

O socialismo com características chinesas e a terceira onda do socialismo

Com o avanço da reforma e abertura, o socialismo com características chinesas se configurou como um caminho de desenvolvimento que se distinguiu tanto do modelo soviético de socialismo tradicional, quanto do capitalismo clássico de livre mercado. As teorias e a trajetória de desenvolvimento da China entram de forma contundente no cenário mundial. Embora o socialismo com características chinesas não seja um modelo estático e as práticas da China passem constantemente por experimentações, seis características principais podem ser identificadas após mais de quatro décadas dessa experiência.

A primeira característica é a prioridade dada ao desenvolvimento das forças produtivas. O socialismo com características chinesas ousa aprender com formas econômicas adequadas do capitalismo e permite o desenvolvimento do setor privado para promover o desenvolvimento rápido das forças produtivas avançadas. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da economia estatal foi planejado estrategicamente em setores-chave, formando uma relação complementar com a economia privada e criando uma estrutura de propriedade mista.

A segunda característica é que a China promoveu uma profunda integração de sua base econômica e das relações de produção socialistas com a economia de mercado, estabelecendo gradualmente um sistema econômico socialista de mercado.

A terceira característica é que, enquanto se abria e se integrava ao sistema capitalista mundial, a China sempre se empenhou em manter sua soberania nacional e em garantir a natureza continuamente socialista do Partido Comunista da China (PCCh). A China permanece vigilante contra os riscos de desvio ao capitalismo, relacionados com as demandas de desenvolver uma economia de mercado.

A quarta característica é o método chinês de enfrentar, por meio do desenvolvimento, questões relacionadas à justiça social e às desigualdades. O desenvolvimento pode proporcionar o aumento da riqueza, mas, por uma série de fatores, isso também poderia levar ao aumento de divisões sociais. Somente um desenvolvimento mais avançado pode produzir a base material e a riqueza social necessárias para superar tais divisões e desigualdades sociais. No socialismo com características chinesas, o desenvolvimento tem sido a principal estratégia para enfrentar questões de justiça social, ao passo que outros métodos são adotados complementarmente. Isso exige medidas dinâmicas e proativas, em vez de métodos rígidos e uniformes.

A quinta característica é a adoção, pelo Estado, de uma série de medidas para equilibrar a desigualdade de riqueza dentro da economia socialista de mercado. Campanhas massivas de erradicação da pobreza foram realizadas para incluir grupos marginalizados pela economia de mercado e apoiar sua saída da pobreza por meio de esforços direcionados. Além disso, a prática de assistência pareada conecta instituições públicas, empresas e outros atores de áreas desenvolvidas com áreas pobres para transferir recursos e assistência a regiões menos desenvolvidas. Ao mesmo tempo, para enfrentar desigualdades regionais, transferências de recursos das regiões mais desenvolvidas do leste para as áreas menos desenvolvidas do centro e oeste tem contribuído para reduzir as distâncias entre a receita fiscal e a capacidade de investimento. Em países capitalistas, onde a propriedade privada é considerada sagrada e onde os processos eleitorais sustentam apenas os interesses da classe dominante, essas medidas são difíceis de se imaginar, quanto mais de serem implementadas.

A sexta característica é o fato de que o PCCh não está subordinado a interesses restritos de determinados setores da sociedade. Para manter-se nessa posição, o PCCh deve permanecer imune às tentativas de infiltrações e de controle do capital, além de superar as influências do populismo e do igualitarismo rígido, mantendo um equilíbrio dinâmico entre vitalidade econômica e equidade social.

A relação entre o socialismo e a economia de mercado

A história demonstrou que é impossível eliminar artificialmente a economia de mercado no socialismo. As limitações e o fracasso do modelo soviético de socialismo são evidências disso.

A economia de mercado é uma forma econômica antiga e sua lei de oferta e demanda regula espontaneamente o comportamento econômico humano. Ela pode ser combinada com o feudalismo, com o capitalismo e com o socialismo. O grau de combinação depende do excedente de produção social. Em termos gerais, quanto maior o excedente, mais desenvolvida se torna a economia de mercado. Como disse Deng Xiaoping, “não há contradição fundamental entre o socialismo e uma economia de mercado. A questão é como desenvolver as forças produtivas de forma mais eficaz”.[1] Da mesma forma, ele afirmou: “uma economia planejada não é equivalente ao socialismo, porque também há planejamento no capitalismo. Uma economia de mercado não é capitalismo, porque também há mercados no socialismo. Tanto o planejamento como as forças de mercado são meios de controlar a atividade econômica”.[2]

O capital é o protagonista principal em uma economia de mercado moderna. O capital possui uma natureza dual: é a força mais eficiente para a alocação de recursos na economia de mercado, mas também pode manipular e monopolizar o mercado. Fernand Braudel, historiador francês e destacado estudioso da escola historiográfica Annales, argumentou que a economia de mercado não poderia ser equiparada ao capitalismo. Para Braudel, a economia de mercado “não passa de um fragmento num vasto conjunto, pela sua própria natureza que a reduz ao papel de ligação entre a produção e o consumo, e pelo fato de que, antes do século XIX, era uma simples camada mais ou menos espessa e resistente, por vezes muito delgada, entre o oceano da vida cotidiana que a inclui e os processos do capitalismo que, uma vez em cada duas, a manobram de cima”.[3] Distinto da economia de mercado, Braudel escreveu que “o capitalismo deriva, por excelência, das atividades econômicas desenvolvidas na cúpula ou que tendem para a cúpula. Por conseguinte, esse capitalismo de alto vôo flutua sobre a dupla espessura subjacente da vida material e da economia coerente do mercado, representando a zona de alto lucro”.[4] Na atual economia de mercado global, dominada pelo capitalismo moderno, forças internas de resistência a esse sistema continuam a emergir, impulsionando demandas e movimentos por igualdade econômica e social. Esses movimentos tendem a se aproximar e a defender o socialismo para enfrentar e superar as desigualdades do capitalismo. Dessa forma, o socialismo também é uma força interna da economia de mercado, um componente orgânico que, naturalmente, se opõe ao capitalismo.

Além do capital, o Estado também é um ator-chave em uma economia de mercado moderna. O Estado é um produto da demanda social por ordem e regras. Sua existência não é uma força externa imposta ao mercado, mas uma exigência intrínseca da economia de mercado. Mesmo em uma sociedade de mercado sem Estado, entidades quase governamentais irão surgir, como associações e câmaras de comércio. Além de regular e administrar a economia de mercado, o Estado frequentemente promove e desenvolve o mercado, especialmente nas fases iniciais das economias de mercado em países em desenvolvimento. Na verdade, é frequente que o Estado se torne a força motriz por trás da economia de mercado. Portanto, é um equívoco colocar o Estado e o mercado em completa oposição um ao outro, como se fossem entidades dicotômicas. O liberalismo considera o Estado como um mal absoluto e o modelo soviético de socialismo equipara a economia de mercado diretamente ao capitalismo: ambos cometem erros formalistas.

Uma economia socialista de mercado é aquela em que o movimento da economia de mercado é guiado por valores socialistas. Por um lado, esse sistema econômico adota a regulação estratégica nacional, para alavancar plenamente o papel fundamental da economia de mercado na organização da produção e do comércio, na orientação do consumo e da distribuição, e para aproveitar completamente a liderança do capital no desenvolvimento das forças produtivas avançadas. Por outro lado, utiliza o poderoso capital estatal e a superestrutura socialista para conter e equilibrar o capital privado, superar a tendência inerente da economia de mercado à divisão social e evitar o controle do capital sobre a vida econômica e social.

A economia socialista de mercado é um sistema que utiliza o papel decisivo da economia de mercado ao otimizar a função do Estado. Representa a combinação da economia de mercado moderna e do modo de produção socialista.

Manter o caráter socialista de uma economia socialista de mercado

A superestrutura e a ideologia do capital são compatíveis com seu modo de produção e seguem sua lógica operacional. Essa lógica não se altera sob as condições de uma economia socialista de mercado. O movimento espontâneo da economia de mercado e a busca dos atores capitalistas por lucro tendem a corroer a superestrutura e a ideologia do socialismo, podendo levar ao desequilíbrio ou mesmo à desintegração da economia socialista de mercado, o que conduziria a sociedade em direção ao capitalismo. Na era do capitalismo global, os desafios enfrentados pelas economias socialistas de mercado em nações soberanas tornam-se ainda mais evidentes à medida que o capital penetra nas fronteiras nacionais. Como, então, a China consegue manter o caráter e a direção socialista de sua economia socialista de mercado?

Em primeiro lugar, a chave está na liderança do PCCh e na garantia de que a natureza socialista do partido não seja alterada. Na economia socialista de mercado, o PCCh alavancou plenamente o papel do capital no desenvolvimento das forças produtivas avançadas e na promoção do crescimento contínuo da riqueza social, impedindo, ao mesmo tempo, a infiltração e manipulação do partido pelo capital. O partido controla ativamente o capital, colocando-o a serviço da maioria do povo. O Secretário-Geral Xi Jinping enfatiza a relação essencial entre a liderança do partido e o socialismo, afirmando que “a característica essencial e a maior vantagem do sistema do socialismo com características chinesas são a liderança do PCCh, sendo o Partido a suprema força de liderança política”.[5]

Em segundo lugar, a estabilidade da economia socialista de mercado também resulta do fato de que a China acumulou uma grande quantidade de ativos estatais nos últimos 70 anos de desenvolvimento, incluindo empresas, instituições financeiras e terras. O controle estatal desses ativos estratégicos sustenta a governança do PCCh e garante a independência do partido em relação às forças do capital, permitindo um governo baseado nos interesses fundamentais do país e do povo.

Em uma economia socialista de mercado, as empresas estatais e o capital estatal também devem operar e competir de acordo com as leis da economia de mercado. As lógicas do mercado e do capital penetram profundamente o comportamento cotidiano não apenas das empresas privadas, mas também das empresas estatais. Portanto, é especialmente importante garantir que os gestores desses ativos estatais massivos não se tornem agentes da burguesia, a fim de evitar que os ativos estatais sejam transformados em ativos privados ou que os gestores estabeleçam um controle interno vinculado aos interesses burgueses. Para manter o caráter socialista da economia socialista de mercado, o PCCh deve garantir tanto a eficiência operacional quanto a manutenção da propriedade estatal desses ativos.

Em terceiro lugar, a superestrutura e a ideologia do socialismo devem ser controladas pelo partido. Em setores como educação, publicações e mídia, a busca por benefícios econômicos deve estar subordinada aos benefícios sociais. A lógica da economia de mercado não deve dominar esses setores, e a liderança do partido deve ser integrada às suas operações cotidianas. Se o socialismo não fornecer liderança ideológica e cultural, o capitalismo inevitavelmente o fará.

Em quarto lugar, sob as condições de uma economia de mercado, o PCCh liderou o desenvolvimento da sociedade civil e de organizações não governamentais. O crescimento dessas forças sociais é um fenômeno inevitável em uma economia de mercado. Uma consequência do efeito de diferenciação da economia de mercado é o surgimento de demandas de diferentes grupos de interesse para lidar com questões como desigualdade de renda, degradação ambiental, desmoralização da sociedade e outros problemas gerados pelo capital privado. Considerando a forte tradição histórica de “feudalismo burocrático” da China, o desenvolvimento e construção dessas forças sociais pode contribuir para a superação do formalismo e da burocracia excessiva nos departamentos governamentais. Portanto, o partido liderou o desenvolvimento dessas forças sociais e incentivou sua organização, promovendo o desenvolvimento estável e de longo prazo da economia socialista de mercado.

Promovendo a terceira onda do socialismo

A oportunidade para uma nova onda global do socialismo emerge neste momento de grandes crises enfrentadas pelo sistema capitalista contemporâneo. O socialismo com características chinesas é um fator-chave dessa onda. À medida que a China continua a crescer e assume uma posição de liderança como potência global, o caminho do desenvolvimento chinês deve atrair mais atenção como uma alternativa viável, tanto de modo de produção como de estilo de vida, promovendo a formação de um novo sistema socialista global e de um sistema de valores que seja cada vez mais aceito pelas pessoas ao redor do mundo.

Ao mesmo tempo, durante esse período histórico de transição, o socialismo com características chinesas também enfrenta desafios e ameaças particularmente agudas. Desde a crise financeira de 2008, e especialmente desde a pandemia de Covid-19, as fortalezas do socialismo chinês tornaram-se cada vez mais evidentes no cenário internacional. A China transformou muitas dessas crises em oportunidades, impulsionando o país a alcançar um patamar mais elevado de desenvolvimento e aprimorando seu sistema e capacidade de governança. O contraste marcante entre a China e os países ocidentais nesses aspectos abalou fundamentalmente a narrativa do capitalismo ocidental. O impacto disso é maior do que apenas o poder militar e as taxas de crescimento econômico.

Como reação, diversas forças do capital internacional se mobilizam contra a China. São incontáveis os ataques e difamações de forças políticas liberais, nacionalistas e populistas. Até mesmo algumas forças da esquerda internacional criticam severamente a China em questões de democracia, direitos humanos e proteção ambiental, chegando a questionar se a China é verdadeiramente socialista. Desde que a administração Biden assumiu o poder nos Estados Unidos, a política de alianças aumentou em escala global. Uma “santa aliança” burguesa liderada pelos EUA está se formando rapidamente sob o pretexto de conter a China.

A terceira onda de socialismo que está emergindo sem dúvida irá enfrentar uma noite escura e experimentará tumultos e caos ainda mais intensos dentro do sistema capitalista mundial. Os socialistas chineses devem estar preparados.

Referências bibliográficas

Braudel, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Traduzido por Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

Deng Xiaoping. “Excerpts from Talks Given in Wuchang, Shenzhen, Zhuhai, and Shanghai” [Trechos de falas proferidas em Wuchang, Shenzhen, Zhuhai e Xangai], 18 de janeiro – 21 de fevereiro de 1992. Em Selected Works of Deng Xiaoping,vol. 5, 1982–1992 [Obras escolhidas de Deng Xiaoping, vol. 5, 1982-1992]. Pequim: Foreign Languages Press, 1994. https://en.theorychina.org.cn/llzgyw/WorksofLeaders_984/deng-xiaoping-/.

Deng Xiaoping. “Não existe contradição fundamental entre o socialismo e a economia de mercado”, 23 de outubro de 1985. Traduzido por Swen Zettler. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/deng-xiaoping/1985/10/23.htm

Partido Comunista da China. “Resolução do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre as Grandes Conquistas e Experiências Históricas na Luta Centenária do Partido”. Xinhua Português, 16 de novembro de 2021. Disponível em: http://portuguese.news.cn/2021-11/16/c_1310314696.htm.

Notas do autor

1. Deng Xiaoping, “Não existe contradição fundamental entre o socialismo e a economia de mercado”, 23 de outubro de 1985, traduzido por Swen Zettler. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/deng-xiaoping/1985/10/23.htm

2. Deng Xiaoping, “Excerpts from Talks Given in Wuchang, Shenzhen, Zhuhai, and Shanghai” [Trechos de falas proferidas em Wuchang, Shenzhen, Zhuhai e Xangai], 18 de janeiro – 21 de fevereiro de 1992, em Selected Works of Deng Xiaoping,vol. 5, 1982–1992[Obras escolhidas de Deng Xiaoping, vol. 5, 1982-1992] (Pequim: Foreign Languages Press, 1994), 361. https://en.theorychina.org.cn/llzgyw/WorksofLeaders_984/deng-xiaoping-/.

3. Fernand Braudel, A dinâmica do capitalismo, trad. Álvaro Cabral (Rio de Janeiro: Rocco, 1987), 29.

4. Braudel, A dinâmica do capitalismo, 73.

5. Ver “Resolução do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre as Grandes Conquistas e Experiências Históricas na Luta Centenária do Partido”, Xinhua Português, 16 de novembro de 2021. Disponível em: http://portuguese.news.cn/2021-11/16/c_1310314696.htm.

Vol.1 N.º 4 | 20.12.2023

Wenhua Zongheng: Revista Trimestral do Pensamento Chinês | VOL.1 N.º 4

Perspectivas chinesas sobre o socialismo do século XXI


Lü Yanchun (吕延春), Domicílios familiares do nordeste chinês (关东人家), 2005.

Como quebrar o círculo vicioso do subdesenvolvimento no Sul Global

Marco Fernandes

Marco Fernandes é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, co-fundador do Coletivo Dongsheng, membro da campanha Basta de Guerra Fria. Colabora com artigos e entrevistas para diversas mídias, sobretudo no Brasil, China e Rússia. Bacharel e Mestre em História, Doutor em Psicologia Social (todos pela Universidade de São Paulo, Brasil). Contribui com organizações populares do Sul Global. Mora em Pequim.

Diz um ditado popular chinês contemporâneo que “em 1949, o socialismo salvou a China. No século XXI, a China vai salvar o socialismo”. Em um discurso de 2018 a novos membros do Comitê Central, o presidente chinês Xi Jinping (习近平) lembrou que, após o colapso da União Soviética, se a experiência chinesa tivesse fracassado, “então a prática do socialismo teria que vagar na escuridão por um longo tempo e, de novo, seria um espectro”, como disse Marx em sua época.

Mas quais as principais características do socialismo com características chinesas? Por que mercado e planejamento não são antagônicos e como podem ser integrados em uma estratégia socialista? O que diferencia o socialismo chinês do modelo soviético? Quais os maiores desafios que a China enfrenta diante das contradições que o mercado impõe ao socialismo? A experiência chinesa pode inspirar outros países no caminho do socialismo? Estas são algumas das questões centrais levantadas pelos dois ensaios que publicamos no quarto número da edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横): o primeiro de Yang Ping (杨平), editor-chefe da edição chinesa da Wenhua Zongheng, e o segundo de Pan Shiwei (潘世伟), presidente honorário do Instituto de Marxismo Chinês da Academia de Ciências Sociais de Xangai.

No artigo A terceira onda do socialismo, Yang Ping sugere que, durante o último século e meio, existiram três ondas de socialismo científico: o surgimento do Marxismo e de movimentos revolucionários na Europa, durante o século XIX (primeira onda); a criação de um grande número de Estados socialistas e movimentos de libertação nacional, durante o século XX (segunda onda); e, diante do colapso da experiência soviética e do esgotamento do socialismo da Era Mao Tse Tung, o surgimento de uma economia socialista de mercado, iniciada com a reforma e abertura da China, nos anos 1970 (terceira onda). Da mesma forma, no artigo As novas formas do socialismo no século XXI, Pan Shiwei afirma que surgiram três formas principais de socialismo: o socialismo clássico nos centros do capitalismo europeu, as formas transformadoras de socialismo nas colônias e semi-colônias e uma nova forma de socialismo que está se desenvolvendo na China e tem como objetivo superar o capitalismo. Ambos os autores acreditam que a nova onda, ou nova forma de socialismo, está em seus estágios iniciais e discutem como ela pode fortalecer ainda mais o socialismo na China e servir de inspiração para outras nações do mundo.

Em tempos de declínio econômico das potências imperialistas, mergulhadas em um frenesi bélico na Ucrânia e na Palestina – que corre o risco de se expandir para o Leste e Sudeste da Ásia e afundar a humanidade na terceira guerra mundial –, quais são as oportunidades que a ascensão da China socialista traz para o Sul Global? Dialogando com as perspectivas dos autores dos artigos, propomos algumas ideias nesta nota editorial.

Feitos e desafios do socialismo chinês

Após 45 anos de reforma e abertura, o socialismo de mercado transformou a China em uma potência industrial, tecnológica, financeira, comercial e militar. Pelo PIB por paridade de poder de compra (PPC), uma medida mais real para a comparação de economias nacionais, a China já supera os Estados Unidos com certa folga. Em 2002, o PIB PPC da China foi de US$30,32 trilhões contra US$25,46 trilhões dos EUA. Ou seja, o PIB PPC chinês equivale a 119% do estadunidense. Para que tenhamos uma dimensão histórica desse feito para o campo socialista, em 1975, no auge econômico da URSS, seu PIB PPC chegou, no máximo, a 58% do PIB dos EUA.

A China é a maior potência industrial desde o final dos anos 2000. O país produziu, no ano passado, 26,7% de toda a manufatura do mundo, seguida pelos EUA (15,4%), Japão (5,3%) e Alemanha (4%). Ou seja, a produção industrial chinesa supera a soma da produção das três maiores nações industriais do Norte Global. Os chineses também deram saltos tecnológicos impressionantes nas últimas décadas, passando a liderar mundialmente setores como telecomunicações (5G), trens de alta velocidade, energias renováveis, refino de minerais e veículos elétricos, além de terem atingido estágios avançados em muitos outros setores, incluindo inteligência artificial, computação quântica, biotecnologia e construção civil.

A China é a maior potência comercial do mundo, sendo a principal parceira comercial de mais de 120 países. Em 2022, exportou US$6,28 trilhões, com um superávit de US$860 bilhões, fechando o ano com reservas internacionais de US$3,13 trilhões. Nas finanças, o Estado chinês controla os quatro maiores bancos do mundo – Industrial and Commercial Bank of China (ICBC), China Construction Bank (CCB), Agricultural Bank of China (ABC) e Bank of China –, com um total de cerca de US$20 trilhões em ativos. O país tornou-se a maior fonte de financiamento para o desenvolvimento global, superando todos os países e todas as instituições multilaterais, inclusive o Banco Mundial.

Por fim, a China foi capaz de um dos maiores feitos da história: a retirada de 850 milhões de pessoas da extrema pobreza entre 1978 e 2021. Segundo o Banco Mundial, isso corresponde a 76% de toda a população mundial que se encontrava nesta situação no período.

No entanto, a China ainda é um país em desenvolvimento e enfrenta enormes desafios econômicos, sociais e políticos para avançar além do “estágio primário” do socialismo, como eles assim definem. Esses desafios incluem necessidade de reduzir a desigualdade entre campo e cidade e entre regiões do país (o Leste é muito mais desenvolvido do que o Oeste), de elevar a renda e o bem-estar social dos mais de 300 milhões de trabalhadores migrantes, de reduzir o alto desemprego na juventude, de diminuir a enorme dependência econômica do setor imobiliário sob a lógica financeirizada, de enfrentar as consequências ambientais causadas por uma industrialização hiper acelerada, de se adaptar ao envelhecimento da população e à desaceleração da taxa de natalidade, de retomar a formação política marxista no Partido Comunista da China e entre as massas (uma das prioridade de Xi Jinping), e de enfrentar as táticas de guerra híbrida aplicadas pelas potências ocidentais para tentar conter o avanço chinês.

Uma onda socialista ou desenvolvimentista no Sul Global?

A China conseguiu quebrar a maldição do Terceiro Mundo e rompeu o círculo vicioso de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Após décadas de independência de sua condição de colônias das potências ocidentais, esse círculo vicioso continua definindo a experiência dos países da periferia do sistema capitalista. Graças a seu tremendo sucesso econômico, cada vez mais países do Sul Global veem a China como um exemplo que poderia ser seguido – levando-se em conta as particularidades locais –, mas também como uma possível parceira na busca de uma estratégia desenvolvimentista. A China, por sua vez, move-se cada vez mais para construir estas parcerias.

Em outubro de 2022, o relatório do 20º Congresso Nacional do PCCh apresentou uma contundente crítica marxista ao modelo ocidental de modernização, baseado na colonização, pilhagem, escravidão e exploração predatória dos recursos naturais e dos povos do Sul Global. Esse modelo não apenas serviu de base para os processos de industrialização da Europa e dos Estados Unidos, mas também para sua dominação econômica, política e militar sobre o resto do mundo, resultando na formação do imperialismo. Em resposta, a China elaborou o “caminho da modernização chinesa”, que pode ser caracterizado pelos princípios da prosperidade compartilhada entre uma população gigantesca, do progresso material e ético-cultural, da harmonia entre humanos e natureza e do desenvolvimento pacífico.

Essa consciência histórica formata a política de Estado da China, particularmente a Nova Rota da Seda (NRS), lançada em 2013, visando impulsionar o desenvolvimento do oeste chinês a partir de sua conexão com a Ásia Central. “Atravessando o rio, enquanto sente as pedras”, ao estilo Deng Xiaoping (邓小平), o governo chinês percebeu que esse poderia ser o pilar de sua estratégia para o Sul Global, assolado por mais de três décadas de neoliberalismo. Dez anos e centenas de bilhões de dólares depois, essa direção foi reforçada no 20º Congresso Nacional do PCCh, cujo relatório afirma o comprometimento da China em atuar para diminuir a distância entre o Norte Global e o Sul Global, apoiando a aceleração do desenvolvimento nas nações do Sul Global.

As recentes movimentações apontam para um estágio mais elevado de cooperação entre a China e os países em desenvolvimento. Por exemplo, na cúpula entre a China e países africanos – logo após a 15ª cúpula do BRICS, em agosto – líderes da África expressaram reconhecimento por todos os esforços chineses nas últimas duas décadas para promover a infraestrutura do continente, mas pediram à China que mude seu foco de investimento da infraestrutura para a industrialização.[1] Xi Jinping concordou com a proposta. A propósito, debate semelhante foi feito na cúpula Rússia-África, em julho, confirmando a atual estratégia africana.

Em grande parte do Sul Global, a necessidade de industrialização volta a ocupar o debate público, desde países como o Brasil e a África do Sul, até países como a Bolívia e o Zimbábue. No primeiro caso, são países que já tiveram indústrias sólidas e diversificadas, mas que sofreram um processo de desindustrialização nas últimas décadas. No segundo caso, apesar de Bolívia e Zimbábue possuírem abundantes recursos naturais, nunca tiveram condições de acumular capital suficiente para iniciar um processo de industrialização consistente, devido à dinâmica de exploração pelas potências ocidentais.

Inúmeras parcerias entre empresas chinesas estatais e privadas com países do Sul Global têm sido estabelecidas no último período, muitas delas relacionadas ao processamento local de minerais de alta demanda, ou à produção de carros elétricos. Por exemplo, bilhões de dólares estão sendo investidos pela China em fábricas de processamento de lítio na Bolívia, em uma mega usina siderúrgica e uma fábrica de lítio no Zimbábue, em plantas de processamento de níquel na Indonésia e um hub de fábricas de veículos elétricos no Marrocos. Há uma grande expectativa de que iniciativas regionais, como a NRS, o BRICS 11 e a Organização de Cooperação de Xangai, possam servir como alavancas desse processo, ainda que enfrentem oposição das potências ocidentais.

Sem esse esforço de industrialização, os povos do Sul Global não conseguirão superar os profundos problemas que ainda enfrentam, como a fome, o desemprego, a falta de acesso à educação, à moradia e à saúde de qualidade. Por outro lado, isso não será possível apenas pelas relações com a China (ou com a Rússia). Sem o fortalecimento dos projetos populares nacionais, contando com ampla participação de setores sociais progressistas, sobretudo das classes populares, dificilmente os frutos de um eventual ciclo de desenvolvimento serão colhidos por aqueles que mais precisam. Porém, são raros os países do Sul Global que vivem processo de ascensão das lutas de massas. Por isso, ainda é muito difícil vislumbrar uma “terceira onda socialista” global, mas uma nova onda desenvolvimentista – que pode tomar um caráter progressista – parece viável. A contradição principal da nossa época é o imperialismo. E todos os esforços para enfrentá-lo são estratégicos.

Não há dúvida de que a China, assim como a Rússia, têm sido tão atacadas pelas potências imperialistas exatamente porque construíram fortes nações soberanas nas últimas décadas. Além disso, a China e, em menor medida, a Rússia oferecem um leque de capacidades industriais, tecnológicas, financeiras, comunicacionais e militares às quais o Sul Global nunca teve acesso. Isso amplia as opções do Sul Global e tem o potencial de enfraquecer a hegemonia das potências ocidentais. Não foi exatamente isso que faltou para o sucesso do “projeto do terceiro mundo” entre os anos 1950 e 1970, quando ocorreu a grande onda de processos de libertação nacional e de desenvolvimentismo, cujos sonhos foram abortados pelo neoliberalismo e pela máquina de guerra do Império?

Notas do autor

1. Ver “As relações entre a China e a África na era da Nova Rota da Seda”, Wenhua Zongheng (文化纵横), edição internacional 1, número 3 (outubro de 2023). Disponível em: https://dongshengnews.org/pt/whzh-vol1-no3-pt/.

A terceira onda do socialismo

Yang Ping

As novas formas de socialismo no século XXI

Pan Shiwei

A Nova Rota da Seda da China e a industrialização africana | 03.10.2023
Zhao Jianqiu (赵溅球), Saudades de casa  (回望故乡), s.d.. Pintura com tinta chinesa, 60 x 90 cm. Crédito: Fundo Nacional de Arte da China.

A Nova Rota da Seda da China e a industrialização africana

Tang Xiaoyang

Tang Xiaoyang (唐晓阳) é diretor e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Tsinghua. Seus interesses de pesquisa incluem filosofia política, o processo de modernização global e o envolvimento da China com os países em desenvolvimento. É autor de Coevolutionary Pragmatism: Approaches and Impacts of China-Africa Economic Cooperation (Cambridge University Press, 2020) e de uma série de publicações sobre a Nova Rota da Seda. Trabalhou como consultor para o Banco Mundial, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).

O artigo “A nova rota da seda da China e a industrialização africana” (激活非洲工业化:“一带一路”能带来什么) foi publicado originalmente em agosto de 2022, no número 4/2022 da Wenhua Zongheng (文化纵横).

Há muito tempo, os governos dos países da África chegaram a um consenso: “a industrialização é a essência do desenvolvimento”.[1] Na segunda metade do século XX, as nações africanas buscaram a industrialização continuamente, empreendendo diversos caminhos para desenvolver suas próprias indústrias. Nos anos 1960 e 1970, as políticas industriais enfatizaram a auto-suficiência e a substituição de importações. Nas décadas seguintes, a adoção de programas de ajuste estrutural impulsionados pelos países ocidentais foram caracterizados pela liberalização do mercado. Entretanto, nenhuma destas políticas foram capazes de garantir o crescimento industrial sustentável na África e sua transformação.

No século XXI, os países africanos remodelaram seus caminhos rumo à industrialização e ao desenvolvimento. Por todo o continente, os governos se tornaram mais unificados na forma de pensar e formularam a ambiciosa Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (2001) e o Plano de Ação para o Desenvolvimento Industrial Acelerado da África (2007). No entanto, os objetivos dessas iniciativas ainda estão por ser concretizados. Embora, de forma geral, o valor absoluto da produção da indústria de transformação na África Subsaariana tenha crescido, a cada ano, nas últimas duas décadas, a taxa de crescimento tem sido lenta e, consequentemente, a participação da manufatura no Produto Interno Bruto (PIB) diminuiu (Gráfico 1).

Gráfico 1: Participação percentual da manufatura no PIB da África Subsaariana (1971-2018). Fonte: Banco Mundial.

Na África, o maior desafio para a industrialização é a dificuldade de integração de diversas partes em um sistema. No início da revolução industrial do século XVIII, o economista Adam Smith observou que a alta produtividade da industrialização derivava, principalmente, da divisão do trabalho, da colaboração e do uso de maquinário em várias etapas dos processos de produção, de modo a executar ações extremamente simples de forma altamente efetiva.[2] Esse padrão básico ainda é aplicado na manufatura, mas a profundidade e amplitude da divisão do trabalho e da colaboração excedem em muito as do passado. Atualmente, a manufatura de quaisquer produtos, sejam broches, calçados, bonés, computadores ou carros, requer a cooperação de uma série de empresas e fábricas. A cadeia industrial contém muitos elos e conexões relacionadas com as matérias primas, as ferramentas e o maquinário, o design, as partes e acessórios, a aprovação de produtos finalizados, a embalagem e as vendas. Uma empresa pode ser responsável por um ou por alguns desses elos, especializando-se para vencer a concorrência de mercado em uma área delimitada. Dentro de cada empresa, o processo produtivo também é altamente segmentado: uma linha de produção geralmente é composta por centenas de processos, operados simultaneamente por centenas ou milhares de trabalhadores, com o uso de um grande número de máquinas e equipamentos.

O sistema industrial moderno é estreitamente interligado e requer que cada parte execute sua respectiva tarefa de forma precisa e cronometrada. A operação de toda uma cadeia de produção pode ser perturbada por qualquer ausência ou atraso provocado por qualquer entidade, indivíduo ou mesmo por uma peça de máquina. Além disso, o fluxo massivo de materiais requer grandes quantidades de infraestrutura e capacidade de gestão integrada. Assim, o desenvolvimento da indústria moderna não pode depender apenas de empresas ou setores isolados, mas sim das capacidades abrangentes de produção e circulação do país em questão.

Os países africanos têm sido, historicamente, marginalizados na economia global, servindo como fonte de matérias primas para a Europa e a América do Norte. Muitos países do continente não tem um setor industrial completo e suas fábricas, em geral, precisam importar grande parte das peças e do maquinário do exterior. A infraestrutura e o abastecimento local de água e energia são muitas vezes limitados e incapazes de atender a demanda da produção em larga escala. Ao mesmo tempo, instalações precárias de transporte, ineficiências administrativas e complexidades políticas e geográficas resultam em um baixo nível de intercâmbio e circulação de materiais, tanto dentro da África quanto entre o continente e outras regiões. Finalmente, devido à falta de experiência prática e de treinamento sistemático, há uma série de deficiências nas habilidades técnicas e profissionais de trabalhadores, assim como nas capacidades organizacionais e de coordenação de gerentes. Esses fatores restringiram, em múltiplos níveis, o aprofundamento de uma divisão do trabalho interconectada no continente e, ao longo do tempo, a distância entre o desenvolvimento industrial africano e o de outras regiões do mundo tem crescido.

Como a Nova Rota da Seda tem promovido a industrialização na África?

A maior parte das economias africanas ainda depende primariamente da agricultura tradicional de pequena escala e se apoia na produção de subsistência. A produtividade somente poderá ser aprimorada de forma significativa e sustentável por meio da promoção da produção industrial altamente especializada e profissionalizada, junto com reformas de mercado apropriadas. Durante muito tempo, a economia da China também foi majoritariamente agrícola e passou por muitas dificuldades no caminho para o desenvolvimento industrial nacional. A partir do início da reforma e da abertura, no final da década de 1970, a China alcançou um crescimento industrial explosivo, tornando-se a “fábrica do mundo”. A experiência exitosa de industrialização chinesa despertou muito interesse em todo o mundo, inclusive entre os países africanos. Esse crescimento industrial contínuo aumentou ainda mais a demanda da China por recursos, mão de obra e mercados. No contexto de saturação dos mercados europeus e norte-americanos e de intensa concorrência doméstica, é urgente que a China encontre novos parceiros para a cooperação, assim como novas oportunidades de crescimento. Tendo em vista os interesses e aspirações comuns da China e de outros países em desenvolvimento, na Nova Rota da Seda (NRS) o fortalecimento da capacidade industrial é uma área identificada como importante para a cooperação mutuamente benéfica. Nesse mesmo sentido, a industrialização e a cooperação industrial têm sido recorrentemente enfatizadas nos planos de ação do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC). A cooperação em capacidade industrial da China com os países africanos se concentra em três aspectos principais.

1. A construção de parques industriais. Em geral, os países africanos enfrentam a escassez de fatores de produção, devido a seu nível relativamente baixo de industrialização. Visando garantir maior velocidade e fluidez nas operações da produção industrial em larga escala, as empresas chinesas investiram na criação de parques industriais locais em alguns países, introduzindo empresas nos diferentes elos da cadeia industrial para colaboração vertical, construindo infraestrutura e fornecendo serviços básicos para promover a formação de clusters industriais regionais de empresas, fornecedores e instituições interconectados. Em 2007, por exemplo, a estatal (SOE pela sigla em inglês) China Nonferrous Metal Mining Group (CNMC) criou a Zona de Cooperação Econômica e Comercial Zâmbia-China (ZCCZ), em Chambishi, na Zâmbia, para o processamento profundo de recursos naturais extraídos localmente. As empresas que operam nessa área são, em sua maioria, subsidiárias da CNMC. Elas abrangem diversas etapas da cadeia industrial de recursos de cobre e cobalto, incluindo a mineração, a fundição e o processamento. Uma série de empresas privadas chinesas e zambianas fornecem serviços de apoio, como logística e reparação de máquinas.[3] Esse projeto de parque industrial tem contribuído com os esforços da Zâmbia para, a partir da mineração de recursos, progredir gradualmente para as atividades de processamento de maior valor agregado. Em 2009, a ZCCZ inaugurou uma subzona no entorno de Lusaka, capital zambiana, agrupando empresas da indústria leve, como processamento de alimentos, bebidas e produtos plásticos, entre outros setores relacionados com a economia urbana. Mesmo sem haver conexões comerciais diretas entre as empresas estabelecidas na subzona, o fato de que tenham acesso aos serviços ali prestados, como água, energia elétrica, transporte e segurança, diminui os custos da instalação de fábricas. Em grande medida, isso contribui para encurtar o ciclo de investimento. Sem os serviços prestados nessa subzona, só o processo de licenciamento para o uso industrial de energia elétrica poderia levar anos. Pequenas e médias empresas, sem experiência internacional nem grandes volumes de capital, também podem trocar informações, aproveitando da força numérica e economizando recursos que teriam que ser despendidos devido a sua inexperiência.

2. A sinergia entre investimento industrial e construção de infraestrutura. A China é líder global nas indústrias de construção e manufatura. Em 2019, as empresas chinesas responderam por 61,9% do mercado de construção na África.[4] A construção de infraestrutura pela China provê as instalações necessárias para uma série de setores na África, como energia e transporte e, assim, apoia o desenvolvimento industrial. Para desempenhar um papel sustentável no continente, esses projetos de infraestrutura devem ser combinados com a industrialização. A necessidade de investimentos de grande escala, com um horizonte de longo prazo para o retorno lucrativo, são os principais desafios para a construção de infraestrutura na África.

Nos países em desenvolvimento, a receita gerada pelos projetos de infraestrutura pode ser insuficiente para manter as instalações em operação. Com isso em mente, os países africanos e a China planejaram conjuntamente projetos industriais interconectados com projetos de infraestrutura, de modo a melhorar a utilidade e o retorno desses empreendimentos. O caso da ferrovia Addis Ababa-Djibouti é um exemplo. Em 2016, o governo chinês orientou suas empresas a “combinar a construção de infraestrutura de grande escala com a implementação de parques industriais e zonas econômicas especiais, visando construir um cinturão industrial em torno da ferrovia para uma interação harmoniosa entre a infraestrutura de larga escala e o desenvolvimento industrial”.[5] As empresas privadas chinesas já construíram dois parques industriais próximos à capital da Etiópia, Addis Ababa, mas, nos últimos anos, as estatais da China passaram a desempenhar um papel importante. Para aproveitar toda a capacidade da Ferrovia Addis Ababa-Djibouti, a Empresa de Engenharia e Construção Civil da China (China Civil Engineering Construction Corporation) firmou acordos com o governo da Etiópia para construir uma série de parques industriais ao longo da ferrovia, em Hawassa, Dire Dawa, Kombolcha e Adama. Além disso, o China Merchants Group, estatal, participou na construção do Porto de Doraleh, com o objetivo de aumentar significativamente sua capacidade de escoamento, absorvendo o aumento do volume de carga da nova ferrovia. Da mesma forma, China e Quênia firmaram um acordo para aprimorar o porto de Mombasa e construir uma zona econômica especial em seu entorno, visando promover o desenvolvimento de longo prazo ao longo da Ferrovia Mombasa-Nairobi.

3. O foco do investimento industrial da China na África é na produção adequada aos mercados locais e, portanto, em sinergia com o desenvolvimento local, promovendo impulso sustentado para a industrialização. Alguns economistas previram que a África seguiria os países asiáticos na atração da manufatura global intensiva em trabalho, devido aos baixos custos de sua força de trabalho. O continente embarcaria, assim, em um caminho para o desenvolvimento industrial orientado para as exportações.[6] Na prática, entretanto, as indústrias africanas dependem da importação de muitos insumos, como matérias primas, componentes e peças de reposição. Sem um ecossistema bem desenvolvido de fornecedores e prestadores de serviço bem desenvolvido, as fábricas africanas enfrentam problemas crônicos, incluindo atrasos administrativos, congestionamento de tráfego, logística deficiente e taxas de câmbio instáveis, o que resulta na dificuldade de garantir a qualidade e a pontualidade dos pedidos.[7]

As empresas industriais que se estabeleceram na África para operações de longo prazo e que, simultaneamente, impulsionam o crescimento conjunto de empresas locais, tem como foco principal os mercados domésticos dos países africanos, distanciando-se, portanto, de modelos orientados à exportação. Suas operações de produção, abastecimento, marketing e vendas estão todas enraizadas no continente africano. Um exemplo é Sun Jian (孙坚), empresário da província de Wenzhou, na China, que, em 2010 viajou pela Nigéria e percebeu que uma grande quantidade de produtos de cerâmica era importado do exterior. Sun viu uma oportunidade comercial. Por serem pesados e frágeis, os produtos de cerâmica não são propícios para o transporte. Se uma empresa produzisse localmente, teria grande vantagem no mercado. Com um investimento de 40 milhões de dólares, Sun rapidamente estabeleceu a Fábrica de Cerâmica Wangkang na Nigéria, e seus produtos foram rapidamente popularizados entre consumidores locais, de modo que a oferta tornou-se insuficiente.[8]Ao longo da última década, a empresa construiu cinco fábricas de revestimentos na Nigéria, em Gana, na Tanzânia e em Uganda, respondendo por 25% da capacidade de produção de revestimento de cerâmica em toda África. Esse exemplo ilustra como o desenvolvimento industrial pode ocorrer a partir de um exame minucioso do mercado africano e da identificação de nichos.

As empresas transnacionais costumam negligenciar o mercado africano e raramente se dedicam a atender as necessidades e os interesses dos consumidores locais. Em geral, os produtos exportados para a África são mais caros e ultrapassados. Ao estabelecer relações econômicas e comerciais mais próximas com os países africanos, as empresas chinesas desenvolveram um conhecimento mais apurado sobre o mercado africano, identificando novas tendências. As empresas chinesas têm estabelecido suas fábricas para produzir localmente bens de uso cotidiano, como materiais de construção, móveis, plásticos, alimentos, medicamentos, roupas e calçados. A produção local não apenas reduz significativamente os custos de transporte como também assegura que os produtos sejam segmentados e respondam às tendências do mercado e às mudanças nas preferências dos consumidores. Esses produtos fabricados localmente não substituem as importações, mas preenchem lacunas no mercado.

São duas as razões pelas quais as empresas chinesas podem entender melhor os mercados africanos e aproveitar oportunidades industriais: os vários anos de cooperação econômica entre China e África e a força do sistema industrial chinês. O fundador da Wangkang não era, originalmente, empresário do setor de revestimentos, mas, quando percebeu a oportunidade, entrou rapidamente em contato com fornecedores de equipamentos de produção de cerâmica na China e, em poucos meses, conseguiu montar linhas de produção na África. Wangkang pôde contar com as empresas chinesas para instalação, depuração, treinamento e serviços de manutenção. A China é o único país do mundo que reúne todas as categorias listadas na Classificação Internacional Normalizada Industrial de Todas as Atividades Econômicas (CINI) das Nações Unidas, abrangendo tanto as tecnologias de alta precisão quanto os setores tradicionais de baixo custo.[9]

Devido ao fornecimento instável de energia e às dificuldades de manutenção especializada, muitos maquinários de precisão provenientes da Europa e dos Estados Unidos não são os mais adequados para utilização na indústria africana. Em sentido inverso, alguns equipamentos básicos fabricados na China funcionam bem nesse cenário, assim como são econômicos e duráveis. O sistema industrial abrangente da China pode ser usado pelos investimentos industriais no mercado africano, de modo a fornecer serviços robustos de suporte para as atividades de produção na África. Essas fábricas obtêm as principais matérias primas localmente, assim como vendem sua produção no mercado local, formando gradualmente um sistema industrial inicial de produção e circulação. Embora essas indústrias comecem pequenas, elas podem impulsionar o desenvolvimento cíclico abrangente e são um caminho mais sustentável para a industrialização.

Isso é exemplificado pelo crescimento da indústria local de reciclagem de plástico, em Gana. Inicialmente, uma empresa da província de Fujian, na China, começou a coletar os vasilhames de água descartados pela população local, pois estes poderiam ser processados e vendidos como sacolas plásticas de compra. Embora esse fosse um trabalho difícil e cansativo, a empresa era lucrativa porque não enfrentava nenhuma concorrência. Isso logo atraiu muitos seguidores. Assim, mais de dez empresas chinesas seguiram o exemplo, e foram seguidas por empresas locais. Como seus parceiros chineses, estas empresas encontraram fornecedores de máquinas e equipamentos e também entraram nesse setor. Nos primeiros seis ou sete anos, os novos atores não se envolveram em uma concorrência feroz. Ao contrário, trabalharam em conjunto para aumentar o tamanho do “bolo” da indústria (把行业蛋糕做大, bǎ hángyè dàngāo zuòdà).

O alcance geográfico da reciclagem gradualmente se expandiu, de Accra, capital, para todo o país, assim como foram desenvolvidas divisões na cadeia industrial. Por estarem mais familiarizadas com o ambiente social, as empresas locais são mais eficazes em localizar os depósitos de embalagens descartadas e têm se concentrado mais na reciclagem e no processamento primário, empregando centenas de trabalhadores na coleta de resíduos sólidos. As empresas chinesas têm maior domínio sobre produção e maquinário, tendo crescentemente investido em alta tecnologia e processamento final. Além disso, muitas empresas chinesas e ganesas voltaram sua atenção para outros tipos de reciclagem e processamento de plástico. Ao identificar oportunidades de mercado, as empresas chinesas e ganesas impulsionaram o desenvolvimento de toda a cadeia de reciclagem e processamento de plásticos e de um pólo industrial em Gana.[10]

Desafios e soluções da cooperação industrial sino-africana

A cooperação industrial sino-africana teve importantes conquistas nas duas primeiras décadas do século XXI, apoiando-se em um modelo singular de colaboração e complementaridade de estruturas econômicas. Em todo o continente africano, milhares de empresas chinesas investiram em, ou co-construíram, dezenas de parques industriais, empregando uma grande quantidade de trabalhadores locais e impulsionando o crescimento de fornecedores, prestadores de serviços e empresas derivadas.[11]A China estabeleceu seis zonas de cooperação comercial e econômica em países como Egito, Zâmbia, Nigéria, Ilhas Maurício e Etiópia, atraindo mais de 300 empresas e empregando mais de 30 mil trabalhadores locais.[12] Entretanto, os desafios de longo prazo que a África segue enfrentando em sua busca por industrialização são também desafios para o crescimento sustentável da cooperação industrial sino-africana.

Conforme discutido anteriormente, o desafio central da industrialização africana está relacionado com a falta de cooperação sistemática. A cooperação sino-africana avançou ao solucionar alguns problemas de coordenação por meio da construção de infraestrutura e parques industriais, do estabelecimento de cadeias de abastecimento e da conexão entre mercados. Contudo, para um maior desenvolvimento industrial será necessário muito mais do que o fornecimento de equipamentos ou a construção de fábricas. Para se industrializar, os países em desenvolvimento precisam passar por mudanças profundas em suas estruturas sociais e em sua visão de mundo. Esse processo será diferente em cada país ou região, já que dependem das particularidades das histórias, culturas e costumes locais. Por sua vez, ao estabelecer parcerias com países africanos, a China deve compreender as condições e complexidades locais. As empresas chinesas precisam encontrar as formas mais adequadas para lidar com as contradições e com os conflitos que possam surgir, envolvendo os trabalhadores locais, as comunidades nativas, os parceiros comerciais e os órgãos governamentais. Isso se torna particularmente importante com o aumento das tensões internacionais e as tentativas de forças políticas estrangeiras de inflamar controvérsias, instrumentalizando-as para favorecer suas próprias agendas.

No início dos anos 1970, Gunnar Myrdal, economista sueco laureado do prêmio Nobel, apontou que os sistemas sócio-econômicos se auto-reforçam. Devido à inércia social, as dificuldades para os países não industrializados impulsionarem a transição em direção às sociedades industriais são muito maiores do que aquelas que os países desenvolvidos enfrentam para continuar seu desenvolvimento industrial. São diversos os fatores políticos, econômicos, sociais e culturais que atuam para manter esses países em um estado de equilíbrio rebaixado.[13] De acordo com o economista singapurense-americano Yuen Yuen Ang, o desenvolvimento tem um “problema fundamental”, no qual a prosperidade econômica de um país geralmente requer um forte apoio institucional, “mas a obtenção dessas pré-condições também parece depender do nível de riqueza econômica”.[14] Isso cria um dilema do tipo “o ovo ou a galinha”: muitos países em desenvolvimento não tem os recursos para aprimorar seus ambientes institucionais e, consequentemente, não são capazes de impulsionar o desenvolvimento industrial sustentável e de longo prazo. Dessa forma, a economia declina ainda mais, assim como o ambiente institucional se deteriora.

A superação desse dilema cíclico é fundamental para a industrialização africana, assim como para o sucesso de longo prazo da cooperação sino-africana. Para reverter esse círculo vicioso, é preciso aprimorar tanto o “ovo” quanto a “galinha”, ou seja, o crescimento econômico e o desenvolvimento institucional, promovendo, assim, um ciclo de reforço mútuo.

A formação dessa sinergia só poderá ocorrer quando os esforços de todas as partes envolvidas no processo de industrialização estiverem orientados para atingir o mesmo objetivo de promover o crescimento sustentável da produtividade. Na prática, entretanto, não é fácil concretizar esse tipo de cooperação. Na busca pela industrialização, a maioria dos membros da sociedade não se orientam para o crescimento de longo prazo da produtividade, mas só conseguem enxergar as atividades locais e buscar benefícios de curto prazo, desviando-se, assim, do objetivo final. Nesse sentido, para que os países africanos rompam com as limitações do passado e alcancem um progresso contínuo, a determinação de como promover o amplo reconhecimento e o compromisso de todas as partes da sociedade com a industrialização se torna uma questão importante.

Um dos principais desafios da cooperação comercial e econômica sino-africana tem a ver com as diferentes perspectivas e objetivos dos diferentes atores.[15] Um exemplo disso é a Empresa Têxtil de Amizade Tanzânia-China, operada conjuntamente por ambos países. Se, por um lado, os principais objetivos dos executivos chineses são melhorar a produtividade e os lucros da empresa, por outro lado, os executivos tanzanianos, nomeados pelo governo local, não estão preocupados apenas com a eficiência operacional, mas também com a geração de empregos e a receita tributária, além de buscar o aumento das compras de algodão produzido localmente.[16] Da mesma forma, geralmente há diferenças entre os objetivos dos atores envolvidos na construção de infraestrutura e de parques industriais: as empresas chinesas, por exemplo, pretendem aumentar seus lucros, os funcionários do governo chinês buscam melhorar as relações políticas bilaterais, os funcionários dos governos africanos estão preocupados com a receita fiscal e com as oportunidades de geração de emprego, enquanto as populações locais, por sua vez, esperam que os projetos beneficiem as comunidades e suas condições de vida. Mesmo que esses objetivos estejam relacionados entre si e que sejam compatíveis de muitas formas, prioridades distintas podem levar a desacordos e conflitos. No sentido de construir consensos e coordenar os esforços, os diferentes atores precisam fazer ajustes e priorizar o objetivo maior de industrialização, em detrimento de seus respectivos objetivos individuais. Isso contribui para encontrar um terreno comum, respeitando as diferenças, e para obter resultados mutuamente benéficos, o chamado “ganha-ganha” para todos.

Um processo semelhante de adaptação e integração de diferentes perspectivas também aconteceu durante as reformas na China. Em momentos variados ao longo das últimas quatro décadas, o Estado teve que lidar com diferentes tendências na sociedade, incluindo conservadorismo, protecionismo e liberalismo. Por meio de orientação teórica e gestão administrativa, foi possível, finalmente, unificar os diferentes setores nos esforços de desenvolvimento industrial. O desafio da cooperação internacional sino-africana é o fato de incluir múltiplos Estados, cada um com seu próprio sistema de governança. Existem, portanto, questões que não podem ser resolvidas por uma liderança centralizada. O único caminho para a cooperação é por meio de intercâmbios em pé de igualdade. Nesse sentido, os parceiros sino-africanos deveriam aderir ao espírito progressista de “cruzar o rio sentindo as pedras” (摸着石头过河, mōzhe shítou guòhé), segundo o qual há uma ênfase em diálogos robustos, disposição para compromissos e ajustes, entendimento mútuo e consensos. No exemplo da Empresa Têxtil de Amizade Tanzânia-China, o lado chinês respeita as tradições e os interesses tanzanianos, mantém um grande número de funcionários de carreira e dialoga ativamente com as organizações sindicais, ao mesmo tempo em que destaca a natureza de mercado da empresa, introduzindo o sistema de bônus por peça e identificando áreas para melhorar a produtividade.[17] Da mesma forma, nos projetos de parques industriais e de infraestrutura, a cooperação sino-africana aprende com o rápido desenvolvimento econômico da China nos últimos quarenta anos, mas não se limita a um molde fixo. Essa cooperação é orientada pelo princípio “ganha-ganha” na busca de um crescimento econômico sustentável e de longo prazo, que considera as necessidades das partes e tem abertura para sacrificar alguns lucros comerciais de curto prazo em função de interesses políticos e sociais mais amplos.[18]

É evidente que a troca de ideias nem sempre conduz ao entendimento mútuo entre atores que cooperam entre si. A longo prazo, entretanto, tais intercâmbios são fundamentais, além de ser o método mais efetivo para assegurar o desenvolvimento contínuo e profundo da cooperação sino-africana. Esse é um ponto enfatizado pela China em sua parceria com países africanos, baseando-se em sua própria experiência de desenvolvimento, o que torna esse método muito diferente da abordagem dos países ocidentais.

O caráter e significado das relações sino-africanas

O Ocidente tende a adotar uma postura condescendente em relação ao desenvolvimento e à industrialização da África. Seja no papel de governante colonial, suserano ou doador, os países desenvolvidos ocidentais sempre julgaram os países africanos de acordo com seus próprios sistemas políticos e econômicos, criticando a África como “atrasada” e impondo seus próprios modelos ao continente. Por exemplo, durante o Consenso de Washington, os Estados Unidos e os países europeus frequentemente usaram métodos coercitivos, como a recusa de ajuda e a aplicação de sanções para forçar os países africanos a implementar as políticas econômicas ocidentais de livre mercado. Consequentemente, a abordagem ocidental não só não conseguiu se integrar organicamente às sociedades africanas, como também promoveu a divisão e a instabilidade, atrasando os esforços africanos para alcançar uma transformação industrial abrangente e sustentável.

Em sua própria história e desenvolvimento, a China sofreu pressões externas e contratempos semelhantes aos dos países africanos. Por meio de sua própria busca, o país encontrou um caminho eficaz para a industrialização. Portanto, quando se trata das contradições, dos desafios e das complexidades enfrentadas pelos países em desenvolvimento na busca pela industrialização, a China tem perspectivas e compreensões diferentes das ocidentais. Em suas relações com os países africanos, a China destaca a importância do desenvolvimento econômico e do crescimento contínuo da produtividade. Ao mesmo tempo em que busca constantemente sua própria modernização e crescimento industrial, a China também pretende promover o desenvolvimento comum com a África, de modo que o continente possa romper com a pobreza e o subdesenvolvimento e não seja mais controlado e oprimido pelo Ocidente. Assim, a China coopera com os países africanos com o objetivo de aumentar a produtividade. O país mantém uma atitude aberta e pragmática em relação à forma como os países africanos buscam a transformação econômica em suas condições nacionais diversas e singulares. Em vez de impor políticas ao continente africano, a China incentiva cada país a trilhar seu próprio caminho de desenvolvimento, sem que sigam cegamente nenhum modelo. A Nova Rota da Seda é orientada pelos princípios de desenvolvimento colaborativo e soberania nacional e, assim, promove conexão de infraestrutura, comércio, integração financeira, políticas complementares e intercâmbios entre pessoas.

Além de ser necessária para o crescimento econômico, essa perspectiva singular da cooperação industrial sino-africana é orientada por um pensamento político profundo. Embora enfatize o desenvolvimento econômico e a eficiência do mercado, a China não ignora o conteúdo político em sua cooperação com os países africanos. A ênfase na produtividade decorre da experiência prática chinesa na luta contra o domínio das potências ocidentais: somente com desenvolvimento industrial e com uma economia de mercado o país foi capaz de resistir à influência e interferência estrangeiras. Essa orientação também é consistente com a política chinesa de longa duração de apoio à independência e à soberania dos países africanos e de oposição ao hegemonismo ocidental. No período contemporâneo, o apoio político internacional é mais eficaz e sustentável por meios econômicos. Ao mesmo tempo, a ênfase no intercâmbio igualitário na cooperação sino-africana não é uma postura puramente política, mas se orienta pelo fato de que a comunicação e a cooperação de longo prazo são necessárias para o estabelecimento de um novo sistema industrial e de mercado global que se liberte do histórico círculo vicioso do “ovo ou galinha”.

À medida que os países africanos avançam em seus caminhos para a industrialização, distintas classes sociais serão afetadas de maneiras profundamente diversas e, assim, seus sentimentos e suas visões sobre as reformas econômicas poderão ser muito diferentes. Esse é um grande desafio e uma oportunidade histórica para a cooperação industrial sino-africana. À medida que a infraestrutura, as instalações industriais e outros projetos chineses se desenvolvem na África, ambos os lados aprofundam seu entendimento mútuo e sua integração por meio da prática. De uma perspectiva tanto política quanto econômica, África e China compartilham os mesmos objetivos gerais de promoção da industrialização e, portanto, podem superar barreiras temporárias e contratempos por meio de diálogos e ajustes. Nesse processo gradual, a cooperação rica e extensiva em múltiplos níveis pode ajudar China e África na construção de consensos e de conexões mais próximas e profundas.

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Notas do autor

1. União Africana. Action Plan for the Accelerated Industrial Development of Africa [Plano de Ação para o Desenvolvimento Industrial Acelerado da África]. Addis Ababa: União Africana, 2007.https://new-ndpc-static1.s3.amazonaws.com/pubication/AU+ActionPlanAcceleratedIndDevt+In+Africa_2007.pdf.

2. Adam Smith, A Riqueza das Nações (1776). Edição brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

3. Tang Xiaoyang e Tang Xiyuan, “Da iniciativa governamental à orientação de mercado: a trajetória do desenvolvimento sustentável em Zonas Industriais no exterior” [从政府推动走向市场主导:海外产业园区的可持续发展路径], Revista de Relações Internacionais [外交评论], n. 6 (2019).

4. “ENR’s 2018 Top 250 International Contractors” [ENR: 250 maiores empreiteiras internacionais de 2018], Engineering News-Record, Agosto de 2018. Disponível em: https://www.enr.com/toplists/2018-Top-250-International-Contractors-1.

5. “Comentários de Lin Songtian, Diretor-geral do Departamento de Relações Africanas do Ministério de Relações Exteriores, na sessão plenária da 5ª Reunião do Fórum de Think Tanks China-África” [外交部非洲司司长林松添在中非智库论坛第五届会议全体会上的发言], Ministério de Relações Exteriores da República Popular da China, 18 de abril de 2016.

6. Justin Yifu Lin, “From Flying Geese to Leading Dragons: New Opportunities and Strategies for Structural Transformation in Developing Countries” [De gansos voadores a dragões líderes: novas oportunidades e estratégias para a transformação estrutural nos países em desenvolvimento], Policy Research Working Paper 5702, World Bank, Washington, DC, Junho 2011, https://deliverypdf.ssrn.com/delivery.php?ID=151120095066121017086110100011097102095011057072042089006030028017046042056053014031125070127085022090033079045099115074121104122000080072113026007085123126126119109090069088106028078078071&EXT=pdf&INDEX=TRUE.

7. Tang Xiaoyang, “The Impact of Asian Investment on Africa’s Textile Industries” [O impacto do investimento asiático na indústria têxtil da África]. Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy, Pequim, Agosto 2014. https://carnegieendowment.org/files/china_textile_investment.pdf.

8. Sun Jian (fundador do grupo Wangkang), entrevista realizada pelo autor, estado de Ogun, Nigeria, Julho de 2014.

9. Yang Yang, “China Becomes World Leader in Industrial Economy Scale” [China se torna líder mundial em economia industrial de escala], China Daily, 23 de setembro de 2019. Disponível em: https://global.chinadaily.com.cn/a/201909/23/WS5d888ad6a310cf3e3556cf80.html.

10. Tang Xiaoyang, “8 Geese Flying to Ghana? A Case Study of the Impact of Chinese Investments on Africa’s Manufacturing Sector” [8 gansos voando para Gana? Um estudo de caso sobre o impacto dos investimentos chineses no setor industrial da África]. Journal of Contemporary China 27, n. 114, 2018.

11. Irene Yuan Sun, Kartik Jayaram e Omid Kassiri. “Dance of the Lions and Dragons: How Are Africa and China Engaging, and How Will the Partnership Evolve?” [Dança de leões e dragões: como a África e a China se articulam e como essa parceria irá evoluir?], McKinsey & Company, Junho de 2017, disponível em: https://www.mckinsey.com/~/media/mckinsey/featured%20insights/middle%20east%20and%20africa/the%20closest%20look%20yet%20at%20chinese%20economic%20engagement%20in%20africa/dance-of-the-lions-and-dragons.ashx.

12. Tang Xiaoyang. Coevolutionary Pragmatism: Approaches and Impacts of China-Africa Economic Cooperation [Pragmatismo co-evolucionário: Abordagens e impactos da cooperação econômica China-África]. Cambridge: Cambridge University Press, 2020.

13. Gunnar Myrdal, The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline [O desafio da pobreza mundial: esboço de um programa mundial de combate à pobreza]. Londres: Allen Lane, 1970, p. 268.

14. Yuen Yuen Ang, How China Escaped the Poverty Trap [Como a China escapou da armadilha da pobreza]. Ithaca: Cornell University Press, 2016, p. 1.

15. Kuang Lulin, “A influência das diferenças culturais na cooperação comercial e econômica sino-africana e as medidas de resposta” [文化差异对中非经贸合作的影响及其应对], Tribuna de Ciência e Indústria [产业与科技论坛], n. 3, 2019.

16. Wu Bin (executivo da Empresa Têxtil de Amizade Tanzânia-China), entrevistas com o autor, Dar es Salaam, Tanzânia, Setembro 2011 e Agosto 2014.

17. Ibidem.

18. Tang, Coevolutionary Pragmatism.

O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente? | 03.10.2023

Pan Jianglong (潘江龙), Ao leste do Saara (撒哈拉以东), 2017. Técnica mista sobre tela, 120 x 120 cm. Crédito: Fundo Nacional de Arte da China.


O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente?

Zhou Jinyan

Zhou Jinyan (周瑾艳) é professora assistente na Academia de Governança Global e Estudos de Área de Xangai (SAGGAS, pela sigla em inglês), da Universidade de Estudos Internacionais de Xangai (SISU). Suas pesquisas recentes têm como foco principal os caminhos de desenvolvimento africano e a comparação entre a cooperação chinesa e ocidental para o desenvolvimento da África. Ela realizou pesquisa de campo em Angola, Etiópia, Tanzânia e Ruanda.

O artigo “O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente?” (中国方案与非洲自主工业化的新可能) foi originalmente publicado em fevereiro de 2019, no número 1/2019 da Wenhua Zongheng (文化纵横).

Desde que conquistaram a independência, os países africanos têm sido incansáveis em sua busca por industrialização, visando superar sua situação de dependência na ordem econômica global. Em 1989, a Organização da Unidade Africana (precursora da União Africana) e, em seguida, a Assembleia Geral das Nações Unidas declararam o 20 de novembro como o Dia da Industrialização da África para incentivar a conscientização e cooperação internacional em apoio à industrialização africana. Infelizmente, essas aspirações ainda não foram alcançadas.

O desenvolvimento econômico do continente tem passado por processos importantes no século XXI. As relações entre a África e as economias emergentes, incluindo a China, se desenvolveram rapidamente, alterando a posição estratégica do continente na globalização. Entre 2000 e 2014, um período de altas taxas de crescimento levou ao surgimento de uma narrativa sobre “o crescimento africano” na mídia ocidental. A imagem da África se transformava, de um “continente de desespero” em um “continente repleto de esperança”.[1] No entanto, por trás das representações de ascensão da África, os números permaneceram desanimadores. Em 1970, a participação da África na manufatura global era de 3% e, em 2014, a participação havia caído para menos de 2%. Enquanto isso, em 2017, em toda a África Subsaariana, a participação da indústria manufatureira no Produto Interno Bruto (PIB) girava em torno de 10%, percentual semelhante ao da década de 1970. Com exceção de alguns países, como a África do Sul, Egito, Nigéria e Marrocos, a taxa de crescimento industrial na maior parte dos países africanos tem sido inferior à taxa de crescimento econômico geral. Em suma, a África tem experimentado crescimento sem industrialização. Suas altas taxas de crescimento econômico são resultado do aumento da demanda e dos preços de recursos naturais, o que as torna insustentáveis.

Partindo de uma análise das experiências da África em direção à industrialização, esse artigo pretende responder a três questões. Por que as décadas de ajuda ocidental não promoveram a industrialização africana? Quais foram as experiências realizadas pelos países africanos em seus caminhos rumo à industrialização? E, finalmente, como aprendiz e parceira no caminho da industrialização, como a China pode contribuir com a industrialização da África?

O fracasso do receituário ocidental para o desenvolvimento

Na década de 1960, os Estados africanos, recém independentes, iniciaram seu caminho de desenvolvimento industrial. Após seis décadas, no entanto, eles ainda não conseguiram concretizar a industrialização. As explicações mais comuns costumam responsabilizar fatores endógenos pelos baixos níveis de desenvolvimento no continente, tais como o clima, a geografia, a diversidade étnica e a cultura. No entanto, essas explicações não consideram que tais questões existem, de uma forma ou de outra, em todos os países que hoje são desenvolvidos.[2] Além disso, em geral os impactos históricos e atuais da intervenção ocidental no continente são reduzidos ou ignorados. O colonialismo transformou a África em uma fonte de matéria-prima para os poderes imperialistas e em um depósito de mercadorias, produzindo subdesenvolvimento em diversos aspectos. Por exemplo, os governos coloniais criaram sistemas educacionais focados em treinar funcionários para auxiliar a administração das colônias, ao invés de formar cientistas e engenheiros. Nas décadas recentes, as receitas e modelos fracassados impostos pelo Ocidente à África também tiveram impactos negativos no desenvolvimento do continente.

Uma série de disputas em torno dos papéis que o Estado e o mercado deveriam ter no desenvolvimento econômico marcaram o debate ocidental. Durante a primeira metade do século XX, economistas ocidentais influentes, entre eles John Maynard Keynes, propuseram teorias incentivando os governos a fortalecer seu papel de regulação e intervenção na economia. Tais políticas foram amplamente implementadas na Europa ocidental e nos Estados Unidos, até a década de 1970 e início dos anos 1980, quando a intervenção estatal passou a ser desacreditada e o liberalismo econômico favorecido. Os países ocidentais passaram a considerar que os modelos econômicos liderados pelo Estado não eram mais sustentáveis e começaram a implementar as políticas neoliberais. Tais políticas incluíam a privatização de empresas estatais e de instituições públicas, assim como a redução do gasto público.[3] O Ocidente também usou a força para impor políticas neoliberais em grande parte do mundo e, com frequência, testou suas ideias neoliberais em países do Sul Global, incluindo os países da África, impedindo sua busca por industrialização. A imposição da ideologia e das teorias econômicas ocidentais impediram que os países africanos formulassem estratégias de desenvolvimento adequadas às suas condições nacionais.[4]

Nos anos 1960 e 1970, os países africanos implementaram uma variedade de estratégias de desenvolvimento lideradas pelo Estado. No entanto, o desempenho econômico do continente ficou atrás de outras regiões em desenvolvimento. Os modelos de desenvolvimento liderado pelo Estado foram responsabilizados não apenas pelo crescimento econômico lento, como também pela corrupção e ineficiências governamentais. Junto com as crises cambiais que afetaram a maioria dos países africanos durante os anos 1980, estes não viram alternativa a não ser recorrer às instituições de Bretton Woods, aceitando os programas de ajuste estrutural impostos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Durante as décadas seguintes, a onda de liberalização econômica, privatizações e desregulação varreu toda a África. Orientados pelo receituário neoliberal do Ocidente, os países africanos foram essencialmente desindustrializados, o que significou um retrocesso em muitos dos avanços das décadas anteriores. As políticas de laissez-faire não trouxeram desenvolvimento e prosperidade para a África. Nos anos 1960 e 1970, a renda per capita de países da África Subsaariana cresceu em uma taxa anual de 1,6%. Entre 1980 e 2004, a renda per capita decresceu 0,3% ao ano.[5]

Na primeira década do século XXI, a maioria dos países africanos experimentou um rápido crescimento econômico devido ao boom das commodities. No entanto, sob o neoliberalismo e como consequência da ausência de estratégias de industrialização, poucos países conseguiram alcançar transformações econômicas estruturais e avanços tecnológicos. Durante esse período, o Banco Mundial e os países ocidentais doadores mudaram o foco de sua Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) da África para “melhorar o ambiente de negócios”, ou seja, para promover reformas favoráveis ao setor privado. Segundo eles, isso conduziria ao desenvolvimento industrial.[6] De acordo com uma pesquisa realizada pela Brookings Institution em oito economias subsaarianas, essa agenda de ajuda foi “mal implementada e insuficiente”.[7] De fato, as reformas que visam aprimorar o ambiente de negócios são inadequadas para resolver os desafios enfrentados pelas economias africanas na concorrência industrial global. Além disso, mesmo em países africanos de baixa renda, com ambientes de negócios extremamente frágeis, o crescimento rápido pode ser alcançado em áreas e indústrias específicas.[8] As políticas orientadas a aprimorar o ambiente de negócios refletem a crença da comunidade ocidental de ajuda ao desenvolvimento, segundo a qual a industrialização só poderia ser construída em bases neoliberais. O economista chinês Wen Yi (文一) sintetizou o problema do receituário ocidental de desenvolvimento como “tomar o teto como fundação, tomar o resultado como causa […] tomar os resultados da industrialização ocidental como pré-requisito para o desenvolvimento econômico”.[9]

A ajuda ocidental promoveu a dependência econômica da África, enquanto a hegemonia política, econômica e ideológica do Ocidente reduziu a autonomia e o espaço político do continente. Dos programas neoliberais de ajuste estrutural às estratégias de reformas orientadas a aprimorar o ambiente de investimento e negócios, o receituário ocidental não apoiou o desenvolvimento africano. Sob esse modelo, muitas políticas de desenvolvimento africano foram formuladas fora do continente, sem as contribuições, nem a liderança, do pensamento africano nativo sobre o desenvolvimento. Em matéria de industrialização e desenvolvimento econômico, as posições dominantes no panorama intelectual foram ocupadas por acadêmicos e políticos sediados em Paris e Washington. O pensamento africano independente foi marginalizado, ao mesmo tempo que a elaboração pelos países africanos, de estratégias de industrialização baseadas em suas condições nacionais, foi desencorajada.

Finalmente, dois fatores adicionais impediram que a ajuda ocidental promovesse a industrialização na África. Em primeiro lugar, a preocupação dos países ocidentais doadores é que, se a África alcançar a industrialização, o continente se tornará um concorrente. Por isso, colocam limites aos avanços industriais da África. Em segundo lugar, os países ocidentais industrializados transferiram os setores industriais altamente poluentes e de mão de obra intensiva, e de baixo custo, para o Leste Asiático, entrando em um estágio de desenvolvimento pós-industrial. Com essa divisão internacional da produção, o Ocidente não precisa transferir indústrias para a África e, portanto, não tem motivos para promover a industrialização africana.

A busca da África por um caminho de industrialização independente

Nos últimos anos, o continente vive uma ênfase renovada na industrialização. A União Africana (UA), diversas organizações regionais e muitos países africanos publicaram uma série de estratégias de industrialização. A Agenda 2063 da União Africana apresenta uma proposta bem definida para a transformação econômica no continente por meio do desenvolvimento industrial, especialmente a manufatura, para aumentar o valor agregado dos recursos da África, os níveis de emprego e a renda da população.

Em todo o continente, tem sido gradualmente formado um consenso em torno da visão de que a industrialização é fundamental para a transformação econômica da África. O próximo passo é determinar como promovê-la, efetivamente. Atualmente, as experimentações africanas de um caminho soberano para a industrialização estão focadas em quatro áreas principais.

1. O papel do Estado e do mercado na industrialização. Diferente dos anos 1980 e 1990, auge do fundamentalismo do mercado na África, atualmente poucos governos negam completamente o papel do Estado na industrialização. No entanto, ainda existem desacordos com relação à natureza e ao escopo deste papel. Ou seja, se o Estado deveria focar em prover serviços públicos onde a oferta do mercado é insuficiente, como educação, infraestrutura, pesquisa e desenvolvimento, ou se o Estado deveria intervir diretamente na economia e influenciar a alocação de recursos, como, por exemplo, apoiando determinados setores e empresas para remodelar o processo de desenvolvimento econômico.

Em 2016, a Comissão Econômica das Nações Unidas para a África (UNECA) publicou Política Industrial Transformadora para a África [Transformative Industrial Policy for Africa]. O documento enfatiza a importância da política industrial para promover o desenvolvimento econômico nacional e a transformação estrutural, argumentando que “em um país economicamente atrasado, o setor manufatureiro não pode se desenvolver sem uma política industrial coerente e inteligente”. O economista coreano Ha-Joon Chang, principal autor do documento, é um conhecido defensor da política industrial, que há muito tempo defende que a intervenção estatal na industrialização foi essencial para o desenvolvimento de todos os países atualmente ricos. Contrário à narrativa fundamentalista do mercado, Chang argumenta que esses países adotaram níveis significativos de protecionismo nos primeiros estágios de seu desenvolvimento econômico e que assim seguiram em grande parte do período pós Segunda Guerra Mundial. Consequentemente, Chang argumenta que os países em desenvolvimento deveriam rejeitar o receituário neoliberal ocidental e deveriam implementar políticas industriais em suas trajetórias para a industrialização. Esse economista se tornou uma voz influente nos atuais debates sobre industrialização no continente africano. Embora muitos países africanos tenham se afastado dos modelos de industrialização por substituição de importações do período pós-guerra, e agora tendem a adotar políticas orientadas à exportação aos mercados estrangeiros, Chang aponta Etiópia e Ruanda como países africanos com experiências de política industrial bem sucedidas na era contemporânea. Ele convoca os formuladores de políticas a estudar a ampla gama de países, indústrias e medidas para desenvolver uma “imaginação política” abrangente.

2. A interação entre integração regional e industrialização. Em 2009, o tema escolhido para o Dia da Industrialização da África foi “industrialização para a integração”. Em 2017, o tema enfatizou que o “desenvolvimento industrial africano” era “uma pré-condição para uma área de livre comércio continental efetiva e sustentável”. De fato, desde que conquistaram sua independência, os países africanos estabeleceram a integração regional e a industrialização como as “duas asas” para transformar a posição marginal da África no sistema político e econômico global. A industrialização promove o desenvolvimento econômico da África e contribui para aumentar a participação do continente na produção e no comércio global, enquanto a integração regional fomenta o comércio intra-africano e beneficia o desenvolvimento industrial. Em março de 2018, 44 países africanos assinaram, em Kigali, Ruanda, o acordo da Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA, pela sigla em inglês), um marco no estabelecimento de um mercado africano unificado.

Atualmente, 86% do total do comércio da África ainda é realizado com outras regiões do mundo e não dentro do continente.[10] A composição da exportação da África para outras regiões do mundo consiste em grande medida em commodities primárias não processadas. Em um nítido contraste, dois terços do comércio intra-africano é composto por produtos industrializados.[11] A expectativa é que a AfCFTA aumente as oportunidades de comércio intra-africano, com a criação de um grande mercado continental, atuando como um trampolim para a industrialização africana e fomentando a autonomia e independência do continente. Embora alguns países africanos tenham tratamento preferencial de isenção de impostos nos mercados europeus e dos Estados Unidos, por meio da iniciativa “Tudo Menos Armas” e da “Lei de Oportunidade e Crescimento Africano” (respectivamente EBA e AGOA, pelas siglas em inglês), o continente está sujeito a outros impedimentos e, inevitavelmente, sofre um tratamento injusto. Por exemplo, em 2016, para apoiar a indústria têxtil local, os países membros da Comunidade da África Oriental (CAO) concordaram em reduzir gradualmente a importação de roupas usadas, até a proibição total, em 2019. No mesmo ano, Tanzânia, Ruanda e Uganda aumentaram os impostos para a importação de roupas usadas. Essas medidas provocaram uma disputa comercial com os Estados Unidos, com a ameaça da administração Trump de cancelar os benefícios comerciais do AGOA para esses três países.

3. O desenvolvimento coordenado de urbanização e industrialização. No relatório econômico Urbanização e Industrialização para a Transformação da África, em 2017, a UNECA afirmou que a urbanização acelerada na África deveria ser aproveitada como uma força propulsora do desenvolvimento industrial no continente.[12] Em outras partes do mundo, a urbanização tem sido estreitamente associada à industrialização, com a primeira sendo concretizada pelo aumento da produtividade agrícola e industrial. No entanto, o relatório aponta que a urbanização da África foi desconectada de seu desenvolvimento industrial e da transformação econômica estrutural como um todo. A África não atingiu um desenvolvimento coordenado da industrialização e da urbanização. O resultado foi a criação de “cidades de consumo”, que apresentam níveis elevados de importações, baixos níveis de criação de empregos formais e, principalmente, serviços de baixa produtividade, em vez de “cidades produtivas”.[13] Reduzir a distância entre urbanização e industrialização, e reconectar esses dois processos de desenvolvimento de maneira mutuamente benéfica, é um grande desafio para a África.

4. O protagonismo da manufatura no desenvolvimento econômico. A história do desenvolvimento dos países atualmente ricos demonstra que a manufatura sempre foi a engrenagem do desenvolvimento econômico. Poucos países conseguiram desenvolver suas economias sem uma indústria de base. Mesmo assim, no Ocidente, há quem argumente que a importância do setor de serviços está superando crescentemente o setor manufatureiro e que, por isso, a África poderia pular o estágio de industrialização. Por exemplo, o ex-economista chefe do Banco Mundial e prêmio Nobel em economia, Joseph E. Stiglitz, argumentou que a África não pode reproduzir o modelo do leste asiático, liderado pela manufatura, e que a indústria moderna de serviços será a engrenagem do desenvolvimento africano.[14] No mesmo sentido, em 2018, a Brookings Institution e a Universidade das Nações Unidas – Instituto Mundial para a Pesquisa do Desenvolvimento Econômico (UNU-WIDER, pela sigla em inglês) publicaram conjuntamente Indústria sem chaminés: a industrialização na África reconsiderada, onde propõem que serviços comercializáveis (como serviços baseados em informação e comunicação, turismo, transporte e logística), agro-indústria e horticultura poderiam impulsionar o crescimento econômico e a transformação estrutural da África.[15]

No entanto, a África tem uma compreensão sóbria sobre o papel da manufatura na estratégia de industrialização do continente e sobre o receituário ocidental de desenvolvimento. Na Agenda 2063 da União Africana e nas políticas industriais elaboradas pela UNECA, o setor manufatureiro é nitidamente entendido como uma base indispensável para a criação de emprego, a transformação econômica e o desenvolvimento da região. Em 2016, o ex-vice-governador do Banco Central da Nigéria, Kingsley Moghalu, convocou os países africanos a “rejeitar a noção enganosa de que eles poderiam se juntar ao Ocidente se tornando sociedades pós-industriais, sem que tenham sido industriais”.[16]

Ainda assim, especialistas ocidentais em tecnologia, como Alec Ross, continuam argumentando que os países africanos poderiam usar a tecnologia para dar um “salto econômico”, apontando Ruanda como um exemplo.[17] Em seu livro de 2016, Ross afirmou que “a ideia é que Ruanda passe diretamente de uma economia agrícola a uma economia baseada no conhecimento, ignorando completamente a fase industrial”.[18] No entanto, esse argumento ignora que a manufatura continua sendo o propulsor da economia do conhecimento. Mesmo Ruanda, que já desenvolveu rapidamente este setor, continua impulsionando com vigor sua produção industrial.

A África elaborou um conjunto de estratégias para a industrialização, incluindo a melhoria da infraestrutura, a atração de investimento externo, a promoção da integração regional, a coordenação do desenvolvimento da agricultura e da indústria, o estabelecimento de zonas econômicas especiais e de parques industriais, e a integração às cadeias globais de produção. Enquanto a África promove ativamente sua industrialização, a China, parceiro estratégico mais importante do continente, está passando por sua própria transformação econômica interna e pela modernização industrial. Na China, há uma capacidade excedente de produção de aço e cimento, os custos de mão de obra estão aumentando e os setores intensivos em mão de obra enfrentam dificuldades. Por sua vez, com força de trabalho jovem e grande mercado, a África precisa de industrialização. Nesse período, há oportunidades significativas para a complementaridade entre os objetivos da África e da China. Duas questões importantes para o futuro das relações entre China e África são as seguintes. Qual é o papel que a China irá jogar no caminho de industrialização da África? E, como o método chinês pode contribuir com insights diferentes das receitas ocidentais para a África?

Como a China pode contribuir com o desenvolvimento industrial da África

Nos marcos do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC, pela sigla em inglês), criado em 2000, a China se comprometeu a trabalhar com a África para superar os gargalos do desenvolvimento, como o déficit de infraestrutura, a formação de trabalhadores qualificados e a falta de financiamento. As iniciativas da FOCAC tem se dedicado, de forma consistente, à cooperação relacionada com a capacidade industrial, incluindo os “dez grandes planos de cooperação China-África”, propostos na Cúpula de Joanesburgo, em 2015, assim como as “oito grandes iniciativas de colaboração com a África”, propostas na Cúpula de Pequim, em 2018. As contribuições da China à industrialização africana podem ser organizadas em três áreas principais: 1) construção de infraestrutura, 2) oferecimento de novas opções de desenvolvimento pelo compartilhamento de suas próprias experiências e 3) mudança de paradigma de cooperação internacional, melhorando a posição global da África por meio da cooperação China-África.

1. A China apoia a industrialização africana pela construção de infraestrutura. A África tem um grave gargalo de infraestrutura. No setor energético, isso provoca apagões frequentes e altos preços de eletricidade. As frágeis redes de transporte dificultam a integração regional e, com uma população de cerca de 1,4 bilhão, o continente tem apenas 64 portos marítimos. Nisso, a China tem sido um parceiro importante, ao construir um grande número de ferrovias, estradas, aeroportos e portos, além de outras infraestruturas de transporte, água e energia na África. A China também se comprometeu a apoiar a construção e expansão dos trens de alta velocidade, das rodovias e da malha aérea na África. Nos anos 1950 e 1960, a assistência externa chinesa seguiu um modelo “pronto para uso” que, em alguns casos, enfrentou dificuldades operacionais após a implementação. Após essas experiências, a China agora está muito atenta à manutenção e operação dos projetos externos de infra-estrutura, e tenta, continuamente, combinar a construção de infraestrutura na África com a cooperação em capacidade industrial. Por exemplo, criou-se uma sinergia entre os parques industriais na Etiópia e a ferrovia Addis Ababa-Djibuti, ambos construídos pela China, o que contribuiu para o estabelecimento de um corredor econômico e para a promoção do desenvolvimento industrial.

2. As experiências de desenvolvimento da China demonstram caminhos alternativos para a industrialização de países africanos. Enquanto as potências ocidentais impuseram seus modelos ao Sul Global, levando à desindustrialização de muitos países em desenvolvimento, a China seguiu um caminho diferente. Como disse o economista e ex-vice premiê chinês, Liu He (刘鹤), “a China aderiu às suas próprias características e não copiou cegamente o modelo ocidental […] Em contraste com o método ‘um ou outro’ e ‘preto e branco’ dos economistas ocidentais, em relação às questões como direitos de propriedade e concorrência, a China encontrou um meio-termo com base em suas condições concretas, trilhando um caminho único e sinuoso em relação à abertura da economia para o mercado”.[19]

As experiências de industrialização da China oferecem lições em muitos aspectos do desenvolvimento que podem ser aprendidas pelos países africanos, como a unidade dialética entre reforma, desenvolvimento, estabilidade e inovação; a gestão das relações entre governo, mercado e sociedade; a importância de uma liderança capaz e com forte vontade política; a necessidade de definição de estratégias claras; e uma série de projetos de desenvolvimento industrial e de infraestrutura. Além disso, a China acumulou anos de experiência de relações construtivas com os países desenvolvidos para modernizar sua própria capacidade produtiva. Ao cooperar com o desenvolvimento de capacidade industrial e facilitar a transferência de tecnologia para a África, a China pode aproveitar e compartilhar suas próprias experiências semelhantes no desenvolvimento da capacidade produtiva, da urbanização e da industrialização.

Ao compartilhar sua experiência, a China pode oferecer insights aos países africanos. Essa contribuição não é menos importante do que a construção de pontes e rodovias. Embora a China não imponha seu próprio modelo de desenvolvimento, países africanos expressaram sua vontade de aprender com a experiência da China. A experiência de desenvolvimento da China tem três princípios importantes, que incluem transcender estruturas, paradigmas e modelos dogmáticos, partir das próprias condições concretas e ajustar as ações com base em experiências e lições aprendidas. Por exemplo, a mesa redonda de CEOs da Tanzânia, que reúne executivos das 200 maiores empresas do país, publicou, em 2017, um livro sobre industrialização que analisa em profundidade a experiência da China. Citando a criação da Zona Econômica Especial de Shenzhen, em 1980, por Deng Xiaoping (邓小平), os autores afirmam que “começar com pouco e experimentar poderia nos permitir falhar rápido, aprender mais rápido e mudar as coisas com velocidade na medida em que for necessário. Após ajustar o modelo durante um período, nós podemos expandir nacionalmente com mais qualidade, ao invés de uma expansão com menos qualidade, dadas as limitações de capacidades financeiras e de implementação, que inviabilizam a realização de gestões e ajustes eficientes diante de desafios e, portanto, resultaria em um programa de industrialização nacional desorganizado”.[20] É importante destacar que não há um “consenso chinês” ou um “modelo chinês” sobre o desenvolvimento econômico. A relação entre a China e a África é de aprendizado mútuo, e não de instrução unilateral.

Nesse sentido, somente um resumo das experiências bem sucedidas da China não é suficiente para os países africanos e outros países em desenvolvimento. Tão importante quanto é a compreensão sobre os fracassos das experiências chinesas. Ministro e Assessor Especial do Primeiro Ministro da Etiópia, e designer-chefe dos parques industriais da Etiópia, Arkebe Oqubay abordou isso em uma entrevista que realizei com ele no início de 2018: “Nós sabemos que nem todos os parques industriais da China foram bem sucedidos, alguns fracassaram. Mas, durante minhas pesquisas na China, eu não consegui encontrar nenhum documento ou relatório que sintetize os aprendizados a partir desses fracassos”. Um aspecto importante da cooperação China-África é, portanto, o estabelecimento de uma forma de sistematizar e comunicar as experiências de industrialização chinesa.

3. As relações China-África podem desenvolver um novo paradigma para a cooperação internacional e melhorar a posição estratégica do continente, seu espaço político e sua autonomia. Na Cúpula do G20 em 2016, a China apresentou, pela primeira vez, uma proposta para apoiar a industrialização na África e no grupo de Países Menos Desenvolvidos, conforme denominado pela ONU. As discussões ocidentais sobre a África costumam girar em torno de usar ajuda externa para solucionar a pobreza, mas a ajuda externa, por si só, não pode resolver a pobreza ou promover industrialização. Em outra direção, a cooperação China-África tem como foco o desenvolvimento, ao combinar ajuda, comércio, investimento e outras medidas para apoiar o desenvolvimento independente do continente.

A influência indireta na forma como os países ocidentais se relacionam com o continente africano é um dos aspectos mais significativos da cooperação China-África. Devido à ansiedade provocada pela crescente parceria China-África, de certa maneira os países ocidentais têm sido pressionados a não tratar os países africanos apenas como receptores de ajuda externa, mas como parceiros de investimentos e negócios. A natureza dessa relação tem mudado paulatinamente e a África tem sido capaz de melhorar sua posição global, se tornando um foco de investimento. Nos últimos anos, por exemplo, a empresa alemã Volkswagen investiu e construiu fábricas na África do Sul, na Nigéria e no Quênia, enquanto a Zipline, empresa estadunidense de logística, inaugurou uma fábrica de montagem de drones em Ruanda. Esses processos podem ser promissores para a industrialização da África.

Em última instância, o verdadeiro motor da industrialização da África está nas mãos dos próprios países africanos. Capital, tecnologia e experiência da China ou de outros países podem apenas apoiar seus esforços. Como exemplo, projetos ou formas de cooperação semelhantes podem ter resultados diferentes em cada país. No caso da construção de parques industriais, a Zona Industrial Oriental da Etiópia, construída pela China, não apenas foi capaz de gerar milhares de empregos locais, como também levou à criação das primeiras regulações de parques industriais no país. Já no caso de Angola, um país rico em petróleo, a Zona do Parque Industrial de Viana não conseguiu alcançar nem o patamar básico de “três conexões e um nivelamento” (三通一平, sāntōng yīpíng), ou seja, a garantia de que o local de construção esteja conectado à água, eletricidade e estradas, e que o solo esteja nivelado antes do início do projeto. Isso porque o partido local que recebeu o terreno para o projeto falhou em estabelecer e operar atividades comerciais no parque industrial. Para apoiar a industrialização da África, a China deve alinhar seus métodos com as estratégias de desenvolvimento nacionais específicas de cada país africano, que são peças-chaves para o êxito ou o fracasso do caminho para a industrialização.

Referências bibliográficas

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Notas do autor

1. Ver, por exemplo, as reportagens publicadas pelo The Economist, separadas por uma década: “The Hopeless Continent” [O continente sem esperança], The Economist, 13 de maio de 2000, disponível em: https://www.economist.com/weeklyedition/2000-05-13; “Africa Rising” [África em ascensão], The Economist, 3 de dezembro de 2011, disponível em: https://www.economist.com/leaders/2011/12/03/africa-rising.

2. Comissão Econômica das Nações Unidas para a África (UNECA), Transformative Industrial Policy for Africa [Política industrial transformadora para a África]. Addis Ababa: UNECA, 2016. Disponível em: https://repository.uneca.org/handle/10855/23015.

3. Chen Zhiwu, Chen Zhiwu fala sobre a economia da China [陈志武说经济] Taiyuan: Shanxi Economic Press, 2010.

4. Zhou Jinyan, “Percepções de Institutos africanos sobre as soluções da China na Nova Era e suas implicações para o intercâmbio de experiências de governança na China e na África” [非洲智库对新时代中国方案的认知及其对中非治国理政经验交流的启示], Estudos do Mundo Árabe [阿拉伯世界研究], n. 4, 2021.

5. Ha-Joon Chang, “Economic History of the Developed World: Lessons for Africa” [História econômica do mundo desenvolvido: lições para a África]. Conferência no Programa de Oradores Ilustres do Banco de Desenvolvimento Africano, Tunes, Tunísia, 26 de fevereiro de 2009, disponível em: https://www.afdb.org/fileadmin/uploads/afdb/News/Chang%20AfDB%20lecture%20text.pdf.

6. Ver Jacques Morriset, “Foreign Direct Investment in Africa: Policies Also Matter” [Investimento estrangeiro direto na África: políticas públicas também importam]. Policy Research Working Paper 2481. Washington: Banco Mundial, 2000. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/245851468767965780/pdf/multi-page.pdf.

7. John Page. “Africa’s Failure to Industrialize: Bad Luck or Bad Policy?” [O fracasso da África em industrializar-se: má sorte ou má política pública?]. The Brookings Institution, 20 de novembro de 2014, disponível em: https://www.brookings.edu/blog/africa-in-focus/2014/11/20/africas-failure-to-industrialize-bad-luck-or-bad-policy/.

8. Justin Yifu Lin e Célestin Monga. Beating the Odds: Jump-Starting Developing Countries [Superando as adversidades: o pontapé inicial de países em desenvolvimento]. Princeton: Princeton University Press, 2017.

9. Wen Yi, A grande revolução industrial chinesa [伟大的中国工业革命]. Beijing: Tsinghua University Press, 2016, p. 15.

10. UNECA. “Momentum Builds for Free Movement under AfCFTA” [Aumenta o impulso para a livre circulação sob o AfCFTA] 29 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.uneca.org/stories/momentum-builds-for-free-movement-under-afcfta.

11. UNECA e Banco Mundial. “Promoting Connectivity in Africa: The Role of Aid for Trade in Boosting Intra-African Trade” [Promovendo a conectividade na África: o papel da ajuda ao comércio no fomento do comércio intra-africano], Addis Ababa: UNECA, outubro de 2017. Disponível em: https://www.wto.org/english/tratop_e/devel_e/a4t_e/promotingconnect17_e.pdf.

12. UNECA. Economic Report on Africa 2017: Urbanisation and Industrialisation for Africa’s Transformation [Relatório Econômico sobre a África 2017: Urbanização e Industrialização para a Transformação da África]. Addis Ababa: UNECA, 2017. Disponível em: https://www.uneca.org/economic-report-africa-2017.

13. UNECA. Urbanização e Industrialização, p. 138. Ver também Tom Goodfellow, “Urban Fortunes and Skeleton Cityscapes: Real Estate and Late Urbanisation in Kigali and Addis Ababa” [Fortunas urbanas e o esqueleto de paisagens urbanas: imóveis e urbanização tardia em Kigali e Addis Ababa]. International Journal of Urban and Regional Research 41, n. 5, setembro de 2017, disponível em https://doi.org/10.1111/1468-2427.12550; Bai Lulu, Zhao Shengbo, Wang Xingping e Zheng Jieling, “Pesquisa sobre a relação entre urbanização e indústria manufatureira na África Subsaariana” [撒哈拉以南非洲城镇化与制造业发展关系研究], Planejamento Urbano Internacional [国际城市规划], n.5, 2015.

14. Joseph E. Stiglitz “From Manufacturing Led Export Growth to a 21st Century Inclusive Growth Strategy for Africa (Africa Cannot Repeat East Asian Miracle)” [Do crescimento das exportações lideradas pela manufatura para uma estratégia de crescimento inclusivo do século 21 para a África (a África não pode repetir o milagre do leste asiático)] Conferência proferida na Cúpula do Crescimento Inclusivo, realizada pelo Bureau for Economic Research, Economic Research Southern Africa e pelo Research Project on Employment, Income Distribution and Inclusive Growth. Cidade do Cabo, 15 de novembro de 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q-OikAtwkig&ab_channel=ACET.

15. Richard Newfarmer, John Page e Finn Tarp (orgs). Industries without Smokestacks: Industrialisation in Africa Reconsidered [Indústrias sem chaminés: a industrialização da África reconsiderada]. UNU-WIDER Studies in Development Economics. New York: Oxford University Press, 2018. Disponível em: https://www.wider.unu.edu/publication/industries-without-smokestacks-2.

16. Kingsley Moghalu. “Africa Has to Go through Its Own Industrial Revolution” [África deve passar por sua própria revolução industrial], Financial Times, 16 de maio de 2016, disponível em: https://www.ft.com/content/d68f27fe-1aad-11e6-b286-cddde55ca122.

17. Alec Ross. The Industries of the Future [As indústrias do futuro]. New York: Simon & Schuster, 2016, p. 237.

18. Ross, The Industries of the Future, p. 238.

19. Liu He, “O milagre contínuo do crescimento: 30º aniversário da reforma e abertura” [没有画上句号的增长奇迹:于改革开放三十周年]. In: Wu Jinglian (org.). Trinta anos de economia da China vistos por 50 economistas chineses [中国经济50 人看三十年]. Pequim: China Economic Publishing House, 2008.

20. Ali A. Mufuruki, Rahim Mawji, Gilman Kasiga e Moremi Marwa. Tanzania’s Industrialisation Journey, 2016–2056: From an Agrarian to a Modern Industrialised State in Forty Years [A jornada de industrialização da Tanzânia, 2016-2056: de um Estado agrário a um Estado industrializado moderno em quarenta anos]. Nairobi: Moran Publishers, 2017, p. 11.

Vol.1 N.º 3 | 03.10.2023

Wenhua Zongheng: Revista Trimestral do Pensamento Chinês | VOL.1 N.º 3

As relações entre a China e a África na era da Nova Rota da Seda


Guo Hongwu (郭宏武), A amizade revolucionária é tão profunda quanto o oceano (革命友谊深如海), 1975. Pôster, 54 x 77 cm. Crédito: chineseposters.net, coleção Landsberger, BG E15/581.

Os esforços de industrialização da África e da China

Grieve Chelwa

Grieve Chelwa é professor associado de economia política no The Africa Institute e pesquisador sênior não residente do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Sua pesquisa tem como foco a economia política e as perspectivas para o desenvolvimento africano. Ele já atuou como diretor de pesquisa do Instituto sobre Raça, Poder e Economia Política da The New School e como conferencista sênior de economia da Escola de Pós-Graduação em Negócios da Universidade da Cidade do Cabo.

O apelo à industrialização tem sido uma palavra de ordem dos países africanos desde a conquista de sua independência. No século XX, a década de 1960 foi paradigmática das lutas de libertação nacional no continente. De Kwame Nkrumah (Gana) a Julius Nyerere (Tanzânia) e Kenneth Kaunda (Zâmbia), muitos integrantes da primeira geração africana de líderes pós-coloniais tinham um forte apreço pelo papel que a industrialização desempenharia na emancipação total do continente. Eles compreendiam a dependência econômica da África como fruto dos pecados originais do imperialismo e do colonialismo, que condenaram o continente à posição de eternos provedores de matérias-primas baratas para os países ricos, em troca de produtos industrializados caros. O rompimento com essa lógica colonial e imperial, ou seja, romper o jugo da dependência, exigiria uma reorientação estrutural das economias africanas, passando da produção de matérias-primas à produção industrial. Além disso, a industrialização era vista como o meio que conduziria a um alto nível de emprego e a salários decentes para a grande maioria da população, cujas vidas foram desestruturadas pelo colonialismo e o imperialismo.

Com esse objetivo em mente, os países africanos elaboraram planos locais e regionais, colocando a industrialização no centro do desenvolvimento. Em 1980, por exemplo, a Organização de Unidade Africana (precursora da União Africana) desenvolveu um marco estratégico chamado “Plano de Ação de Lagos para o desenvolvimento econômico da África”, no qual foi atribuído um papel destacado à indústria. O Plano de Ação de Lagos incentivou os Estados africanos a “em seus planos de desenvolvimento, conferir um papel principal à industrialização, tendo em vista seus impactos no atendimento das necessidades básicas da população e assegurando a integração da economia e a modernização da sociedade”.[1]

Nesse sentido, o Plano de Ação de Lagos declarou de maneira enfática: “para que a África alcance uma parcela maior na produção industrial mundial, assim como para atingir rapidamente um nível elevado de autossuficiência coletiva, os Estados Membros [da Organização de Unidade Africana] proclamam o período de 1980 a 1990 como a Década do Desenvolvimento Industrial da África”.[2] Infelizmente, apesar de todo esse fervor, o continente africano como um todo não foi industrializado em nenhuma forma substantiva ao longo dos últimos 60 anos. Em muitos países do continente, o nível industrial continua o mesmo da época da independência política nos anos 1960. Na verdade, muitos passaram pela desindustrialização. Ou seja, a participação da indústria na produção econômica é, hoje, inferior à do período da independência.

Essa incapacidade de industrialização teve implicações consideráveis para a vida econômica do continente africano e de seu povo. Por exemplo, os salários reais, que são geralmente sustentados pela produção industrial, diminuíram e hoje são mais baixos do que eram na década de 1970.[3] Ademais, nas últimas três décadas, o número de pessoas vivendo em situação de pobreza diminuiu em todas as regiões do mundo, menos na África, onde está acontecendo exatamente o oposto. Em 1990, na África, cerca de 300 milhões de pessoas viviam na pobreza. Até 2020, esse número cresceu para 400 milhões e é provável que cresça ainda mais na década atual.[4] Finalmente, em comparação com o período da independência, o continente africano é, hoje, mais dependente do resto do mundo, especialmente do Ocidente, como mercado para suas commodities primárias.

Enquanto nas últimas seis décadas a industrialização foi difícil para o continente africano, a China registrou, durante o mesmo período, conquistas inigualáveis nessa área. Desde as reformas preconizadas por Deng Xiaoping (邓小平), no final dos anos 1970, o crescimento da base industrial da China tem sido constante o que, por sua vez, possibilitou um dos processos de redução da pobreza mais rápidos de toda a história humana.[5] Em 1981, cerca de 90% da população chinesa vivia em situação de pobreza. Em 2018, a taxa de pobreza da China havia diminuído para menos de 1%.[6]

Somado a isso, o crescimento da produção industrial do país tem viabilizado sua ascensão como um ator econômico e político relevante no cenário mundial, com uma capacidade inquestionável de determinar seu destino.

Considerando o sucesso da China na industrialização e as dificuldades da África, chama a atenção a escassez de trabalhos acadêmicos comparativos que busquem extrair as lições da China para a industrialização da África. Menos ainda são os trabalhos que analisam se a China pode ser uma aliada eficaz na até então mal sucedida busca da África por industrialização.

O presente número da edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横) procura suprir essa lacuna. Os dois artigos publicados foram escritos por ilustres pesquisadores chineses do desenvolvimento econômico comparado. O primeiro artigo, escrito pela professora da Universidade de Estudos Internacionais de Xangai, Zhou Jinyan (周瑾艳), tem como título O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente?. Como o título sugere, o artigo busca descrever e analisar a experiência histórica da África com a industrialização, considerando o papel que a China pode ter nos esforços para o desenvolvimento do continente. O artigo começa com o reconhecimento dos fatos apresentados anteriormente, sobretudo de que a África tem um passado desastroso com relação à industrialização. Em vez de colocar a culpa nos ombros dos africanos, como especialmente os analistas ocidentais costumam fazer, a professora Zhou vê esse histórico de baixo desempenho industrial como resultado, em grande medida, do “fracasso do receituário ocidental de desenvolvimento”. Ela enfatiza, por exemplo, que “a ajuda ocidental promoveu a dependência econômica da África, enquanto a hegemonia política, econômica e ideológica do Ocidente reduziu a autonomia e o espaço político do continente. Dos programas neoliberais de ajuste estrutural às estratégias de reformas orientadas a aprimorar o ambiente de investimento e negócios, o receituário ocidental não apoiou o desenvolvimento africano”. Em sintonia com alguns de meus próprios trabalhos, a professora Zhou critica o domínio total de intelectuais e especialistas ocidentais no processo de formulação de políticas públicas na África.[7]

A última sessão do artigo da professora Zhou analisa três caminhos pelos quais a China pode contribuir para o desenvolvimento industrial da África. Primeiro, ela argumenta que o impulso extraordinário da China para a construção de infraestrutura em todo o continente africano, ao longo das últimas três décadas, contribui para as aspirações do continente em torno da industrialização. A construção de portos modernos, rodovias e centrais elétricas podem reduzir os custos de produção e, assim, promover a industrialização. Em segundo lugar, a China pode apoiar a industrialização por meio de seu ideário de desenvolvimento, ao promover um modelo alternativo e liderado pelo Estado, em oposição ao modelo liderado pelo setor privado e centrado no mercado, como reza a cartilha do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Finalmente, a China pode contribuir para a industrialização africana por meio do fortalecimento da autonomia da África na arena geopolítica global, ao prover uma via alternativa para a interação do continente com o resto do mundo, junto com princípios de respeito e reforço mútuos.

O segundo artigo, intitulado A Nova Rota da Seda da China e a industrialização africana, foi escrito pelo professor Tang Xiaoyang (唐晓阳), da Universidade Tsinghua. O autor busca compreender o impacto que a Nova Rota da Seda (NRS) da China teve nas possibilidades de industrialização da África. O professor Tang inicia seu artigo afirmando que, “na África, o maior desafio para a industrialização é a dificuldade de integração de diversas partes da produção em um sistema”. Em outras palavras, seguindo Adam Smith, a industrialização da África fracassou, em parte, pela ausência de uma divisão do trabalho em seu setor industrial. Visto dessa forma, entidades no setor industrial do continente operam de modo segmentado e isolado, com poucas conexões entre si. O professor Tang argumenta, ainda, que a ausência da divisão do trabalho é, em si, resultado da falta de uma infraestrutura de larga escala no continente, que poderia viabilizar as conexões intra e inter setoriais. A Nova Rota da Seda pretende aliviar esses limites por meio da promoção da “conectividade de infraestrutura”. Assim, o professor Tang é enfático ao considerar a NRS como uma estratégia pró-industrialização da África.

De maneira geral, o foco da presente edição da Wenhua Zongheng na industrialização da África é uma contribuição bem vinda em nossos debates sobre as perspectivas de desenvolvimento emancipatório na África. Como os artigos demonstram, a África tem muito a aprender com a experiência chinesa de industrialização. Além disso, a China tem muito a contribuir para o progresso das aspirações do continente por uma industrialização que seja justa, humana e camarada.

Referências bibliográficas

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Rodrik, Dani. “An African Growth Miracle?” [Um milagre africano do crescimento?]. Journal of African Economies v. 27, n. 1, 2018.

Notas do autor

1. Organização da Unidade Africana. Lagos Plan of Action for the Economic Development of Africa, 1980–2000 [Plano de Ação de Lagos para o desenvolvimento econômico da África]. Addis Ababa: Organização da Unidade Africana, 1980, p.15. Disponível em: https://www.nepad.org/publication/lagos-plan-of-action.

2. Organização da Unidade Africana. Plano de Ação de Lagos, p.15.

3. Dani Rodrik. “An African Growth Miracle?” [Um milagre africano do crescimento?]. Journal of African Economies v. 27, n. 1, 2018.

4. As estatísticas sobre a pobreza na África são da Plataforma sobre Pobreza e Desigualdade do Banco Mundial, disponível em: https://pip.worldbank.org/home.

5.  Ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China, Estudos sobre o socialismo em construção no. 1, julho 2021, https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-1-socialismo-em-construcao/.

6. Banco Mundial e Centro de Pesquisa sobre o Desenvolvimento do Conselho de Estado da República Popular da China. Four Decades of Poverty Reduction in China: Drivers, Insights for the World, and the Way Ahead [Quatro décadas de redução da pobreza na China: fatores determinantes, lições para o mundo e caminho futuro]. Washington: Banco Mundial, 2022, p.1. https://thedocs.worldbank.org/en/doc/bdadc16a4f5c1c88a839c0f905cde802-0070012022/original/Poverty-Synthesis-Report-final.pdf.

7. Ver Grieve Chelwa. “Does Economics Have an “Africa Problem”?” [A teoria econômica tem um “problema africano”?] , Economy and Society 50, n. 1, 2021.

O caminho africano para a industrialização: como a China pode contribuir para o desenvolvimento econômico do continente?

Zhou Jinyan

A Nova Rota da Seda da China e a industrialização africana

Tang Xiaoyang

Como a redução direcionada da pobreza mudou a estrutura de governança rural na China | 27.06.2023
China 2098: Fábricas cooperativas de alimentos (中国2098:合作社的粮食工厂), 2019-2022. Crédito: Fan Wennan.

Como a redução direcionada da pobreza mudou a estrutura de governança rural na China

Wang Xiaoyi

Wang Xiaoyi (王晓毅) é professor do Instituto de Sociologia da Academia Chinesa de Ciências Sociais. Sua pesquisa foca na redução da pobreza, governança rural e em diversos aspectos do desenvolvimento rural – desde as indústrias da costa sudeste da China até a vida social nas áreas de pastoreio do nordeste do país, sempre com uma forte orientação prática. Ele também trabalhou com redução da pobreza e proteção ambiental para diversas organizações sociais chinesas e internacionais.

O artigo “Como a redução direcionada da pobreza mudou a estrutura de governança rural na China” (精准扶贫如何改变乡村治理结构) foi publicado originalmente na edição nº 3 da Wenhua Zongheng (文化纵横), em junho de 2020.

Diferente dos esforços convencionais de redução da pobreza empreendidos pelo governo chinês, o programa de redução direcionada da pobreza (精准扶贫, jīngzhǔn fúpín), lançado em 2013, exibiu características distintivas de um modo de governar com estilo de campanha. Este programa estabeleceu a erradicação da extrema pobreza como objetivo central em torno do qual as políticas sociais e econômicas foram coordenadas nas áreas rurais e pobres. No final de 2020, depois de oito anos de trabalho árduo, esse objetivo foi atingido.

Para cumprir as metas da redução direcionada da pobreza dentro dos prazos estabelecidos, os governos locais mobilizaram com vigor recursos humanos e materiais, e implementaram medidas excepcionais.[1] Em muitas localidades, os governos empreenderam métodos quase militares para promover os esforços de redução direcionada da pobreza, rompendo com muitas convenções existentes. Embora a governança no estilo de campanha apresente medidas excepcionais e possa obter resultados extraordinários, estudos sugerem que é difícil sustentar este modo de governar em períodos regulares de governo. De qualquer modo, a governança no estilo de campanha ainda pode ter um impacto importante nas estruturas convencionais de governo.

Esse artigo analisa o impacto que a governança no estilo de campanha da redução direcionada da pobreza teve e terá na governança rural. O início do artigo apresenta um panorama dos problemas existentes na governança rural. Na sequência, analisa em que medida essa campanha alterou as estruturas existentes da governança rural. Finalmente, o artigo avalia se os mecanismos governamentais adotados no contexto da redução direcionada da pobreza serão capazes de se adaptar às condições normais de governo, após o fim da campanha, e se terão impacto duradouro na governança rural. O artigo argumenta que, considerando o êxito da redução direcionada da pobreza ao lidar com as fragilidades da governança rural e ao atingir seus objetivos, a campanha tem o potencial de provocar mudanças de longo prazo, por meio da institucionalização de suas práticas e metodologias.

Os dilemas da governança rural

Antes da implementação da estratégia de redução direcionada da pobreza, tanto a governança rural como as políticas de redução da pobreza enfrentavam sérios dilemas. Em 2006, a revogação dos impostos agrícolas levou à desintegração da sociedade rural, a inúmeras dificuldades nos sistemas tradicionais de governo rural e ao distanciamento entre o poder e os recursos dos governos locais e sua responsabilidade social.[2] A distribuição dos recursos para a redução da pobreza, destinados principalmente aos povoados e condados designados como pobres ou afetados pela pobreza, produziu dinâmicas complicadas. Os governos locais e as organizações dos povoados concorriam para serem assim designados, como forma de ter acesso aos recursos. Além do mais, isso produziu desequilíbrios na alocação de recursos, pois não contemplava famílias pobres que viviam em povoados não designados como afetados pela pobreza. Consequentemente, diferentes níveis de tensão emergiram entre os povoados rurais, e entre o Estado e tais povoados.

Os povoados rurais geralmente são tidos como comunidades vivas, nas quais os moradores mantêm os povoados por meio de práticas baseadas em valores compartilhados e na reciprocidade, assim como em instituições locais fortes. Na concepção de China rural do sociólogo e antropólogo Fei Xiaotong (费孝通), e na descrição da economia moral dos camponeses, do antropólogo e cientista político estadunidense James C. Scott, a vida rural é representada como largamente distanciada do Estado. No entanto, na realidade, os povoados da China não são tão distantes do Estado. Os povoados têm características de comunidades vivas, mas também existem sob o mandato do Estado. Além disso, com o aprimoramento das capacidades de governança do Estado, este passou a governar diretamente os povoados. Em grande medida, a força da governança rural do Estado tem sido determinada por sua capacidade de implementar normas e de exercer autoridade nos povoados.

Pequenas e grandes comunidades são geralmente pensadas em uma relação de soma zero, onde a intervenção do Estado reduziria a autonomia de pequenas comunidades, e a autonomia de pequenas comunidades diminuiria a influência do Estado nos povoados. No entanto, até agora, essa relação não tem sido tão evidente na China, já que tanto as pequenas quanto as grandes comunidades têm enfrentado desafios na governança rural.

Como comunidades vivas, os vilarejos da China se enfraqueceram, e até se desintegraram, nas décadas que se seguiram à reforma rural, iniciada nos anos 1980. A reforma rural teve dois componentes centrais: a implementação do sistema de responsabilidade familiar (包产到户, bāochǎn dào hù) na produção agrícola e a criação de comitês de povoados (村民委员会, cūnmín wěiyuánhuì). A primeira medida substituiu o sistema de agricultura coletiva implementado durante o processo de reforma agrária, nos anos 1950, e passou a permitir a contratação de terras por unidades familiares, visando maior autonomia sobre sua produção agrícola, o que estabeleceu as bases para uma economia de mercado nas áreas rurais. Por sua vez, a segunda medida buscou reconstruir as comunidades por meios do autogoverno dos povoados. No entanto, os resultados de cada uma das medidas foram significativamente distintos.

Por um lado, a contratação de terra e a produção familiar progrediram continuamente, com a individualização dos agricultores sendo impulsionada pela economia de mercado, assim como a maior autonomia e mobilidade social dos moradores dos povoados. Por outro lado, os comitês de povoado encontraram inúmeras dificuldades. Esses comitês foram criados para proteger os moradores, mas em meio à desintegração das comunidades, em muitas áreas, as lideranças locais deixaram de atuar como organizadores do povoado, ou tiraram proveito de sua posição para assegurar benefícios privados. O número de organizações de povoado capazes de estabelecer liderança diminuiu significativamente, e os moradores, em geral, não tinham formas de responsabilizar os servidores públicos. Ao mesmo tempo, estes também enfrentavam dificuldades para atender aos moradores e implementar, com eficácia, as políticas governamentais destinadas a beneficiar os agricultores no âmbito comunitário.

Ao mesmo tempo em que as pequenas comunidades se enfraqueceram, a efetividade da governança rural do Estado também diminuiu nas três décadas que seguiram a reforma rural, alcançando seu patamar mais baixo em princípios do século XXI. Em 2006, a revogação da cobrança do imposto agrícola marcou o início da política “indústria estimula a agricultura, cidades apoiam o campo” (工业反哺农业、城市反哺农村, gōngyè fǎnbǔ nóngyè, chéngshì fǎnbǔ nóngcūn). O objetivo foi direcionar mais recursos dos centros urbanos para as áreas rurais para promover seu desenvolvimento e infraestrutura, assim como para ampliar o bem estar social, por meio de diversas proteções, subsídios e fundos para indivíduos e comunidades rurais. Na prática, entretanto, o Estado enfrentava dificuldades para concretizar esses objetivos. Embora a transferência de recursos do governo central para as áreas afetadas pela pobreza tenha aumentado, o Estado teve dificuldades para definir objetivos políticos claros e para desenvolver mecanismos efetivos para alocar os recursos para as populações-alvo da política.[3] Por exemplo, os subsídios voltados ao incentivo à produção de grãos tiveram um impacto limitado no entusiasmo dos agricultores, porque o governo central teve dificuldades para definir quem eram os agricultores produtores de grãos, e concedeu subsídios de acordo apenas com o tamanho da área contratada pelos agricultores. De modo semelhante, o sistema de auxílio de subsistência rural, que pretendia garantir as necessidades básicas das famílias de baixa renda, se deparou com vários obstáculos, incluindo dificuldades na coleta de dados sobre a renda familiar e a identificação das famílias elegíveis, junto com a corrupção como a oferta de tratamento preferencial aos familiares e amigos dos servidores rurais e, até mesmo, o uso do auxílio como instrumento de barganha contra os agricultores. Como resultado, o auxílio de subsistência rural não foi eficiente, uma vez que não foi direcionado aos que mais necessitavam. Em resumo, era difícil para o Estado concretizar suas metas de bem-estar e desenvolvimento rural pelo sistema administrativo vigente à época.

A alocação de recursos para a redução da pobreza deveria ter sido guiada pela precisão e justiça, mas, na prática, foi influenciada por muitos outros fatores. O governo central focou em prover apoio para as áreas afetadas pela pobreza, concedendo fundos especiais de redução da pobreza para as áreas adjacentes aos condados, povoados e domicílios designados como os principais focos afetados pela pobreza. Seguindo o Programa Prioritário de Redução da Pobreza em Sete Anos, que buscou tirar 80 milhões de pessoas da pobreza absoluta, entre 1994 e 2000, os recursos para a redução da pobreza eram canalizados, principalmente, para as principais localidades afetadas pela pobreza. O efeito colateral disso foi que os condados rurais competiam entre si para serem classificados como “afetados pela pobreza”, um fenômeno conhecido na China como “a luta para vestir o ‘chapéu da pobreza’” (争戴贫困帽子, zhēng dài pínkùn màozi). Alguns governos de condado chegaram a comemorar sua entrada na lista de condados afetados pela pobreza. Infelizmente, era frequente que a classificação de condados ou povoados afetados pela pobreza não tivesse como referência a baixa renda ou pouco desenvolvimento, mas também fosse influenciada pelas pressões de vários grupos de interesse, por vezes rivais entre si. Com tantos grupos de interesse disputando recursos, era difícil concretizar, efetivamente, as metas de redução da pobreza.

Ao completar a primeira década do plano para a redução da pobreza, de 2001 a 2010, a abordagem do governo central mudou. A linha da pobreza foi significativamente elevada, primeiro em 2010 e, depois, novamente em 2013, assim como foi estabelecido um cronograma para erradicar a pobreza absoluta e completar a construção de uma sociedade moderadamente próspera em todos os sentidos, até 2020.[4] Sob esse novo padrão, o escopo da redução da pobreza foi expandido, já que a população considerada empobrecida cresceu mais de cinco vezes, passando de menos de 30 milhões de pessoas para 160 milhões. A incidência de pobreza rural também cresceu, de menos de 3% para mais de 17% da população, e o número de condados atingidos pela pobreza cresceu para 832. Além disso, o padrão qualitativo para a redução da pobreza também foi elevado, visando, assim, “dois seguros e três garantias” (两不愁三保障, liǎng bù chóu sān bǎozhàng), o que significa que, para 2020, as pessoas pobres rurais teriam alimentação e vestimenta asseguradas, assim como lhes seria garantido o acesso ao sistema de educação pública, aos serviços básicos de saúde e à moradia segura, incluindo água corrente e eletricidade. Algumas localidades também desenvolveram garantias específicas baseadas nas condições locais, como, por exemplo, a garantia de acesso à água potável em regiões áridas.

Para tirar um número tão grande de pessoas da pobreza em um curto período de tempo, o Estado teve que aumentar significativamente o montante de recursos investidos nessa tarefa. De 2015 a 2020, o financiamento do governo central para a redução da pobreza cresceu, em média, 20 bilhões de yuan (aproximadamente 13,6 bilhões de reais) ao ano. A diversificação de tipos de fundos para a redução da pobreza foi ainda mais importante, incluindo fundos integrados, fundos sociais e diversos instrumentos financeiros. O montante total de recursos investidos pelo Estado na redução da pobreza não tem precedentes, embora tenha gerado novos desafios para a governança rural. Alcançar os objetivos de redução da pobreza foi muito mais complexo e difícil do que meramente aumentar a renda da população, e exigiu mudanças fundamentais no sistema da governança rural em regiões pobres.

A governança rural durante a campanha de redução direcionada da pobreza

Em 2013, o secretário geral do Partido Comunista da China (PCCh), Xi Jinping, propôs o conceito de redução direcionada da pobreza. Pouco depois, em 2015, ele detalhou que esta política exigia precisão nas seguintes áreas: primeiro, na identificação dos pobres, assegurando a chegada do apoio àqueles que, de fato, necessitam. Segundo, no alinhamento dos projetos e auxílios às necessidades das pessoas pobres. Terceiro, na provisão e uso de recursos. Quarto, na implementação de medidas apropriadas a cada família. Quinto, no envio de quadros do partido para implementar as medidas de redução da pobreza em cada povoado. Sexto, nas avaliações sobre o alcance das metas estabelecidas para a redução da pobreza.

Para assegurar que a redução direcionada da pobreza fosse bem sucedida, algumas mudanças fundamentais tiveram que ser feitas no sistema vigente de governança rural. Entre elas, a criação de um novo sistema para coleta e análise de dados, com mais transparência para camponeses e moradores dos povoados. Além disso, foi estabelecido um mecanismo de atuação direta do Estado nos povoados, com um grande número de servidores destacados para se envolver no cotidiano da governança dos povoados. Finalmente, a institucionalização de mecanismos para a participação da população dos povoados nos assuntos públicos. Essas mudanças aprimoraram a governança estatal e a provisão de bem-estar social nas áreas rurais.

A estratégia de redução direcionada da pobreza depende da qualidade da coleta de dados. A partir de 2014, foram realizadas pesquisas detalhadas para identificar cada família pobre, as causas específicas que a levou à pobreza, e as medidas específicas a serem implementadas para a redução da pobreza. As informações reunidas foram usadas para gerar um banco de dados eletrônico com arquivos sobre cada família, povoado, condado e região em situação de pobreza por todo o país. As famílias pobres foram registradas individualmente no banco de dados e receberam um manual de redução da pobreza, contendo um resumo de suas condições básicas e das causas de sua pobreza, seu plano de redução da pobreza e as informações de contato do funcionário responsável por sua família. O governo central já havia tentado desenvolver um sistema de registro da redução da pobreza, incluindo um programa teste em oito províncias, em 2005. No entanto, estes esforços não foram bem sucedidos devido às limitações de recursos humanos e materiais, e à pouca capacidade analítica do Estado. A mobilização administrativa de larga escala para a redução direcionada da pobreza permitiu que essa tarefa fosse, finalmente, concluída.

O sistema de registro eletrônico aperfeiçoou os esforços da China para a redução da pobreza em duas formas. Em primeiro lugar, a identificação mais precisa de famílias e povoados pobres permitiu que os recursos fossem melhor direcionados a quem necessitava e que as medidas fossem especificamente direcionadas às suas necessidades. Em segundo lugar, os dados coletados proporcionaram ao governo central um retrato mais atualizado das condições no âmbito de cada comunidade e, consequentemente, uma compreensão melhor das áreas rurais, apoiando seus processos decisórios, a formulação de políticas específicas e a avaliação dos esforços de redução da pobreza.

Alguns críticos argumentam que a digitalização da gestão da redução da pobreza provocou uma cisão entre as questões concretas da vida dos povoados e a governança no nível comunitário.[5] Além disso, como os processos decisórios do governo central dependiam em grande medida dos dados, os trabalhadores que atuavam pela redução da pobreza no nível comunitário dedicavam muito tempo às atividades administrativas relacionadas à coleta de dados, como preencher formulários. Isso lhes tirava o foco em seu trabalho efetivo de combate à pobreza e, em algumas regiões, resultou em um formalismo excessivo. Diante disso, o governo central adotou diretrizes para reduzir a coleta de dados desnecessários.

Entretanto, conforme a campanha de redução direcionada da pobreza progredia, o processo de coleta de dados, a qualidade dos dados obtidos e a implementação da governança baseada em dados foram aprimorados. Primeiro, ao implementar processos de revisão para verificar os dados após sua coleta, estes se tornaram gradualmente mais precisos e objetivos. Em segundo lugar, a dinâmica de atualização dos dados também aprimorou a qualidade da informação. O objetivo do sistema de registro era verificar as estimativas das estatísticas gerais sobre o número de famílias pobres pela investigação empírica. Conforme a redução direcionada da pobreza progredia, o número de famílias pobres decrescia, as estimativas estatísticas tornavam-se menos confiáveis e aumentava a importância de dados confiáveis sobre cada família. Desde 2017, o banco de dados do registro da redução da pobreza não é mais limitado pelas estimativas estatísticas gerais, e tem sido ajustado de forma dinâmica, a partir do conhecimento empírico em cada localidade. Em terceiro lugar, o sistema de registro da redução da pobreza estabeleceu as bases para a governança rural baseada em dados. Indo além, na medida em que os governos locais adquiriram experiência na coleta de dados e se tornaram capazes de integrar os dados de diferentes níveis e departamentos governamentais, os dados irão desempenhar um papel cada vez mais importante na governança rural.

A governança baseada em dados aumentou a transparência pública nas áreas rurais, mas, por si só, não foi suficiente para aumentar a efetividade da redução direcionada da pobreza. Ela foi apoiada por uma mudança nas prioridades dos governos locais e uma maior distribuição de recursos para o nível local. Após a reforma rural da década de 1980, que estimulou o rápido desenvolvimento econômico da China, os governos locais priorizaram a eficiência econômica e concentraram seus recursos em setores de desenvolvimento rápido. Ao mesmo tempo, o governo central priorizou o desenvolvimento de áreas urbanas e, em geral, concentrou-se na maximização do Produto Interno Bruto (PIB).

A campanha de redução direcionada da pobreza buscou reorientar as prioridades governamentais, tanto no nível central como no local, posicionando a erradicação da pobreza em regiões pobres no topo da agenda. De cima para baixo, os governos locais e os dirigentes do PCCh foram orientados a assumir a redução da pobreza como sua principal tarefa, o que levou a uma mudança nos objetivos, na alocação de recursos e no trabalho dos governos locais e dos comitês do partido. Com a redução da pobreza elevada à primeira prioridade nas áreas pobres, o desenvolvimento econômico tinha que servir a esta finalidade, ao invés de buscar tão somente o crescimento.

Junto com essa repriorização, o governo central ampliou a distribuição de recursos para os níveis inferiores de governo. Esses recursos não apenas incluíam fundos e insumos, como também, e mais importante, recursos humanos. Foi preciso uma enorme quantidade de pessoas para enfrentar a frágil organização administrativa de povoados pobres e promover a redução direcionada da pobreza, já que as instituições locais tradicionais não tinham capacidade para distribuir grandes quantias de recursos às famílias e povoados, nem para implementar os novos métodos de governança associados à campanha. As organizações de povoado nas regiões pobres tinham carência de pessoal, muitas vezes com três servidores no máximo e, portanto, eram incapazes de gerenciar grandes quantidades de recursos ou de administrar procedimentos complexos. Da mesma forma, essas organizações tinham um nível de conhecimento muito baixo, e ficavam sobrecarregadas com o aparecimento de novos conceitos, métodos e processos tecnológicos para a redução da pobreza, como a coleta de dados em larga escala sobre famílias pobres e a seleção de indústrias e mercados nos quais investir. Além disso, a maioria dos funcionários estava imersa nas relações sociais de suas comunidades, resultando em distorções prejudiciais à tomada de decisões objetivas. Assim, era necessário apoio externo para distribuir, de forma justa, as grandes quantidades de recursos para a redução da pobreza que os povoados pobres recebiam do governo central.

O PCCh enviou equipes de trabalho residentes (驻村工作队, zhù cūn gōngzuò duì) e primeiros-secretários do partido para apoiar os povoados pobres, como estratégia para enfrentar a escassez de recursos humanos, melhorar a capacidade administrativa nos níveis mais baixos e fortalecer a governança rural. Desde 2013, mais de três milhões de servidores dos níveis superiores de governo, empresas estatais e outras instituições públicas foram enviados para viver nos povoados e trabalhar para a redução direcionada da pobreza por, pelo menos, dois anos, como parte de 255 mil equipes residentes.[6] Alguns pesquisadores questionam o impacto dessas equipes de trabalho residentes, argumentando que elas não possuíam conhecimento suficiente sobre as situações locais, nem experiência com produção agrícola, além de terem enfrentado resistência das autoridades locais. No entanto, de forma geral, as pesquisas indicam que as equipes de trabalho residentes levaram mais recursos para a redução da pobreza nas áreas rurais, e gradualmente desempenharam um papel decisivo nos esforços de redução direcionada da pobreza.[7]

O envio de equipes de trabalho residentes aos vilarejos rurais como parte da redução direcionada da pobreza foi uma continuação da política de compartilhamento da assistência (对口帮扶, duìkǒu bang fú), na qual os níveis inferiores de governo apoiam uns aos outros. Ao invés de serem encarregadas apenas da tarefa de prover assistência, as equipes de trabalho residentes tiveram a responsabilidade de concretizar a redução da pobreza em seus vilarejos, o que incluiu a administração de recursos de redução da pobreza, a visita às famílias pobres, a realização dos registros e da coleta de dados, e a implementação de medidas de combate a pobreza.

Em geral, as equipes residentes deveriam ficar nos vilarejos sob sua responsabilidade por mais de 20 dias a cada mês para, assim, participarem de todo o processo de redução da pobreza. Em 2015, para lidar com as dificuldades iniciais enfrentadas pelas equipes residentes na implementação das medidas de redução da pobreza, o PCCh começou a responsabilizar os primeiros secretários do partido, na maioria dos vilarejos pobres, pela função de direção da equipe residente em seus vilarejos. Essa medida solucionou a dificuldade institucional de integrar as equipes de trabalho residentes na tomada de decisões do vilarejo. Melhorar a governança social dos vilarejos tornou-se uma responsabilidade fundamental dos primeiros secretários do partido, talvez até mais importante do que seu dever de promover o desenvolvimento econômico local.[8]

O movimento de envio massivo de quadros para os povoados afetados pela pobreza exemplifica o modelo de campanha da governança adotada na redução direcionada da pobreza. Embora as equipes de trabalho residentes fossem diferentes em termos de trabalho, métodos e envolvimento nos assuntos do povoado, a partir de uma perspectiva institucional mais ampla, é possível afirmar que, por meio desse mecanismo, o Estado pôde influenciar diretamente os modos de governar no nível do povoado. Assim, a redução direcionada da pobreza não consistiu apenas na canalização de recursos do governo central para as áreas rurais, mas foi uma extensão do poder estatal aos povoados. Da identificação de famílias pobres à definição dos padrões de redução da pobreza, uma série de medidas formuladas pelo Estado foram implementadas em nível local.

Junto com o maior envolvimento do Estado na administração local, também foi dada maior ênfase à participação dos moradores dos povoados. Em teoria, o autogoverno dos povoados é a base das comunidades rurais, desde o estabelecimento dos comitês de povoado, eleito e supervisionado pelos habitantes, nos anos 1980, à promoção pelo governo central da participação da comunidade na redução da pobreza, nos anos 1990. Na prática, embora os governos dos povoados sejam baseados no sistema de uma pessoa, um voto, as decisões políticas geralmente eram permeadas e influenciadas pelos interesses das famílias, grupos de interesse e outros poderes. Além disso, devido à deterioração das comunidades rurais, assim como à falta de recursos e de ambiente social favorável, era difícil promover e salvaguardar a democracia entre os povoados. Assim, no passado, a participação pública na redução da pobreza era pouco mais que uma formalidade.

A redução direcionada da pobreza fortaleceu as vozes dos moradores dos povoados, especialmente daqueles de famílias pobres. Em primeiro lugar, aumentou a transparência e a abertura pública para a participação dos moradores, especialmente na identificação das famílias afetadas pela pobreza e na avaliação dos esforços de redução da pobreza. As famílias identificadas como pobres recebiam mais recursos para redução da pobreza. Embora isso tenha provocado disputas entre os moradores, especialmente quando as diferenças de renda não eram nítidas, a transparência pública comprovou ser uma solução efetiva para esses conflitos. Na estratégia de redução direcionada da pobreza, a confirmação de famílias pobres exigia um anúncio público e estava sujeita a aprovação dos moradores do vilarejo. A satisfação da população também era um fator importante na avaliação dos esforços pela redução da pobreza. Nisso, a participação da população não era abstrata, mas tinha forma e escopo precisos, incentivando maiores níveis de participação.

Em segundo lugar, e mais importante, a fiscalização estrita de cima para baixo dos esforços de redução da pobreza criaram canais para que as opiniões dos moradores chegassem a níveis superiores de governos, promovendo a prestação de contas pela pressão dos funcionários de maiores escalões sobre os funcionários dos níveis inferiores, garantindo um mecanismo de participação dos moradores dos povoados que se diferenciava das concepções e modelos tradicionais. Na estratégia de redução direcionada da pobreza, a participação da população e a autoridade centralizada se reforçaram mutuamente. A autoridade centralizada fortalecia a voz e a participação dos habitantes por meio da pressão aplicada nos servidores locais, enquanto a participação dos habitantes dos povoados permitia que o governo central avaliasse os funcionários locais, assegurando que a consecução de seus objetivos fosse buscada nas comunidades.

Em última instância, a redução direcionada da pobreza estabeleceu um novo mecanismo de governança em áreas rurais afetadas pela pobreza, diminuindo a distância entre os formuladores de políticas públicas e os beneficiários das políticas de redução da pobreza. Esse mecanismo fez com que o governo central ficasse mais bem informado sobre as condições das comunidades e, por meio da pressão de cima para baixo, aumentasse a participação dos moradores, fazendo com que as políticas governamentais fossem mais bem traduzidas em ações e resultados na base.

O potencial para mudanças permanentes da governança rural

Desenvolvido na campanha de redução direcionada da pobreza, o novo mecanismo de governança rural desempenhou um papel crucial na erradicação da extrema pobreza no final de 2020, e, efetivamente, enfrentou antigas questões políticas das áreas rurais. Entretanto, se tais mudanças poderão ser reproduzidas nos períodos regulares de governo, tendo um impacto duradouro nas áreas rurais, dependerá da capacidade de adaptação deste mecanismo às circunstâncias em constante mudança. Três fatores principais indicam que as mudanças estruturais na governança rural serão duradouras.

Primeiro, a distribuição dos recursos administrativos nacionais aos níveis inferiores de governo é uma das principais tendências que irão permanecer após o fim da campanha de redução direcionada da pobreza. Antes da campanha, o conjunto de talentos locais e estruturas institucionais na maioria dos povoados eram insuficientes para apoiar o desenvolvimento de longo prazo, e os povoados não tinham capacidade de administrar o fluxo de recursos direcionados para a redução da pobreza. Nos últimos anos, a provisão estatal de recursos administrativos para as áreas rurais fortaleceu as instituições de nível local, apoiou o retorno de talentos rurais das cidades para suas comunidades, incentivou a participação de moradores destacados dos povoados a participarem da governança rural e desenvolveu economias coletivas rurais para apoiar os povoados a manterem seus talentos em desenvolvimento e atrair de volta os que estavam nas cidades. Entretanto, a China ainda está em um processo de rápida urbanização. A população rural continuará a migrar para as cidades, e o retorno dos talentos às áreas rurais está apenas começando. Nesse contexto, a distribuição de recursos administrativos para níveis inferiores é indispensável para manter a ordem social rural e realizar uma governança rural eficaz.

Em segundo lugar, o Estado irá desempenhar um papel cada vez mais importante nas áreas rurais, em termos de construção de infraestrutura e provisão de bens públicos. Durante a campanha de redução direcionada da pobreza, o Estado concentrou seu apoio principalmente nas áreas rurais afetadas pela pobreza. Agora, como parte da estratégia mais ampla de revitalização rural, mais áreas rurais se beneficiarão dos recursos do Estado. Nesse processo, a transparência pública em relação às famílias e aos povoados beneficiários continuará sendo importante para evitar disputas e impedir que a distribuição de recursos seja influenciada por disputas locais pelo poder. Dessa forma, será preciso que o Estado se baseie no banco de dados de registro de redução da pobreza e desenvolva um sistema geral de informações. Para identificar a população que vive em situação de pobreza relativa, por exemplo, são necessárias informações sobre as famílias pobres e não pobres, pois a pobreza relativa só pode ser definida por meio de uma comparação abrangente da população rural. Em resumo, à medida que o Estado investe mais recursos em áreas rurais, ele precisará e dependerá cada vez mais de sistemas de informação.

Em terceiro lugar, o desenvolvimento rural se concentra nas áreas onde há altos níveis de participação dos moradores em assuntos públicos. No contexto de grande migração de jovens talentos para as cidades e do envelhecimento da população, as comunidades rurais têm sido esvaziadas. Portanto, são necessárias fortes garantias institucionais para assegurar a participação dos moradores. O mecanismo para a participação da população na redução da pobreza foi baseado em uma maior transparência pública nos assuntos rurais, na criação de um canal eficaz de comunicação das bases para as autoridades de alto nível e na prestação de contas e avaliação rigorosa dos administradores rurais. Dessa forma, a participação de baixo para cima foi garantida pelo apoio de cima para baixo, mesmo que esse processo fosse diferente dos modos tradicionais de autogoverno dos moradores. Atualmente, o objetivo não é recriar os sistemas tradicionais de governança dos vilarejos, mas desenvolver mecanismos de participação que facilitem a distribuição eficaz dos recursos do Estado para as áreas rurais. Assim, a participação não deve se limitar à concessão de direitos formais à população. O mais importante é que haja garantias institucionais concretas para assegurar que os moradores dos vilarejos possam participar e, de fato, participem.

Os mecanismos de governo da campanha de redução direcionada da pobreza provocaram importantes mudanças na governança rural, mas estes não podem ser simplesmente reproduzidos no futuro, em períodos normais de governo. Depois de concluídas e bem sucedidas as tarefas da redução direcionada da pobreza, algumas localidades previamente afetadas pela pobreza tentaram adaptar os mecanismos de governo da campanha – em particular, o programa de equipes de trabalho residentes – aos seus sistemas tradicionais de governo. No entanto, tais esforços encontraram duas dificuldades principais.

A primeira dificuldade é o alto custo de medidas de governo no modelo de campanha. Por exemplo, para preencher o sistema de registro da redução da pobreza e garantir sua alta qualidade, mais de dois milhões de técnicos foram mobilizados durante oito meses de trabalho, apenas para a revisão de dados. Por sua vez, o programa de equipes de trabalho residentes demandava o remanejamento de mais de três milhões de servidores públicos para trabalhar em tempo integral nos povoados. Isso não apenas implicou em altos custos em termos de subsídios, treinamento, supervisão e construção de alojamentos, como também em termos de interrupções em outras instituições governamentais, que tiveram que assumir responsabilidades adicionais na redução da pobreza. Além disso, o rodízio das equipes de trabalho residentes entre diferentes povoados dificultou a continuidade do trabalho e o acúmulo de experiência e conhecimento local pelos servidores. Tanto da perspectiva dos recursos financeiros como dos recursos humanos, os mecanismos de governança da redução direcionada da pobreza significaram custos extraordinários, que não podem ser estendidos aos períodos regulares de governos.

A segunda dificuldade se refere aos baixos níveis de institucionalização dos mecanismos de governança da redução direcionada da pobreza. A governança no modelo de campanha tem um único objetivo como foco, adotando métodos diversos e, por vezes, extraordinários para alcançá-lo. Alguns destes métodos podem ser insustentáveis e, ainda, podem resultar em desequilíbrios e injustiças. Durante a campanha da redução direcionada da pobreza, esta era a tarefa central nas regiões pobres, com o investimento de um montante significativo de recursos materiais e humanos para o cumprimento das metas e a correção de fragilidades. Uma consequência inevitável disso foi o negligenciamento de tarefas que não se enquadravam nesse objetivo. Por exemplo, seguindo os registros da redução da pobreza, os recursos eram concentrados nas famílias pobres e, por vezes, as necessidades de outros agricultores foram negligenciadas. Em alguns casos, as famílias pobres eram realocadas para situações nas quais teriam uma renda estável e, não apenas teriam acesso à moradia, como também imóveis para estabelecer pequenos negócios, dando-lhes mais ativos que, em geral, um agricultor médio tem acesso. As medidas temporárias e de curto prazo empregadas nessa campanha são difíceis de serem reproduzidas em períodos ordinários devido à carência de institucionalização.

Para continuar promovendo os padrões adequados das condições de vida e o desenvolvimento equilibrado como parte da revitalização rural, os mecanismos de governança e as medidas extraordinárias da redução direcionada da pobreza devem ser adaptadas de forma apropriada aos modos permanentes de governo. Nesse processo de adaptação, é necessário institucionalizar o sistema de informação rural, a distribuição de recursos administrativos para as áreas rurais e a participação dos moradores, de modo a reduzir os custos operacionais, mantendo suas características vantajosas.

Primeiro, é preciso regularizar e institucionalizar a coleta e análise de dados nas áreas rurais. Nos anos 1950, o governo central estabeleceu um sistema de gestão econômica da agricultura que coletou e agregou os dados rurais por décadas. Porém, esses dados não eram objetivos o suficiente, e foram finalmente substituídos por pesquisas de amostragem estatística. Embora a amostragem estatística possa apoiar os processos decisórios no nível macro de governo, esta metodologia não é adequada para o nível micro. Nos marcos do registro da redução da pobreza, os sistemas de informação de diversos departamentos governamentais, tais como assuntos civis, segurança pública e finanças, podem ser integrados para estabelecer uma rede unificada de informação rural, sistematizando, assim, a governança rural baseada em dados.

Segundo, é preciso institucionalizar a distribuição dos recursos administrativos aos níveis locais. O Estado deve continuar provendo os recursos humanos e financeiros para apoiar a governança rural, incluindo a incorporação do serviço rural às responsabilidades dos servidores civis nacionais. Atualmente, o governo central distribui os recursos administrativos aos níveis locais de governo de diferentes formas, sendo a baocun (包村, bāo cūn) a mais comum. Trata-se de um sistema de designação de funcionários municipais como responsáveis por assessorar o desenvolvimento econômico e social de povoados específicos, assim como foi o envio de primeiros secretários do partido e das equipes de trabalho residentes para povoados pobres nos marcos da redução direcionada da pobreza. A combinação dessas duas medidas o baocun e as equipes de trabalho residentes poderia criar um sistema sustentável de administração dos vilarejos e promover mudanças de longo prazo na estrutura de governança rural.

Não se deve reduzir a compreensão sobre os sistemas administrativos dos povoados apenas aos servidores e organizações existentes no nível local. Ele deve ser visto de forma mais ampla, como a extensão do sistema administrativo nacional aos povoados rurais. Portanto, os rodízios na governança dos vilarejos devem ser sistematicamente incorporados às responsabilidades dos funcionários de nível superior e dos servidores públicos, mas de uma maneira sustentável e que não sobrecarregue as instituições.

Terceiro, é preciso institucionalizar a participação dos moradores nos povoados. Os comitês de povoados devem ser fortalecidos como instituições de autogoverno e como meios para a participação dos moradores nas questões públicas e nos processos democráticos de tomada de decisão. Por um lado, a burocratização dos comitês de povoados deve ser revertida, para que eles possam estar mais próximos ao povo, não sendo meramente extensões do governo central. Por outro lado, é preciso fortalecer o papel de supervisão dos comitês e sua coordenação com as autoridades administrativas de nível local, para que possam se tornar organizações do povo.

A redução direcionada da pobreza trouxe inovações ao modelo de governança rural da China como mobilização social, campanha e experiência significativas. Seu impacto duradouro dependerá não apenas das mudanças já ocorridas, mas também de como tais mudanças poderão ser adaptadas e institucionalizadas no futuro da governança rural.

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Xu Hanze; Li Xiaoyun. “Sobre a dimensão prática das equipes de trabalho residentes e suas consequências no contexto da redução direcionada da pobreza” [精准扶贫背景下驻村机制的实践困境及其后果], Revista da Universidade Jiangxi de Economia e Finanças [江西财经大学学报], n. 3, 2017, p. 82-89.

Notas do autor

1. Wei Chenglin; Zhao Xiaofeng. “Governança regular, governança com modelo de campanha e o programa de redução direcionada da pobreza” [常规治理、运动式治理与中国扶贫实践], Revista da Universidade Agrícola da China (Edição Ciências Sociais) [中国农业大学学报(社会科学版)] 35, n. 5, 2018.

2. Durante muitos séculos a China cobrou um imposto agrícola, que foi a fonte mais importante de receita fiscal do país. Tal imposto remonta à dinastia Zhou (周朝, 1046-256 AEC), há cerca de 2.600 anos. À medida que a China desenvolveu sua indústria e comércio, passou a depender menos do imposto agrícola para obter receita e, em 2006, ele foi completamente eliminado, criando um vácuo na presença do governo no campo.

3. Ji Shao; Li Xiaoliang. “Um estudo sobre as mudanças na renda da população rural nos últimos 70 anos: uma perspectiva de reforma e inovação institucional” [建国70年来我国农村居民收入变化研究——体制改革、制度创新视角], Pesquisa sobre assuntos econômicos [经济问题探索], n. 11, 2019.

4. Em 2010, a China quase dobrou o valor da sua linha de pobreza nacional, de 1.196 yuans por ano (valores de 2008) para 2.300 yuans por ano (valores de 2010). Em 2013, com o início da campanha de redução direcionada da pobreza, a China aumentou sua linha de pobreza para 4.000 yuans por ano (valores de 2013).

5. Wang Yulei. “Digitalização no campo: Governança baseada em tecnologia na redução direcionada da pobreza rural” [数字下乡:农村精准扶贫中的技术治理], Estudos sociológicos [社会学研究], n. 6, 2016.

6. Departamento de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China. Poverty Alleviation: China’s Experience and Contribution. Beijing: Foreign Languages Press, 2021.

7. Para uma avaliação mais crítica das equipes de trabalho residentes, ver Xu Hanze; Li Xiaoyun. “Sobre a dimensão prática das equipes de trabalho residentes e suas consequências no contexto da redução direcionada da pobreza” [精准扶贫背景下驻村机制的实践困境及其后果], Revista da Universidade Jiangxi de Economia e Finanças [江西财经大学学报], n. 3, 2017. Sobre a integração e liderança das equipes de trabalho residentes no campo, ver Xie Yumei; Yang Yang; Liu Zhen. “Integração direcionada: seleção, operação e prática dos primeiros secretários nas equipes de trabalho residentes em povoados pobres” [精准嵌入:“第一书记”驻村帮扶选派、运行与实践], Revista da Universidade de Jiangnan (Humanidades e Ciências Sociais) [江南大学学报(人文社会科学版)], n. 2, 2019.

8. Os primeiros secretários do partido desempenharam um papel importante na governança dos povoados durante a campanha de redução direcionada da pobreza, embora suas tarefas específicas tenham variado regionalmente. Na província de Shandong, por exemplo, eles tinham três responsabilidades principais: redução da pobreza, contato com o público e construção rural do partido. Por sua vez, na província de Guizhou, as responsabilidades dos primeiros secretários eram divididas em seis categorias: apoiar as organizações comunitárias a construir infraestrutura, formação de talentos locais, promover indústrias locais, fortalecer economias coletivas, aprimorar mecanismos de gestão e solucionar conflitos.

A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária alternativa na era pós-revolucionária da China | 27.06.2023

China 2098: Seção Tarim Hunan – Estação de bombeamento de Ruoqiang (中国2098: 塔里木湖南段——若羌泵站), 2019-2022. Crédito: Fan Wennan.


A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária alternativa na era pós-revolucionária da China

Li Xiaoyun

Yang Chengxue

Li Xiaoyun (李小云) é um ilustre professor da Escola de Humanidades e Estudos do Desenvolvimento, e diretor honorário no Instituto da China para a Cooperação Sul-Sul em Agricultura e da Escola de Desenvolvimento Internacional e Agricultura Global, na Universidade Agrícola da China. Sua pesquisa foca na pobreza, desenvolvimento rural e desenvolvimento internacional.

Yang Chengxue (杨程雪) é doutoranda na Escola de Humanidades e Estudos do Desenvolvimento na Universidade Agrícola da China. Sua pesquisa de doutorado tem como foco questões de gênero na China rural e a participação das mulheres na governança rural.

“A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária na era pós-revolucionária da China” (脱贫攻坚:后革命时代的另类革命实践) foi publicado originalmente na edição nº 3 da Wenhua Zongheng (文化纵横), em junho de 2020.

O fim de uma era de revolução radical não significa que a revolução seja relegada à memória. Com a expansão contínua da globalização, os países governados por partidos revolucionários enfrentam o desafio de concluir missões revolucionárias inacabadas. No atual período, o Partido Comunista da China (PCCh) tem destacado a importância de “permanecer fiel à nossa aspiração original e à nossa missão fundacional” (不忘初心, 牢记使命, bùwàng chūxīn, láojì shǐmìng). Este não é um mero aceno retórico ao passado, mas uma base ideológica para que a ação concreta do partido mantenha seu caráter revolucionário no novo contexto econômico e social.[1] A redução da pobreza tem sido o foco principal dessa ação concreta.

Desde 2012, a redução da pobreza tornou-se uma tarefa central para todo o partido e a sociedade, com o secretário geral do partido sendo pessoalmente responsável pelo seu cumprimento. A estratégia do partido para a redução da pobreza evoluiu de uma abordagem convencional técnico-burocrática para a “batalha contra a pobreza” (扶贫攻坚, fúpín gōngjiān), focada em instituições de governança inovadoras para promover a transformação econômica e social. Atualmente, a redução da pobreza ganhou um novo peso no ambiente político e econômico do país. A abordagem da batalha contra a pobreza incorporou a linguagem e os lemas revolucionários, atribuindo um senso de importância e sacralidade a essa questão social.

Por exemplo, a pobreza tem sido tratada como o “inimigo”, a redução da pobreza como o “campo de batalha” e a luta contra a pobreza como a “batalha árdua”. Reuniões de mobilização declararam uma “guerra contra a pobreza” e celebraram as vitórias na “batalha”. Uma multidão de jovens quadros foi enviada para o “campo de batalha”, e aqueles que sucumbiram nesta “batalha” foram saudados como “heróis que morreram no campo de batalha”. A “revolução” da redução da pobreza não foi apenas um movimento de massa ou uma mobilização social na era pós-revolucionária. Em vez disso, foi uma resposta política e simbólica às crescentes desigualdades que emergiram no processo de reforma e abertura da China – desigualdades que contradizem a filosofia básica do PCCh. Em outras palavras, na era pós-revolucionária, o PCCh retornou, de certa forma, à sua agenda revolucionária histórica, abordando o dilema nacional e global da distribuição da riqueza social. Isso reflete uma nova fase da governança do PCCh, que busca se consolidar e “permanecer fiel à sua aspiração original e missão fundacional” no caminho da modernização nacional.

É evidente que o discurso revolucionário da campanha de redução da pobreza é metafórico. Se os inimigos de classe já não existem, é hora de dizer adeus à revolução. Mas, se a pobreza que a revolução prometeu eliminar continua presente, um “inimigo” da revolução persiste e, portanto, uma tarefa essencial da revolução permanece inacabada. Nessa batalha, o PCCh tem redistribuído continuamente recursos sócio-econômicos direcionados à redução da pobreza, utilizando os meios políticos e institucionais a seu dispôr e transcendendo os entraves dos grupos sociais de interesse e da burocracia existente. Essa mobilização de recursos é, sem dúvidas, a mais intensa e poderosa da história da China. A capacidade do PCCh de regular o padrão de distribuição social de recursos por meio de instituições estatais sob sua liderança, assim como sua capacidade de iniciar reformas orientadas ao mercado e corrigir as disparidades de seu desenvolvimento, demonstram um aprimoramento fundamental na força institucional e na capacidade do Estado moderno chinês, em comparação com os períodos do final da dinastia Qing (清朝, 1840–1912) e a República da China (1912–1949).

O significado prático da batalha contra a pobreza extrapola o domínio da política de desenvolvimento econômico e social e tem um impacto sócio-econômico mais amplo e profundo. No entanto, tem havido pouca discussão e análise sobre essa imensa campanha para melhorar as condições de vida do povo. Na relação histórica entre a pobreza e as práticas políticas do PCCh, tal iniciativa raramente foi vista desde o início da reforma e abertura.

Nos últimos anos, cientistas sociais chineses foram além de seus focos tradicionais em estudar os temas revolucionários na história do partido, e lançaram uma iniciativa acadêmica para “trazer a revolução de volta”.[2] Comunidades intelectuais começaram a repensar a grande narrativa da civilização tradicional chinesa, e deram início a pesquisas sobre como as mudanças políticas e ideológicas ocorridas na China moderna foram moldadas pela lógica da revolução.[3] A batalha contra a pobreza, como uma “forma revolucionária”, proporciona um estudo de caso vívido sobre o sistema de Estado liderado pelo partido e sobre como o PCCh tem moldado uma nova tradição política. Ao invés de uma discussão acadêmica sobre os significados de revolução e pós-revolução, ou de uma avaliação da batalha contra a pobreza, esse artigo pretende usar os conceitos de revolução e pós-revolução para discutir a importância do sentido revolucionário deste movimento pelo bem-estar do povo no contexto da sociedade e política da China moderna.

Pobreza: um fio que alinhava as etapas da revolução chinesa

Revolução é um processo de transformação que produz profundas mudanças políticas, econômicas e tecnológicas em uma sociedade. Desde meados do século XIX, a sociedade chinesa foi marcada por revoluções durante quase todas as fases de sua história. Em contraste com as “revoluções” na história da China antiga, que viram a continuidade de poderes dinásticos sob diferentes sobrenomes imperiais, as revoluções ocorridas na China após meados do século XIX começaram a romper com o padrão tradicional de mudanças dinásticas, passando a se conectar com o pensamento ocidental revolucionário e com a prática baseada na teoria da evolução social. A China entrou em uma nova fase revolucionária em sua história, especialmente porque não era mais possível, para o governo da dinastia Qing, lidar com as pressões externas e os conflitos internos, que conduziram inevitavelmente à resistência doméstica de forças políticas que não eram parte do sistema de governo. A saber, um movimento de base composto pela colaboração dos setores médio e baixo da aristocracia, da burguesia nacional, da sociedade civil – incluindo sociedades secretas anti-Qing –, de novos círculos intelectuais e do Partido Nacionalista da China – o Kuomintang (KMT) –, com o Novo Exército sob seu controle.[4] É importante destacar que as forças rebeldes anti-Qing, que emergiram no final da dinastia Qing, eram completamente diferentes daquelas que provocaram as mudanças dinásticas anteriores, tanto em termos de composição, como de ideologia e prática.

Alguns estudiosos argumentam que, desde o fim do período Qing, as grandes mudanças ocorridas na China foram simplesmente uma continuação natural da civilização chinesa e da modernidade nativa, por meio do sistema autocrítico e adaptativo confuciano.[5] No entanto, também houve um ímpeto externo para a mudança. Após a abertura do país, em meados do século XIX, a consciência nacional passou a compreender a enorme distância civilizatória entre a China e o capitalismo ocidental, em termos de desenvolvimento, tecnologia e conhecimento. Ao mesmo tempo, as ideias do Iluminismo ocidental começaram a chegar à China, onde a elite intelectual passou a incorporar essas novas visões de mundo.

Quando a centenária ordem da dinastia Qing chegou ao fim, os rebeldes que buscavam substituí-la não eram as tradicionais forças de mudança, mas revolucionários que, em diferentes níveis, entendiam as raízes sistêmicas do “atraso” chinês. Assim como nas crises de legitimidade e nas mudanças dinásticas anteriores na China, o sofrimento do povo estava na raiz das causas da crise do governo Qing. Mas, diferente das rebeliões anteriores, as demandas dos revolucionários anti-Qing foram formuladas em um diálogo entre o Ocidente, o estudo da religião e cultura chinesas e uma análise sistemática, abrangente e reflexiva sobre a história social, econômica e política do país.

A pobreza foi um dos principais fios condutores das fases da revolução anti-Qing. Em 1904, o Imperador Guangxu – décimo imperador da dinastia Qing, que governou de 1875 a 1908 – emitiu um decreto imperial estabelecendo que “a única maneira de sustentar uma nação é proteger o povo. Nos anos recentes, os recursos financeiros do povo foram exauridos ao extremo e, com todas as províncias compartilhando o fardo das reparações de guerra, as condições de vida da população se tornaram crescentemente precárias”. Apesar de reconhecer que a riqueza da população havia se esgotado e que o povo estava profundamente empobrecido, o imperador falhou em reconhecer a incapacidade do sistema Qing de lidar com as preocupações internas e as ameaças externas, tornando o alívio da pobreza impossível. Em contraste, quase todos os revolucionários defendiam que a modernização seria uma solução para o problema da pobreza no país.

Um dos mais proeminentes intelectuais do movimento de modernização da China, Yan Fu (严复) acreditava que solucionar a questão da pobreza era fundamental para a sobrevivência da China. Ele argumentou que “a primeira coisa a fazer para salvar o país, hoje, é eliminar essa pobreza. Só quando a pobreza for resolvida poderemos falar sobre tornar a nação mais forte, e, então, promover a riqueza, inteligência e moralidade do povo”.[6] Yan Fu não apenas situou a pobreza no centro dos problemas da China, como também levou adiante uma série de ideias sobre redução da pobreza, incluindo a construção de estradas e minas – o que pode ser considerado como a fonte do ditado popular “construir estradas antes de enriquecer” (要想富先修路, yà o xiǎngfù xiān xiūlù) –, a melhoria da educação, o apoio à economia dos pequenos proprietários rurais e o desenvolvimento de uma estratégia abrangente para combater a pobreza.

Enquanto isso, o líder da revolução de 1911, Dr. Sun Yat-sen (孙中山, Sūn Zhōngshān), também colocou a questão da solução do problema da pobreza na China no centro de seu pensamento sobre a construção nacional.[7] Em Plano para a reconstrução nacional (建国方略, Jiànguó fānglüè), publicado em 1924, ele propôs uma estratégia de governo com base nos “Três princípios do povo” (三民主义, Sānmín zhǔyì) – nacionalismo, democracia e condições de vida – e buscou modernizar a China por meio de uma revolução burguesa.[8]

A erradicação da pobreza e a promoção de poder e prosperidade nacionais, por meio da modernização, foram aspirações compartilhadas pelos revolucionários nesse período. Apesar disso, a prática efetiva de construção nacional após a Revolução Xinhai (辛亥革命, Xīnhài gémìng) – que, em 1911 derrubou a dinastia Qing e liderou o estabelecimento da República da China – não colocou o país em uma trajetória de superação da pobreza. De acordo com o estudioso da modernização Luo Rongqu (罗荣渠), a Revolução Xinhai fracassou porque não estabeleceu um Estado moderno após o colapso da dinastia Qing. A tarefa da modernização chinesa exigia a construção de uma força política forte, capaz de realizá-la.[9] Após a Revolução Xinhai, a construção de um Estado moderno foi obstruída pela existência de uma pluralidade de centros locais de poder. O KMT tentou superar essa fragmentação por meio de uma campanha militar para reunificar o país – conhecida como Revolução Nacional ou Expedição do Norte (1926–1928) – e da centralização do poder, com o partido do governo no centro. No entanto, o governo da República da China liderado pelo KMT continuou sendo um arranjo frágil e complexo, influenciado por diversas forças políticas e militares locais. Além disso, as principais forças políticas nas quais o governo se apoiava estavam em um acirrado conflito de classe com a população rural. Como resultado, faltava ao governo do KMT autoridade política suficiente para mobilizar, efetivamente, os recursos sociais necessários para implementar a modernização. Durante esse período, não houve progresso na redução da pobreza, tampouco na industrialização – questões que a Revolução Xinhai e a Revolução Nacional pretendiam implementar. Por isso, o governo do KMT se afundou em uma crise de legitimidade.

A composição organizativa do KMT foi determinante para que seu governo não pudesse transformar a estrutura básica de classes da China. Resolver as questões da pobreza e da modernização na China exigia uma autoridade política impulsionada pela maioria da sociedade, ou seja, o campesinato. O estabelecimento dessa autoridade exigia uma transformação radical na superestrutura da China. Esses fatores pressionaram a luta para erradicar a pobreza e modernizar a China, de um caminho reformista para o caminho revolucionário. Proprietários de terra, capitalistas e forças feudais, junto com as forças do imperialismo, eram vistos cada vez mais como as causas da pobreza e do atraso da China e, consequentemente, identificados como inimigos da revolução.

Nesse contexto, o PCCh entrou no cenário político da China Moderna. Desde sua fundação em 1921, o PCCh declarou explicitamente sua missão de transformar a China de um país pobre a um país próspero e poderoso. A aliança inicial do partido com o KMT se baseou nos Três Princípios do Povo, com o direito igual à terra em seu centro. Sob a liderança do PCCh, a revolução não apenas teve o objetivo de completar as tarefas inacabadas da Revolução Xinhai – especialmente o anti-imperialismo e o anti-feudalismo – como também buscou incorporá-las na Revolução Comunista. Embora a erradicação da pobreza e a modernização fossem aspirações compartilhadas por diferentes correntes revolucionárias da China moderna – o que conectava as Revoluções Xinhai, Nacional e Comunista –, a esperança por uma solução efetiva emergiu apenas quando o PCCh chegou ao poder.

O método do Partido Comunista da China em relação à pobreza

O PCCh e os reformistas compartilhavam a visão de que a China era pobre e atrasada, mas divergiam sobre como resolver estas questões. Muitos historiadores e cientistas políticos estudaram as estratégias e mobilizações de base por meio das quais o PCCh acumulou forças, como a frente única, a luta armada, a construção partidária e a linha de massa. No entanto, os estudiosos costumam negligenciar a análise sobre como o partido procurou usar seu poder para redefinir o sentido de desenvolvimento e buscar uma forma radical de revolução para concretizar a modernização.

Durante o início no século XX, faltava à sociedade civil chinesa auto-organização e poder para promover efetivamente a industrialização. Por isso, era necessário que o Estado entrasse em cena para dirigir esse processo.[10] No período da República da China, o Estado dirigido pelo KMT foi incapaz de implementar a industrialização. A transformação necessária do Estado chinês seria finalmente alcançada por meio da mobilização política de um partido marxista-leninista, o PCCh.[11] De fato, a legitimidade do PCCh, ao substituir a administração do KMT, foi determinada por sua capacidade de promover a construção do Estado e, consequentemente, a modernização.

No final dos anos 1930, Mao Zedong (毛泽东) propôs que “a construção econômica deveria estar no centro de todo o trabalho do partido e das organizações populares, e no centro do trabalho dos comitês e governos partidários”.[12] Ele também apontou que “o povo apoia o Partido porque representamos as demandas da nação e do povo. Mas, se nós falharmos em solucionar os problemas, construir novas formas de indústria e desenvolver as forças produtivas, o povo não necessariamente irá nos apoiar”.[13] Nesse sentido, não é difícil compreender a prioridade consistente que o PCCh dá ao desenvolvimento nacional, à industrialização e à busca pela erradicação da pobreza, assim como sua motivação para iniciar a reforma e abertura.

Em seus anos iniciais, ao mesmo tempo em que organizava a luta revolucionária, o PCCh levava adiante uma série de campanhas para a redução da pobreza nas áreas de base revolucionárias. Essas campanhas foram um prenúncio das políticas de desenvolvimento no período “pós-revolucionário”, e refletiram a intenção original do PCCh de construir um Estado modernizado. É impressionante, por exemplo, a semelhança entre a atual batalha do partido contra a pobreza e os esforços do partido para a reforma agrária, a educação, a saúde, a seguridade social e a assistência social na Base Revolucionária Central, ou no Soviete Jiangxi-Fujian e na Região de Fronteira Shaanxi-Gansu-Ningxia, durante os anos 1930 e 1940.

Em primeiro lugar, o método combinado para resolver a pobreza na Região de Fronteira Shaanxi-Gansu-Ningxia – focado em superar o atraso econômico e em garantir assistência social – compartilha semelhanças com os programas atuais do partido para reduzir a pobreza. Na Região de Fronteira, o partido estabeleceu a produção agrícola como a prioridade inicial na construção econômica, organizando os camponeses em cooperativas para aumentar a produtividade e impulsionar o desenvolvimento rural. Em seguida, o partido adotou um sistema de tributação progressiva, no qual as pessoas de todas as classes – exceto aquelas em situação de extrema pobreza – deveriam pagar impostos ao governo, ao mesmo tempo em que eram isentos de aluguel e contavam com juros reduzidos. Finalmente, o partido criou uma instituição dedicada à assistência social, concedendo fundos especiais para auxílio em situações de desastre e para o reassentamento de refugiados da guerra civil da China e da Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa (1937-1945).[14]

De certa forma, a experiência na Região de Fronteira representou um protótipo para os atuais programas do partido de redução da pobreza orientados ao desenvolvimento – focados em melhorar as condições de vida no longo prazo pela promoção do desenvolvimento econômico em áreas mais pobres –, e para os programas de redução da pobreza orientados ao bem-estar – focados em promover auxílio imediato e apoiar aqueles que vivem em situação de pobreza.

Em segundo lugar, o desenvolvimento da educação pelo PCCh na Base Revolucionária Central tem aspectos semelhantes aos atuais esforços do partido para a redução da pobreza. Depois de estabelecer a área da Base, em 1931, o partido construiu escolas primárias em todos os distritos até 1934, fornecendo educação gratuita para todas as crianças. Junto com o desenvolvimento de um sistema de educação obrigatória para as crianças e jovens, o PCCh também levou a cabo uma campanha de larga escala de educação de adultos, para erradicar o analfabetismo na Base. Por exemplo, no condado de Xingguo, o partido criou 1.900 escolas noturnas, abertas a todas as pessoas analfabetas com menos de 35 anos, sendo que as mulheres correspondiam a 69% das estudantes.[15]

Durante a fundação da Base Revolucionária Central, Mao declarou que todas as pessoas tinham direito à educação, independente do gênero, status ou identidade. Além disso, a constituição que governava a área da Base garantia às massas trabalhadoras e camponesas o direito a receber educação e a implementação de um sistema de educação universal e gratuita.[16] Atualmente, a China tem um sistema nacional de nove anos de educação gratuita e obrigatória, e o partido continua a perseguir a redução da pobreza por meio da educação, com o foco em ampliar o acesso à educação e aos recursos educacionais nas áreas rurais, oferecendo educação profissionalizante e capacitação técnica para interromper a transmissão intergeracional da pobreza.

Além disso, as práticas de assistência social do PCCh na Base Revolucionária Central também se assemelham aos atuais programas de redução da pobreza orientados ao bem-estar, já mencionados. Na área da Base, o partido estabeleceu um comitê dos trabalhadores que garantiu direitos trabalhistas, apoiou trabalhadores desempregados e forneceu seguridade social, assim como organizou várias sociedades de apoio mútuo. O partido também criou escritórios que atuavam principalmente no resgate e auxílio às vítimas de guerra e desastres naturais. Essa tradição data das primeiras experiências de governo do partido, e continuam até hoje.

Com relação às campanhas para melhorar as condições de vida na Base Revolucionária Central, Mao enfatizou que ninguém deveria ser negligenciado ou deixado para trás, e que todas as pessoas deveriam ser tratadas com igualdade e respeito, especialmente os grupos marginalizados, como as mulheres, as pessoas idosas e com deficiências.[17] A atual batalha contra a pobreza carrega consigo esse princípio de “não deixar ninguém para trás”.

Apesar da visão do PCCh sobre as raízes da pobreza serem a exploração do campesinato pela classe feudal dos proprietários de terra, a agressão econômica do imperialismo e a opressão da classe burocrática capitalista, logo após a vitória da revolução e a realização da reforma agrária, o partido chegou a dura conclusão de que as condições fundamentais da pobreza nas áreas rurais não haviam mudado. Imediatamente após a fundação da República Popular da China, em 1949, o PCCh empreendeu um processo sistemático de transformação social com o objetivo de erradicar a pobreza, implementando uma reforma agrária nacional que destruiu completamente o sistema feudal de terras. Ao mesmo tempo, por reconhecer a importância de transformar a economia dos pequenos proprietários individuais, o PCCh mobilizou o apoio mútuo e o movimento de cooperativas nas áreas rurais. Ainda assim, em 1956, em suas notas para A maré alta do socialismo na China rural (中国农村社会主义高潮, Zhōngguó nóngcūn shèhuì zhǔyì gāocháo), Mao escreveu que a China ainda era muito pobre e que eram necessárias décadas para que ela se tornasse um país rico. Duas décadas depois, em 1975, quando Mao conhecera Kukrit Pramok, ele afirmaria que “o Partido Comunista não é temível, o que é realmente temível é a pobreza”.[18] Esses exemplos refletem a longa permanência da ênfase na redução da pobreza na agenda política do PCCh.

Ao longo da era Mao, o partido continuou buscando a transformação social por todo o país e em todas as frentes, desenvolvendo a infraestrutura básica da agricultura, a preservação da água, o transporte, a educação e a saúde. Nesse sentido, o período de construção socialista entre a fundação da RPC e 1978 pode ser situado, em linhas gerais, dentro da história do que o partido agora chama de redução da pobreza orientada para o desenvolvimento.[19]

Em 1978, a China entrou em um período de reforma econômica de mercado. Apesar de profundas mudanças na estratégia econômica do PCCh, a pobreza permaneceu central na agenda política do partido. Como afirmou Deng Xiaoping (邓小平), “nossa luta de décadas sempre teve o propósito de eliminar a pobreza”.[20]

Para atingir esse objetivo, Deng argumentou que era necessário ter um método diferente do período anterior. “Nossos vinte anos de experiência, entre 1958 e 1976, nos ensinaram que: a pobreza não é socialismo, socialismo é eliminar a pobreza”.[21] Deng tentou esclarecer a relação entre modernização e pobreza, apresentando formulações criativas, como “aqueles que enriquecem primeiro levam os outros consigo” (先富带后富, xiānfù dài hòufù),[22] introduzindo o conceito de construção de uma “sociedade moderadamente próspera” (小康社会, xiǎokāng shèhuì) como objetivo da modernização, propondo a Estratégia de desenvolvimento em três passos para alcançar a modernização e estabelecendo a condução do povo à “prosperidade comum” (共同富裕, gòngtóng fùyù) como objetivo de governo do PCCh.

Embora os líderes posteriores do PCCh tenham continuado a enfatizar a adesão do partido ao objetivo de prosperidade comum, à medida que a reforma e a abertura avançavam, a polarização e a desigualdade social tornaram-se questões cada vez mais sérias no contexto do rápido desenvolvimento econômico do país. Apesar do PCCh ter identificado o problema da pobreza no início da reforma e abertura e empreendido uma série de iniciativas direcionadas à questão durante esse período – incluindo a campanha de redução da pobreza orientada ao desenvolvimento em “três áreas” (三西地区, sānxī dìqū) no início nos anos 1980, e o Programa Prioritário para a Redução da Pobreza em Sete Anos, que visava tirar 80 milhões de pessoas da pobreza absoluta entre 1994 e 2000 – tornou-se cada vez mais difícil para a população pobre sair desta condição, uma vez que a desigualdade aumentou.[23] Mesmo que a China tenha tido conquistas significativas na modernização, é evidente que o PCCh enfrenta, atualmente, o grande desafio de gerenciar a relação entre eficiência e equidade.

Antes da revolução, a sociedade e a economia da China sofreram um longo período de subdesenvolvimento devido, de um lado, à fragilidade das forças da sociedade civil em impulsionar o desenvolvimento econômico e, de outro, à incapacidade do Estado de promover a modernização em âmbito nacional. Quando chegou ao poder, o PCCh representou uma nova força para impulsionar o processo de modernização do país, contando com a capacidade política, institucional e administrativa para transformar a sociedade chinesa. Rompeu-se, assim, com o ciclo das mudanças dinásticas, assegurando as bases para o desenvolvimento nacional da China. No entanto, na era pós-revolucionária, o PCCh tem enfrentado os desafios de regulação e distribuição da riqueza em uma sociedade com interesses diversos.

Uma prática revolucionária alternativa para erradicar a pobreza

O 18º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, em 2012, marcou um giro em sua tática, aumentando o peso de sua força institucional na condução do processo de modernização. Na época, o Secretário Geral Xi Jinping (习近平) afirmou que “a eliminação da pobreza, a melhoria nas condições de vida do povo e o alcance da prosperidade comum são requisitos essenciais do socialismo. Hoje, a maioria da população tem visto uma grande elevação de seus padrões de vida, com a emergência de grupos de renda média e alta, mas ainda existe uma grande parte da população com baixa renda, e são estes que realmente precisam de nossa ajuda”.[24] Em uma série de debates sobre o trabalho de redução da pobreza, Xi Jinping enfatizou repetidamente o conceito fundamental segundo o qual “o desenvolvimento compartilhado tem como foco solucionar as questões de justiça social”.[25] Junto à liderança do PCCh, nos últimos anos, Xi tem levantado a questão da pobreza com mais frequência, o que representa a preocupação crescente do partido com as questões de justiça social nessa fase de desenvolvimento. A promoção da modernização da China, com ênfase no desenvolvimento econômico, foi o desafio inicial enfrentado pelo PCCh, um partido revolucionário que se transformou em um partido de governo. Agora, tendo realizado grandes conquistas econômicas, o partido enfrenta o desafio de promover a justiça social para efetivar plenamente a modernização do país.

Durante a era pós-revolucionária, as mudanças nas relações entre o partido e o governo, entre a sociedade e o Estado, assim como fatores socioculturais, limitaram o uso de meios revolucionários pelo PCCh para distribuir a riqueza social. Além disso, como a pobreza é um problema estrutural, os mecanismos normativos da governança técnico-burocrática foram incapazes de regular a distribuição. Como resultado, para mudar o padrão de distribuição, o partido teve que usar seus recursos institucionais e intervir institucionalmente, ao mesmo tempo em que também transcendeu as instituições existentes por meio de iniciativas “revolucionárias”. Isso incluiu uma auto-revolução dentro do PCCh, reconfigurando os interesses do partido e os interesses pessoais de seus membros. A evolução do método do partido – de sua estratégia técnico-burocrática à campanha de larga escala para a erradicação da pobreza – não foi um movimento de massa irracional, semelhante ao Grande Salto Adiante (1958–1962), mas um movimento racional de construção de consenso e de mobilização de massa, um experimento para revitalizar o simbolismo e a prática revolucionária na era pós-revolucionária.

A batalha contra a pobreza restabeleceu a autoridade política do PCCh, diminuindo a distância entre o partido e o governo, que havia emergido da priorização do crescimento econômico. Os secretários do partido em todos os cinco níveis de governo – povoado, distrito, condado, cidade e província – são integralmente responsáveis por assegurar o êxito dos esforços de redução da pobreza, sob a liderança direta do secretário-geral. O retorno da liderança centralizada do partido contribuiu para o PCCh reconstruir o consenso social, evitar a desordem social e administrar o complexo ambiente interno e externo. Dessa forma, o significado político da batalha contra a pobreza vai muito além da melhoria das condições de vida do povo.

Esse impacto é particularmente visível nas áreas rurais, o que não chega a ser surpreendente, já que a solução da pobreza rural na China é essencial para efetivar a modernização, construir uma sociedade moderadamente próspera e promover a justiça social no país. O PCCh implementou uma ampla gama de medidas nas áreas rurais, que romperam com a lógica técnico-burocrática e com os entraves das normas técnicas e administrativas existentes, permitindo que as metas de justiça social extrapolassem o processo administrativo. Entre os exemplos disso, estão a concentração de recursos em áreas mais atingidas pela pobreza, como as “três regiões e três prefeituras”[26] (三区三州, sānqū sānzhōu), o envio de quadros para vilarejos pobres para assumir as principais responsabilidades dos esforços locais de redução da pobreza como primeiro-secretários do partido, e a implementação de um sistema de supervisão para lidar com os problemas nos povoados e condados em situação de pobreza – o que, em alguns casos, exigiu a realocação das pessoas que viviam em condições difíceis ou perigosas.

O governo também criou muitas iniciativas orientadas ao mercado e, simultaneamente, contrárias aos interesses do mercado, como a redução da pobreza por meio do consumo, focada no incentivo à compra de mercadorias e serviços rurais para a promoção do desenvolvimento, oficinas de redução de pobreza, e o programa “10 mil empresas ajudando 10 mil vilarejos” (万企帮万村, wànqǐ bāng wàncūn), que mobilizou a contribuição de empresas privadas para os esforços de redução da pobreza rural. O PCCh foi capaz de redefinir o equilíbrio entre equidade e eficiência usando a “vitória” da batalha contra a pobreza e a “qualidade da vitória” como padrões para monitorar e avaliar o trabalho do partido e do governo.

Para completar as tarefas inacabadas da revolução na era pós-revolucionária, o PCCh precisou superar os marcos normativos de governança existentes e a influência dos grupos de interesse que haviam emergido durante a reforma e abertura. Ao mesmo tempo, pelas experiências anteriores – como a Revolução Cultural (1966-1976) –, o partido tem plena consciência da necessidade de garantir a estabilidade institucional. De modo geral, a batalha contra a pobreza pode ser entendida como um tipo alternativo de prática revolucionária.

Considerações Finais

O uso da expressão “era pós-revolucionária” neste artigo não é um argumento para abandonar os conceitos ou práticas revolucionárias na era da globalização, tampouco para retornar às práticas revolucionárias de períodos anteriores. O PCCh identifica o atual momento histórico da China como “primeira etapa do socialismo” (社会主义初级阶段, shèhuì zhǔyì chūjí jiēduàn), na qual as relações de produção incompatíveis com os princípios do socialismo continuarão existindo. Dessa forma, práticas revolucionárias radicais perderam legitimidade. Entretanto, enquanto administra a tensão entre equidade e eficiência no processo de modernização da China, o cumprimento de objetivos revolucionários continua sendo de grande importância, tanto para a teoria como para a prática do partido. Com a erradicação da pobreza absoluta, a China atingiu seu primeiro objetivo centenário na construção de uma sociedade moderadamente próspera. No entanto, para alcançar seu segundo objetivo centenário de construir um país socialista moderno, que seja próspero, forte, democrático, culturalmente avançado, harmonioso e bonito, o PCCh deve continuar essa batalha e confrontar a pobreza relativa e a desigualdade.[27] Resta saber se as práticas revolucionárias alternativas da batalha contra a pobreza se tornarão uma lembrança ou se serão estabelecidas como uma nova tradição política.

Referências bibliográficas

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Zhou Feizhou, “Padrões de ordem diferenciados e prioridades étnicas”’ [差序格局和伦理本位], Chinese Journal of Sociology [社会] 35, n. 1, jan. 2015, p. 26–48.

Notas do autor

1. Xi Jinping, “Permanecer fiel às nossas aspirações originais e missões fundacionais – uma campanha em curso” In. A governança da China, vol. 3. Beijing: Editora de Línguas Estrangeiras, 2021.

2. Ying Xing, “Trazer a revolução de volta: expandindo os novos horizontes na sociologia” [‘把革命带回来’:社会学新视野的拓展], Revista Chinesa de Sociologia [社会] 36, n. 4, jul. 2016.

3. Zhou Feizhou, “Padrões de ordem diferenciados e prioridades étnicas”’ [差序格局和伦理本位], Chinese Journal of Sociology [社会] 35, n. 1, jan. 2015; Qu Jingdong, “O retorno à perspectiva histórica e o remodelamento da imaginação sociológica” [返回历史视野,重塑社会学的想象力], Revista Chinesa de Sociologia [社会] 35, n. 1, jan. 2015.

4. O Novo Exército foi uma força armada modernizada na dinastia Qing, na sequência de sua derrota na Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-95). Ver Chen Mingming, Política e modernização da sociedade pós-revolucionária [革命后社会的政治与现代化]. Shanghai: Shanghai Lexicographical Publishing House, 2002.

5. Wang Ban; He Xiang; Zhang Yu. “Desvelando o Iluminismo na História: uma leitura de A emergência do pensamento moderno chinês, de Wang Hui.” [在历史中发现启蒙——读汪晖的《现代中国思想的兴起], Revista da Universidade Tsinghua, Edição Filosofia e Ciências Sociais [清华大学学报(哲学社会科学版)], n. 5, 2008.

6. Yan Fu. “Uma leitura da nova tradução de Problemas Sociais, de Henry George” [读新译甄克思《社会通诠》] In: Coleção de Yan Fu, Vol. 1 [严复集, 第1册]. Beijing: Zhonghua Book Company [中华书局], 1986, p. 149.

7. Nota da tradução: a escrita em pinyin do nome do Dr. Sun Yat-sen foi incluída neste texto, pois a grafia clássica de seu nome nos países ocidentais não corresponde ao seu nome em chinês, diferente de Yan Fu, mencionado anteriormente.

8. Sun Yat-sen. “Primeira conferência sobre os Princípios das condições de vida do povo (3 de agosto de 1924) ”[民生主义第一讲(1924年8月3日)], In: Obras completas de Sun Yat-sen, Vol. 9 (孙中山全集, 第9卷). Beijing: Zhonghua Book Company [中华书局], 1986.

9. Chen. Política e Modernização.

10. Chen. Política e modernização.

11. Ibidem.

12. Departamento de Pesquisa Literária do Comitê Central do Partido Comunista da China [中共中央文献研究室] A cronologia de Mao Zedong (1893–1949), Vol. 2 [毛泽东年谱(1893–1949): 中]. Beijing: Imprensa Literária Central do Partido, 2013, p. 209.

13. Mao Zedong, Obras escolhidas de Mao Zedong, Vol. 3. Edições em Línguas Estrangeiras, Pequim, 1975.

14. Ouyang Dejun. “As práticas de combate à pobreza do Partido Comunista da China na região de fronteira Shaanxi-Gansu-Ningxia” [中国共产党在陕甘宁边区的反贫困实践], Revista da Universidade de Yan’an (edição de Ciências Sociais) [延安大学学报(社会科学版)] 41, n. 4, 2019.

15. Yu Boliu; Ling Buji, Mao Zedong e Ruijin [毛泽东与瑞金]. Nanchang: Editora do Povo de Jiangxi[江西人民出版社], 2003, p. 317.

16. Ibidem.

17. Yu e Ling. Mao Zedong e Ruijin, p. 317.

18. Zhao Xingsheng. “Pobreza e combate a pobreza: as expressões e práticas do PCCh nas questões rurais na era da coletivização” [贫困与反贫困——集体化时代中共对乡村问题的表达与实践], Historiografia de Anhui [安徽史学], n. 6, 2016.

19. Li Xiaoyun; Yu Lerong; Tang Lixia. “A jornada de combate à pobreza e os mecanismos de redução da pobreza nos 70 anos após a fundação da Nova China” [新中国成立后 70 年的反贫困历程及减贫机制], Economia Rural Chinesa [中国农村经济] 9, n. 10, 2019.

20. Aban Maolitihan. “A teoria de combate à pobreza e a prática do Partido Comunista da China” [中国共产党反贫困理论与实践], Estudos sobre as teorias de Mao Zedong e Deng Xiaoping [毛泽东邓小平理论研究], n. 11, 2006.

21. Deng Xiaoping. Construindo o socialismo com características chinesas. [建设有中国特色的社会主义] Beijing: Edições do povo [人民出版社], 1987, p. 103–4.

22. No Ocidente, Deng Xiaoping é geralmente citado equivocadamente, dizendo apenas “deixar que alguns enriqueçam primeiro”. A omissão da segunda parte da expressão de Deng desconsidera a orientação de que os membros mais ricos da sociedade tem a responsabilidade de “levar os demais consigo” em direção ao objetivo de prosperidade comum.

23. Nota da tradução: as “três áreas” se referem à Hexi e Dingxi na província de Gansu, e à Xihaigu, na Região Autônoma de Ningxia Hui.

24. Xi Jinping. Trechos do discurso de Xi Jinping sobre a redução da pobreza [习近平扶贫论述编摘]. Instituto de História e Literatura do Comitê Central do PCCh [中国共产党中央委员会党史和文献研究院]. Beijing: Edições centrais do Partido [中央文献出版社], 2018, p. 3.

25. Xi, Trechos, p. 9.

26. NT: as “três regiões” englobam o Tibete, as áreas étnicas tibetanas das províncias de Sichuan, Yunnan, Gansu e Qinghai, e as quatro prefeituras no sul de Xinjiang (Hotan, Aksu, Kashgar e a Prefeitura Autônoma Kizilsu Kyrgyz). As “três prefeituras” são Liangshan em Sichuan, Nujiang em Yunnan e Linxia em Gansu.

27. No 18º Congresso Nacional do PCCh, em 2012, o partido anunciou um conjunto de objetivos de desenvolvimento – conhecidos como “os dois objetivos centenários” – a serem alcançados em dois aniversários de 100 anos muito significativos. O primeiro objetivo era a erradicação da pobreza absoluta e a construção de uma sociedade moderadamente próspera, em todos os sentidos, até 2021, o centenário do PCCh, fundado em 1921. O segundo objetivo centenário é a construção de um “país socialista moderno que seja próspero, forte, democrático, culturalmente avançado, harmonioso e bonito”, até 2049, o centenário de fundação da República Popular da China, em 1949.

Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China | 27.06.2023

China 2098: O sol nasce da mesma forma (中国2098:太阳照常升起), 2019-2022. Crédito: Fan Wennan.


Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China

Fundação Longway

A Fundação de Pesquisa Econômica e Social Beijing Longway foi fundada em 2009 com o seguinte propósito: estudar a crise de continuidade cultural na China moderna e promover confiança e autonomia culturais na sociedade chinesa. As pesquisas da Fundação se dedicam a compreender como as mudanças na estrutura social da China moldaram o desenvolvimento cultural do país e conduziram à ascensão de novas classes sociais com orientações políticas e culturais distintas.

O artigo “Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China” (社会主义3.0——中国社会主义的现实与未来) foi escrito coletivamente pela Fundação Longway (修远基金), e publicado originalmente na segunda edição da Wenhua Zongheng (文化纵横), em abril de 2015.

Precisamos falar sobre socialismo

O conceito de socialismo está no centro de intensas batalhas ideológicas, com discussões veementes entre seus apoiadores e adversários. Em geral, esses debates permanecem no plano das ideias, com participantes defendendo suas concepções de socialismo embasadas em relatos históricos seletivos e doutrinas teóricas, enquanto ignoram que o socialismo é um processo histórico que se desenvolveu junto com a industrialização. Ao longo de vários séculos, o socialismo emergiu como um caminho alternativo para o desenvolvimento para superar a crise da industrialização capitalista. Tal caminho se caracteriza pela busca de mais igualdade política e econômica e de um ideal ético e cultural de comunidade. Além de dar origem a Estados como a União Soviética e a China, o socialismo também teve um impacto significativo nas políticas da social-democracia na Europa ocidental. No entanto, com o colapso da União Soviética no final do século XX, o movimento socialista internacional sofreu um grande retrocesso. As formas de Estado e de modos de produção socialistas exigiam reflexão e revitalização sistemáticas. Atualmente, com o desmantelamento dos Estados de bem-estar social capitalistas, com múltiplas crises e transformações complexas de suas formas de produção material, é necessário revisitar e analisar novamente as ideias e práticas do socialismo para ativar seu dinamismo político.

Enquanto o movimento socialista internacional se enfraquecia, o sistema socialista da China passou por um processo de autotransformação por meio da reforma e abertura. Entretanto, apesar de suas conquistas, é inegável que o socialismo com características chinesas hoje enfrenta sérios desafios[1]. Na China, existem dúvidas sobre o significado do socialismo, se ele ainda é necessário ou mesmo se é possível. Isso coloca um dilema para a China: por um lado, como um país socialista, nós não podemos evitar a discussão sobre o socialismo e, por outro, não podemos nos paralisar em disputas conceituais. Em vez de nos deixar consumir por batalhas ideológicas, deveríamos encarar o socialismo como um processo em curso e um esforço permanente para criar uma sociedade mais justa e equitativa, diante das oportunidades e desafios decorrentes das transformações produtivas desde o início da industrialização.

O debate contemporâneo sobre o socialismo e as formas futuras que este pode vir a assumir devem situar o socialismo no contexto de processos históricos reais e da produção industrial em massa, tal como esclarecido por Karl Marx. E, assim, analisar a interação complexa entre o ideal de igualdade e as realidades materiais de produção. No caso da China, para compreender a realidade e necessidade do socialismo, é preciso analisar o caminho socialista do país no contexto de sua trajetória histórica desde o século XX – investigando o processo complexo a partir do qual o socialismo, como um conceito político estrangeiro, foi integrado nas tradições políticas da China, e avaliando as lições aprendidas pelas experiências chinesas de construção do socialismo. Além disso, para determinar a futura direção do socialismo é preciso explorar as mudanças em padrões de organização social, fatores de produção e de divisão do trabalho originadas pela globalização e pelo novo cenário industrial.

Somente assim poderemos encarar efetivamente as condições políticas e econômicas neste tempo de grandes mudanças, entender os recursos políticos oferecidos pelo socialismo e contemplar o caminho para o desenvolvimento futuro da China.

Esse artigo traça a evolução histórica e a direção futura do socialismo chinês. Os autores descrevem a prática socialista do período de 1949 a 1976, liderado por Mao Zedong (毛泽东), como “socialismo 1.0” da China. A posterior adoção da economia de mercado socialista desde o início da reforma e abertura, em 1978, é descrita como “socialismo 2.0”. Finalmente, em meio ao período atual de turbulências políticas e econômicas em âmbito global, os autores argumentam que a China deve desenvolver um “socialismo 3.0” para guiar seu futuro, com base nas lições aprendidas com o socialismo 1.0 e 2.0.

Socialismo 1.0

1. O encontro histórico entre o socialismo e a crescente consciência de salvação nacional da China[2]

A definição da China pelo caminho socialista não foi acidental. No final do século XIX, todas as principais civilizações não-ocidentais enfrentaram desafios complexos colocados pelo Ocidente. Com o avanço do processo de industrialização, as modernas forças militares do Ocidente conseguiram derrotar completamente as frágeis estruturas militares que eram necessárias para manter a ordem nos tradicionais impérios agrícolas. Isso provocou ansiedade e frustração nas elites dessas civilizações, que sentiam ter tido sua cultura superada ou destruída. Estados-civilizações, como a China, perderam seu senso de superioridade sobre os “bárbaros”, ou sobre os Estados vizinhos e minorias étnicas.

Os “navios fortes e armas afiadas” (坚船利炮, jiānchuán lìpào) do Ocidente impuseram ao mundo “grandes mudanças inéditas em três mil anos” (三千年未见之大变局, sānqiānnián wèijiàn zhī dàbiànjú), forçando reações de intelectuais e políticos chineses[3]. Impulsionados pelas poderosas forças materiais de sua industrialização, os países “avançados”, liderados pelo Reino Unido, continuaram sua expansão ao exterior, moldando uma nova ordem internacional, com novas “regras do jogo”. A transformação da ordem mundial inviabilizou todas as convenções anteriores.

Confrontada pelas potências ocidentais armadas pela industrialização, a China teve que definir como conseguiria industrializar-se rapidamente para alcançar o Ocidente e se proteger. Enquanto intelectuais e políticos estudavam cuidadosamente o caminho para a industrialização do país durante o final do século XIX e início do século XX, a expansão do capitalismo liderado pelo Ocidente gradualmente passou da fase de livre comércio para a fase do imperialismo. A lógica cruel do capitalismo, na qual os fracos são dominados pelos fortes, tornou-se cada vez mais predominante. Entre os países europeus, o conflito de classe entre o capital e o trabalho se intensificou, os movimentos sociais de resistência emergiram, e essa dinâmica teve um profundo impacto nos intelectuais chineses nesse período. A eclosão da Primeira Guerra Mundial levou muitos teóricos chineses a refletirem profundamente sobre os dilemas internos à civilização ocidental.

O empenho dos revolucionários e pensadores da China moderna tinha dois aspectos. Por um lado, eles buscaram aprender com o Ocidente para alcançar seus próprios objetivos de modernização e prosperidade nacionais. Por outro, eles permaneceram atentos à pobreza e à desigualdade provocadas pela industrialização capitalista. Figuras como o intelectual Yan Fu (严复) e o líder da revolução de 1911, Dr. Sun Yat-sen (孙中山, Sūn Zhōngshān), apresentavam uma visão mais ampla do desenvolvimento da China porque tinham “aberto seus olhos para ver o mundo” (开眼看世界, kāiyǎn kàn shìjiè). Reconheceram, assim, as tendências históricas do progresso e da mudança. Entretanto, suas bases intelectuais e ideológicas, formadas em sua juventude, eram profundamente influenciadas pela cultura tradicional chinesa, incluindo o antigo ideal confuciano de “Grande Unidade” (大同, dàtóng).[4]

Dessa forma, ao mesmo tempo em que aprendiam com o Ocidente, os pensadores chineses também identificavam os problemas da civilização industrial ocidental e a possibilidade de construir um sistema social que a superasse. Particularmente, o rápido crescimento da industrialização socialista da União Soviética, em um curto período de tempo, era visto como um caminho realista a ser seguido pela China para alcançar o Ocidente. Quando o conceito de socialismo foi introduzido na China, muitos intelectuais chineses consideraram seu ideal fundacional de igualdade mais alinhado aos ideais tradicionais chineses do que o liberalismo ocidental. Durante esse período, o socialismo teve um forte apelo na China porque não se tratava apenas de um conjunto de valores comunitários superiores, mas sim de um exemplo concreto de um sistema capaz de realizar a industrialização. Tanto a social-democracia da Europa ocidental como o socialismo da União Soviética demonstraram que eram capazes de desenvolver um modo de produção moderno e realizar a industrialização.

Nas décadas de 1920 e 1930, na sequência do fracasso decepcionante da Grande Revolução (1924-1927), os intelectuais chineses debatiam fervorosamente a teoria socialista.[5] É importante ressaltar que a concepção evolutiva da história, importada da União Soviética – segundo a qual a sociedade humana teria passado de uma sociedade “primitiva”, para uma sociedade escravocrata, para uma sociedade feudal, para uma sociedade capitalista e, finalmente, para uma sociedade socialista e comunista – começou a ser aplicada de forma consciente ao desenvolvimento histórico da civilização chinesa. Esta revolução na concepção de história se tornou uma premissa da revolução política posterior.

A tarefa de alcançar o Ocidente finalmente caiu nas mãos dos comunistas chineses, que foram fortemente influenciados pela Revolução de Outubro de 1917. Tal influência não se limitou ao modelo organizativo de partido de vanguarda, de Vladimir Lenin, mas incluiu também o exemplo prático e os métodos específicos que poderiam ser utilizados por um país “atrasado” para sua industrialização. Assim, houve uma integração profunda entre o desejo de industrialização (impulsionado pela crescente consciência de salvação nacional) e o plano de construir um Estado socialista na China.

2. A prática e as ideias socialistas de Mao Zedong: a primeira tentativa de adaptar o socialismo ao contexto chinês

No final dos anos 1930, Mao Zedong começou a pensar em como integrar as ambições industriais e revolucionárias da China às tendências históricas do socialismo no mundo. Em seus trabalhos, A revolução chinesa e o Partido Comunista da China (中国革命与中国共产党, Zhōngguó gémìng yǔ Zhōngguó Gòngchǎndǎng, 1939) e Sobre a nova democracia (新民主主义论, Xīn mínzhǔ zhǔyì lùn, 1940), Mao argumentou que a China, naquele tempo, era uma sociedade semi-colonial e semi-feudal, e que o Partido Comunista da China (PCCh) era o partido que conduziria uma revolução socialista.[6] Na concepção de Mao, o plano para o desenvolvimento futuro da China poderia ser dividido em duas etapas: primeiro, a etapa da Nova Democracia, seguida pela etapa socialista, que seria alcançada apenas com o desenvolvimento completo da Nova Democracia.[7] Partindo da teoria de Joseph Stalin e outros sobre as etapas históricas do desenvolvimento, Mao incorporou os escritos de Lenin sobre o imperialismo e o colonialismo e, finalmente, construiu uma concepção histórica do desenvolvimento da China moderna: após passar pelas sociedades “primitiva”, escravocrata e feudal, o país entrou em um estágio semi-feudal e semi-colonial, que precisava ser transcendido por um estágio de revolução democrática, dividida nas fases de Velha e Nova Democracia. Essa concepção de história serviu como um marco para o PCCh formular e avaliar suas políticas: aquelas que eram consideradas adiantadas neste cronograma histórico, por assim dizer, eram definidas como inclinadas à esquerda, enquanto as atrasadas eram consideradas políticas inclinadas à direita.

Orientada por essa concepção de história, a geração de comunistas chineses liderada por Mao perseguiu a industrialização socialista e a igualdade socialista, dois objetivos relacionados entre si de forma complexa e até contraditória.

O PCCh assumia, então, a responsabilidade pelo desenvolvimento industrial do país, seguindo os esforços fracassados do final do século XIX e início do século XX, tais como o Movimento de Auto-Fortalecimento (1861–1895).[8] A perspectiva histórica e socialista do partido sobre a questão da industrialização tinha um forte sentido igualitário, que, em geral, transcendia a consciência de salvação nacional. Com a fundação da República Popular da China (RPC) em 1949, o modelo de industrialização do PCCh priorizou o desenvolvimento da indústria pesada, considerada necessária em países que buscavam recuperar o atraso no desenvolvimento, e que era defendida desde o Movimento de Auto-Fortalecimento. Essa concepção foi exposta em A linha geral do partido para o período de transição (过渡时期总路线, Guòdù shíqí zǒnglùxiàn), uma resolução de 1953 na qual Mao enfatizava a necessidade de concentrar esforços no desenvolvimento da indústria pesada para estabelecer a fundação da modernização industrial e da defesa da nação.[9]

A estratégia de priorizar a indústria pesada e “se tornar mais forte antes de ficar mais rico” (先强后富, xiānqiáng hòufù) é, de certa forma, inevitável para os países menos desenvolvidos. No entanto, a industrialização tem um custo muito alto, exigindo a acumulação de grande quantidade de capital. Se não for possível obter fontes de investimento e drenar recursos externos, em geral será necessário que o investimento em indústria pesada seja extraído das áreas rurais domésticas. No início da RPC, a única forma de avançar com a industrialização foi reconcentrar a terra distribuída, aumentando a gestão centralizada e distribuição do excedente agrícola por meio do movimento popular comunal. Além dos impostos agrícolas, um instrumento chamado “monoṕolio estatal de compra e comercialização” (统购统销, tǒnggòu tǒngxiāo) redirecionou o excedente agrícola para a indústria e as cidades.

A industrialização também demandou um grande número de trabalhadores qualificados, tornando necessário destinar recursos massivos para a construção de um sistema de educação moderno – com a popularização da educação primária e secundária, o desenvolvimento de instituições de educação superior, aumentando a população escolarizada de dezenas ou centenas de milhares para dezenas de milhões. Assim, diante da necessidade premente de industrialização, a China rapidamente concluiu sua fase de Nova Democracia e entrou no estágio inicial do socialismo. Em 1953, o PCCh adotou a linha geral de “uma transformação e três reformas” (一化三改, yīhuà sāngǎi), por meio da qual o socialismo 1.0 foi gradualmente estabelecido no país, orientado pelos seguintes princípios político-econômicos: propriedade pública dos meios de produção, economia planejada e distribuição conforme o trabalho.[10] Semelhante ao modelo soviético, esse foi um sistema de acumulação eficiente nos primeiros estágios da industrialização da China.

Entretanto, à medida que o processo de industrialização socialista avançava, a contradição entre a industrialização e o objetivo de igualdade socialista tornou-se evidente. O modelo de industrialização liderada pelo Estado – que priorizava a indústria pesada – inevitavelmente exigia um grande número de funcionários do governo, executivos das empresas e profissionais. Tal demanda se expandia junto com a industrialização. Como resultado, os meios de produção se concentraram nas mãos dos gerentes e não dos trabalhadores, levando a uma tendência de burocratização. No final dos anos 1950, Mao percebeu que, se a produção continuasse a se desenvolver desta forma, iria gerar uma classe gerencial dentro do sistema – gerentes com seus próprios interesses que acumulariam o controle de assuntos governamentais e empresariais, e usariam seu poder para minar a propriedade pública. Em outras palavras, essa classe burocrática usaria sua posição para administrar a economia, usufruindo dos benefícios da industrialização, ao passo que deslocaria os custos da industrialização para as pessoas comuns, especialmente para o campesinato.

Diante desse dilema, Mao procurou um novo modelo de industrialização que “permitisse ao povo administrar diretamente os processos produtivos” por meio de uma campanha chamada “agarrar a revolução, promover a produção” (抓革命促生产, zhuā gémìng cù shēngchǎn). Assim, buscou tornar complementares os objetivos da industrialização e da igualdade, que de outra forma seriam contraditórias. Em seu comentário sobre o livro de Stalin Problemas econômicos do socialismo na URSS (1951), Mao apontou que a transformação socialista das propriedades dos meios de produção não necessariamente resultaria na tomada do controle da produção pelos trabalhadores.[11] Para Mao, a propriedade pública dos meios de produção não garantiria que a China se desenvolvesse em uma direção socialista, na qual o povo trabalhador dirigiria seu país. Por isso, eram necessárias adaptações e experiências no nível da liderança política e cultural – ou seja, era preciso romper com o regime legal burguês. Com esse objetivo, Mao impulsionou uma série de iniciativas nas décadas seguintes, fortalecendo a orientação e a supervisão política dos quadros, e conduzindo diversas medidas experimentais destinadas a resolver esse problema. Isso incluiu a crítica ao sistema salarial baseado em ranqueamento, o envio de um grande número de quadros para o trabalho manual no campo e nas fábricas, a recomendação de políticas que reorganizassem a divisão do trabalho, campanhas de formação socialista, e assim por diante. Mao também propôs que a economia deveria “andar com duas pernas” (两条腿走路, liǎngtiáotuǐ zǒulù). Ou seja, o desenvolvimento econômico não poderia depender apenas do modelo liderado pelo Estado, também eram necessárias mobilizações massivas para reverter os retrocessos surgidos da dependência que este modelo tinha dos tecnocratas para implementar as diretrizes da economia centralmente planejada. Isso foi exemplificado pela emergência de políticas que reorganizaram a divisão do trabalho, como a Constituição Angang (鞍钢宪法, Āngāng xiànfǎ), em 1960, e sua prática de “duas participações e uma reforma” (两参一改, liǎngcān yīgǎi), elogiada por Mao.[12] Tais esforços refletiam a preocupação constante de Mao de assegurar que a industrialização do país prosseguisse em direção ao socialismo, seus esforços para corrigir os desequilíbrios provocados pela industrialização e seu compromisso com o ideal de igualdade.

De forma geral, entre a fundação da RPC, em 1949, e o início da reforma e abertura, no final dos anos 1970, a China gradualmente se transformou em um país industrializado. Nesse período, a estrutura social da China permaneceu relativamente igual e as divisões sociais não eram tão acentuadas. No entanto, embora o modelo de desenvolvimento baseado em “se tornar mais forte antes de ficar mais rico” tenha contribuído para a industrialização do país, a população, em geral, permaneceu na pobreza. As contradições entre o modelo de industrialização liderado pelo Estado e o objetivo da igualdade se tornaram crescentemente proeminentes na era de Mao. Além disso, impulsionado pela longa onda de pensamento radical no país, Mao tentou resolver estes problemas com o Grande Salto Adiante (1958-1962) e com a Revolução Cultural (1966-1976), mas ambas iniciativas terminaram fracassando. As gerações seguintes continuaram lidando com essa dupla busca do socialismo chinês: industrialização e igualdade.

3. Os dilemas internos do socialismo 1.0

Desde Marx, a teoria socialista teve os seguintes objetivos centrais: superar a propriedade privada capitalista e a concorrência desenfreada por meio da propriedade pública e da economia planejada, eliminar a exploração e implementar a distribuição conforme o trabalho. No entanto, foram necessárias adaptações substantivas à teoria socialista, tanto para o caminho socialista liderado pelo Estado, iniciado por Lenin, como para o caminho social democrata da Europa ocidental. O socialismo vislumbrado por Marx supostamente seria alcançado nos países capitalistas desenvolvidos, onde a acumulação de capital social teria alcançado um nível considerável, proporcionando as condições para uma economia planejada e para a distribuição conforme o trabalho.

No entanto, nem a União Soviética nem a China eram países desenvolvidos capitalistas e, então, o primeiro passo nestes países era definir como acumular capital rapidamente para estabelecer as bases da propriedade pública. No início do século XX, a estrutura centro-periferia do capitalismo mundial tomou forma, o que significou que os países socialistas não poderiam depender do mercado mundial para acumular capital rapidamente. Como resultado, os países socialistas tiveram que experimentar e, às vezes, reformular rapidamente suas políticas econômicas, uma dinâmica observada na União Soviética. Durante a guerra civil, em resposta ao estado de emergência e à necessidade de manter o poder político, Lenin implementou, de 1918 a 1921, o “comunismo de guerra” – caracterizado pela quase total nacionalização da economia e requisição compulsória dos produtos alimentícios do campesinato. Com o fim da guerra civil, diante da necessidade imperativa de crescimento da produtividade, Lenin teve que implementar uma série de mudanças radicais (em alguma medida, concessões), como a implementação da Nova Política Econômica (1921-1928) e a permissão para o desenvolvimento do capitalismo e de uma economia de mercado sob controle do Estado. Enquanto isso, Stalin teve outra abordagem, mais custosa, substituindo o mercado por um sistema burocrático organizado para assumir a pesada responsabilidade de planejamento e distribuição.

Na China, a fase inicial da industrialização se baseou, em grande medida, na privação das áreas rurais. Uma das funções do movimento comunal rural era direcionar o excedente agrícola para a industrialização. Em comparação com a União Soviética, no entanto, a China não transferiu completamente os custos da acumulação de capital industrial para as áreas rurais. Mao, junto com outros líderes, convocou todo o país para “apertar os cintos”, ou seja, para que toda a população assumisse os custos da acumulação de capital. Objetivamente, tanto na União Soviética como na China, a economia planejada desempenhou um papel importante precisamente na fase inicial da industrialização. Durante essa fase, as estruturas sociais e econômicas eram relativamente simples, e, por isso, era possível que o Estado formulasse os arranjos planejados para a produção, comércio, distribuição e consumo. No entanto, quando a industrialização foi além desta fase inicial, a divisão do trabalho industrial tornou-se crescentemente complexa e as cadeias de produção se estenderam, conduzindo a um rápido declínio na eficiência do planejamento, ao “entupimento das linhas” ao longo do sistema econômico e a uma crise de informação onde não havia comunicação interna suficiente para realizar os ajustes necessários à política.

Embora Mao tivesse a expectativa de que priorizar a participação popular na administração da produção promoveria a efetivação da concepção de Marx sobre o controle dos meios de produção pelos trabalhadores, tais esforços enfrentaram dificuldades profundas na realidade. À medida que a industrialização avança, a divisão do trabalho se intensifica, não apenas em termos de trabalho industrial, mas também nos cargos e funções de gerentes e pesquisadores científicos. Além disso, como a industrialização desenvolve processos de produção, distribuição e consumo cada vez mais complexos, a quantidade de informação gerada também cresce em comparação com a sociedade agrícola, demandando um sistema burocrático organizado de gestão de informação. Esse sistema burocrático, tal como articulado por Max Weber e outros autores, é necessário não apenas no interior das unidades produtivas, mas para a sociedade como um todo. Nesse sentido, em tempos de desenvolvimento pacífico, um dos efeitos colaterais da industrialização é que um partido político de vanguarda pode se dividir rapidamente em componentes burocráticos cada vez mais sofisticados, e em diferentes agrupações políticas. Mao esperava que esse problema pudesse ser resolvido pela substituição do sistema burocrático pela auto-organização popular. Sua confiança deve ter se originado pela experiência de guerra popular do PCCh. Com a prática da linha de massa, o partido foi capaz de realizar mobilizações sociais poderosas e processos políticos dinâmicos que integraram a vanguarda do partido com o povo.

Mao queria reviver o modelo organizativo da guerra popular durante a industrialização para impulsionar o desenvolvimento nacional. No entanto, esse modelo organizativo foi exitoso em um contexto histórico específico, no qual havia um forte sentimento de urgência entre o povo, devido à guerra civil chinesa (1927-1937; 1945-1949) e a Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa (1937-1945). Na sequência da vitória da Revolução e no início da construção nacional, esse senso de urgência se dissipou gradualmente. Além disso, as condições durante a era do socialismo 1.0 não eram propícias para que o povo lidasse com as complexidades do desenvolvimento do país, uma vez que, deliberada ou inadvertidamente, os sistemas burocráticos do partido e do governo distorceram e desintegraram a auto-organização das massas. Assim, os objetivos de Mao eram difíceis de implementar na prática.

Outro problema que não pôde ser solucionado à época foi o ajuste do sistema de alta acumulação durante o início da RPC. Depois de completar a fase inicial de acumulação industrial, o próximo desafio de um Estado socialista seria promover um ciclo estável para reprodução ampliada. Isso envolve duas tarefas: primeiro, é necessário ajustar a proporção de acumulação e consumo de forma razoável, conduzir reformas fiscais e financeiras e gerar poder sustentável para o crescimento econômico. Porém, no socialismo 1.0, as políticas fiscais e financeiras da China eram relativamente conservadoras, levando a uma oferta monetária insuficiente que suprimiu a expansão do consumo, resultando na ausência de motivação para a evolução industrial. Além disso, é necessário resolver o problema da integração da economia nacional ao sistema econômico internacional. O sistema moderno de produção industrial em massa depende de insumos de recursos e produtos que extrapolam fronteiras e regiões. É difícil sustentar o crescimento econômico dependendo apenas do investimento e consumo interno. Um ciclo econômico efetivo deve ser estabelecido por meio de comércio internacional para manter a vitalidade.

No início da década de 1930, a União Soviética tentou atrair capital e tecnologia dos Estados Unidos, que estavam em meio a uma crise econômica à época e tinham uma demanda objetiva por produção industrial e de capital. Essas condições eram favoráveis para promover a cooperação e o desenvolvimento acelerado da economia soviética. Na sequência, a União Soviética se comprometeu a construir o campo socialista, não apenas por motivos políticos ou de segurança, mas também para estabelecer um ciclo econômico entre os países socialistas. Depois da revolução de 1949, a China se somou ao campo socialista e recebeu uma quantia significativa de capital soviético e apoio técnico, especialmente após a Guerra da Coreia (1950-1953), conhecida na China como Guerra de Resistência à Agressão dos EUA e de Ajuda à Coreia (抗美援朝战争, Kànɡměi yuáncháo zhànzhēnɡ). Esse apoio permitiu que a industrialização básica da China transcorresse sem maiores problemas. Mas o sistema econômico liderado pela União Soviética também produziu seus próprios desequilíbrios entre os países. Finalmente, Mao e a liderança do partido decidiram romper com o sistema soviético, assim como romperam com o sistema econômico capitalista mundial em 1949, o que resultou na permanência da economia da China relativamente fechada por um longo tempo.

Em geral, a visão do socialismo 1.0 pode ser sintetizada da seguinte forma: sob propriedade pública, os trabalhadores coletivamente administraram os meios de produção, produzindo para seu próprio bem estar material e espiritual, e não para o lucro. De fato, a economia planejada e o sistema de propriedade pública criaram um sistema de acumulação no qual os custos eram compartilhados pelo povo como um todo, e a industrialização básica foi completada em um período relativamente curto de tempo. No entanto, essa estrutura econômica também tinha limitações inerentes, relativas à sustentabilidade do desenvolvimento interno e às dificuldades de conexão com o ciclo econômico externo. Enfim, o modo de produção e a capacidade de organização da China durante o socialismo 1.0 não foram suficientes para concretizar verdadeiramente os ideais socialistas de igualdade e cooperação. Esse foi o desafio enfrentado por Deng Xiaoping (邓小平) e demais líderes que conduziram a China para sua nova fase do socialismo.

Socialismo 2.0

1. A economia política do socialismo 2.0

Tendo experimentado e participado da construção do socialismo 1.0, Deng Xiaoping compreendia com nitidez seus problemas. Em contraste com a ênfase de Mao nos objetivos idealistas de “combater o individualismo e criticar o revisionismo” (斗私批修, dòusī pīxiū), “ser justo e altruísta” (大公无私, dàgōng wúsī) e “servir ao povo” (为人民服务, wèi rénmín fúwù), Deng Xiaoping estava mais inclinado a uma abordagem realista, devido a seu longo envolvimento na linha de frente do trabalho econômico. Essa orientação se expressou em uma reunião com convidados estrangeiros em 1979, quando Deng afirmou ser um equívoco pensar que a economia de mercado só poderia existir no capitalismo, defendendo que o socialismo também poderia adotar uma economia de mercado e aprender algo com países capitalistas, tal como métodos de gestão de negócios.[13] A estratégia de Deng era transformar, gradualmente, a economia planejada em um instrumento de regulação macroeconômica, estabelecer o mecanismo de uma economia de mercado, e tentar compatibilizar a economia de mercado com a propriedade pública e a distribuição conforme o trabalho. Essa abordagem era significativamente distinta do socialismo 1.0, em que a economia planejada era uma base institucional inter-relacionada com a propriedade pública e a distribuição conforme o trabalho. Em 1984, a Resolução do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre a Reforma da Estrutura Econômica foi aprovada na Terceira Sessão Plenária do 12º Comitê Central do PCCh, o primeiro avanço no impasse entre a economia planejada e a economia de mercado.[14] Deng valorizou essa decisão, dizendo que este era um paradigma político e econômico que combinava os princípios básicos do marxismo com a prática socialista da China.

Inevitavelmente, as mudanças na estrutura básica da economia do país levantaram questões sobre o significado e a interpretação do socialismo. Especificamente, onde estariam seus elementos e características centrais? Embora fosse necessário elucidar, teoricamente, como tais reformas eram consistentes com o socialismo, Deng propôs que o partido deixasse de lado os debates teóricos e, ao invés disso, colocasse o foco em estabelecer metas específicas e em mapear a trajetória para a nova direção de desenvolvimento do país. Assim, ao promover a reforma econômica, Deng ajustou a teoria das fases históricas do desenvolvimento que havia sido adotada durante o período do socialismo 1.0. Em 1987, o 13º Congresso Nacional do PCCh propôs o entendimento de que a China, devido a seu subdesenvolvimento histórico, estava na “primeira fase do socialismo” (社会主义初级阶段, shèhuì zhǔyì chūjí jiēduàn), durante a qual a principal tarefa seria desenvolver as forças produtivas e estabelecer uma estratégia de desenvolvimento de três passos para alcançar um padrão de vida relativamente bom para o povo e efetivar a modernização socialista até o centenário da revolução.[15] Na sequência, em 1992, o 14º Congresso Nacional do PCCh declarou que a reforma da China tinha como objetivo estabelecer um sistema de economia socialista de mercado. Esta era, efetivamente, uma mudança na concepção clássica de socialismo, por não insistir em que uma economia totalmente planejada seria necessária para assegurar a propriedade pública e distribuição conforme o trabalho. Adaptações correspondentes foram feitas à teoria das fases históricas do desenvolvimento, gradualmente esclarecendo que era necessário construir uma economia socialista de mercado durante a primeira fase do socialismo. Juntos, esses desenvolvimentos teóricos formaram a base do socialismo com características chinesas.

2. Os desafios do socialismo 2.0

Durante o período de reforma e abertura, a indústria chinesa cresceu rapidamente, devido à ativação da demanda interna e ao acesso a investimentos externos pela integração ao mercado mundial. Tendo a circulação econômica doméstica e internacional como suporte, a industrialização embarcou em um processo sustentado de desenvolvimento soberano e rápido crescimento, passando da fase de acumulação industrial para a evolução industrial.

Na economia socialista de mercado, de acordo com Deng, o mercado é apenas um meio para concretizar a visão socialista de construção de uma “sociedade moderadamente próspera” (小康社会, xiǎokāng shèhuì) e alcançar a “prosperidade comum” (共同富裕, gòngtóng fùyù). No entanto, com o desenvolvimento acelerado da economia de mercado, essa visão enfrentou problemas crescentes.

Em primeiro lugar, o paradigma teórico de Deng não tinha uma narrativa histórica convincente como suporte. Ou seja, não identificava um caminho nítido para o desenvolvimento socialista da China, criando uma fragilidade no novo paradigma ideológico do partido. A teoria socialista da era Deng acrescentou um novo segmento à narrativa histórica apresentada por Mao em A nova democracia, inserindo a primeira fase do socialismo na transição proposta do socialismo ao comunismo. No entanto, essa formulação de uma primeira fase do socialismo não respondia a duas questões fundamentais: existe uma fase superior que segue à primeira fase do socialismo? E, como esse caminho levaria, finalmente, ao comunismo? Naquela época, o partido não tinha a capacidade nem os recursos para responder a essas questões e apenas poderia adiar o tema, sem discuti-lo.

Em segundo lugar, o sistema econômico básico do socialismo 2.0 também enfrentou uma série de dificuldades. A preocupação central da teoria da economia socialista de mercado era sobre a compatibilidade entre socialismo e economia de mercado. Socialismo, como uma forma de propriedade, é caracterizado pela propriedade pública e coletiva, enquanto o mercado, teoricamente, aloca recursos, baseando os tipos de produtos e escalas de produção de diferentes empresas nos indicadores de preço determinados pelas forças de oferta e demanda. Assim, em teoria, formas diversas de propriedade deveriam ser compatíveis com o mercado. Os proponentes da economia socialista de mercado argumentaram que o socialismo poderia desenvolver uma economia de mercado no lugar da economia planejada, mantendo os dois elementos básicos do socialismo: propriedade pública e distribuição conforme o trabalho. No entanto, na prática, a economia de mercado começou a minar esses dois princípios socialistas. No final dos anos 1980, o setor comercial da China foi gradualmente privatizado e, após 1992, um grande montante de investimento externo chegou ao país, e a propriedade privada da produção começou a se expandir. Em 1997, o PCCh adotou a política de “agarrar os grandes e deixar os pequenos irem” (抓大放小, zhuādà fàngxiǎo), concentrando-se em manter o controle do Estado sobre empresas de propriedade estatal (SOE, pela sigla em inglês) maiores e estrategicamente mais importantes, como são os setores bancário e de energia, ao passo que se flexibilizava o controle sobre empresas estatais menores e não estratégicas, como a indústria leve. Sob essa política, as reformas tiveram como resultado a privatização básica de empresas estatais locais, uma grande perda de ativos estatais, a exposição da classe trabalhadora às forças do mercado e o distanciamento do partido de sua base.

Ao mesmo tempo, houve uma mudança do princípio de “distribuição conforme o trabalho” para a “distribuição conforme outros fatores”, tais como capital, terra e tecnologia que, escassos, em geral ocuparam posição vantajosa em relação ao trabalho nas transações do mercado. A prioridade extrema da eficiência econômica ampliou e abusou das vantagens desses outros fatores sobre o trabalho. Isso iria, inevitavelmente, comprimir a proporção do excedente distribuído ao trabalho, levando a uma crescente separação entre os trabalhadores e os meios de produção, assim como a uma deterioração contínua das condições de vida da classe trabalhadora. Esta tendência era exacerbada pela insuficiência de serviços públicos. Se o custo dos primeiros 30 anos de industrialização havia sido distribuído de forma equânime para toda a população, por meio da poderosa vontade do Estado, nos 30 anos seguintes, os custos da reforma orientada ao mercado recaíram mais sobre os setores populares.

Socialismo 3.0: em direção ao futuro

Para a China, tanto a prática do socialismo 1.0 nas três primeiras décadas que seguiram à revolução, quanto a implementação do socialismo 2.0 nas três décadas subsequentes, demonstraram como os ideais e crenças socialistas estavam integrados às realidades do país. Essa integração faz com que seja irracional qualquer desvio radical da China de seu caminho socialista. No entanto, o desafio enfrentado pela China repousa no fato de que não existe um modelo externo que sirva de ponto de partida para ajustar o socialismo 2.0.

Com a evolução do panorama internacional político e econômico e as transformações nas formas de produção, tanto o caminho da social-democracia da Europa ocidental, como o caminho dos Estados Unidos – de negação completa do socialismo –, entraram em crise devido a suas contradições inerentes. Assim, a reforma do caminho socialista da China precisa se basear em sua própria prática.

Concentrar-se na própria prática da China não significa separar o país do mundo externo. Pelo contrário, a realidade fundamental da China contemporânea é sua profunda integração com o mundo. Dessa forma, as discussões sobre o socialismo na China precisam considerar as mudanças políticas e econômicas globais como pano de fundo. Assim como Marx empreendeu grandes esforços para compreender e analisar a lógica interna e o funcionamento do capitalismo industrial moderno, em meados do século XIX, hoje é preciso compreender e analisar o funcionamento e a lógica interna da atual forma de produção e sua transformação.

Ações racionais só podem ser adotadas de acordo com a direção dessa transformação e, em momentos e conjunturas críticas, escolhas relativamente coerentes deveriam se basear nas condições históricas dadas. Para a China, o socialismo não pode ser simplesmente limitado a um manifesto assinado pelo partido no poder. Deveria ser, também, um conceito e um recurso prático para repensar a participação pública e recriar a comunidade política. Em meio a um novo cenário mundial e da ascensão de novas formas de produção, a nova direção do socialismo deve ser considerada seriamente.

Os princípios centrais do socialismo 1.0 – a economia planejada, a propriedade pública e a distribuição conforme o trabalho – foram construídos por meio de reflexão e aprimoramentos no modelo de produção de massa. A base da produção de massa é o trabalho coletivo: os trabalhadores se reúnem em um local de trabalho comum e trabalham uns com os outros, operando os meios de produção para produzir e montar bens. Os princípios do socialismo 1.0 buscavam permitir que os trabalhadores controlassem os meios de produção com base no trabalho coletivo de modo a se libertarem da exploração da burguesia, e a melhorar a estrutura de trabalho e as condições de vida da classe trabalhadora. O socialismo 3.0 deveria buscar novas abordagens para corrigir os abusos provocados pela posição dominante do capitalismo na economia global, visando a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e ampliando seu controle dos meios de produção, ao mesmo tempo em que reconhece a necessidade de uma economia de mercado. Na China, é preciso limitar os abusos do capital e melhorar a posição do trabalho no processo produtivo, de forma alinhada com as dinâmicas de industrialização, e, finalmente, construir um modelo de industrialização mais inclusivo e justo. Evidentemente, esse objetivo não pode ser alcançado por meio de ajustes espontâneos do mercado e exige que o Estado assegure e mantenha sua liderança no domínio econômico.

Desde o início da revolução, o Estado chinês tem demonstrado certa singularidade, ao possuir múltiplas forças executivas que perpassam a sociedade, a política e economia do país. Mesmo após as reformas administrativas durante o socialismo 2.0, o Estado continuou possuindo uma razoável iniciativa econômica, não apenas em termos de suas políticas públicas mas, sobretudo, pelas empresas (SOE’s) e sistemas de terras de propriedade estatais.

Ao empreender essa tarefa hercúlea, o país deve estar atento à eventual burocratização que pode surgir dos esforços para regular a produção. Para continuar liderando o povo chinês, o PCCh deve usar efetivamente seu poder e recursos para reestruturar as relações de produção e promover os interesses da classe trabalhadora, conquistando, com isso, o apoio do povo. Na era do socialismo 1.0, o PCCh distribuiu os principais meios de produção – a terra – para o campesinato e formou a classe trabalhadora por meio da industrialização. Como resultado, os interesses gerais do PCCh e do povo estavam alinhados, e a base social do partido era sólida. Entretanto, na era do socialismo 2.0, o PCCh introduziu e desenvolveu a economia de mercado, e instituiu a eficiência como princípio central para orientar a alocação de recursos, incentivando o enriquecimento individual. Essa abordagem atendia às “crescentes necessidades culturais e materiais do povo” (人民群众日益增长的物质文化需求, rénmín qúnzhòng rìyì zēngzhǎng de wùzhì wénhuà xūqiú), mas também estabelecia as bases para uma grave crise. Atualmente, se o PCCh pretende reconstruir sua base social, não pode simplesmente ajustar suas políticas de bem-estar social. É preciso regenerar sua base de classe, por meio da ampla melhoria das condições de vida da classe trabalhadora, de uma distribuição de renda mais equilibrada por todo o país, e da elevação do status do trabalho no sistema industrial, assim como deve colocar limites aos abusos do capital.

Além dos âmbitos econômicos e sociais, também é preciso reconhecer que os valores e ideais inerentes ao socialismo são um recurso importante para a China enquanto uma comunidade política e cultural. As ideias socialistas foram rapidamente aceitas e difundidas na China moderna não apenas porque eram próximas ao tradicional ideal chinês de “Grande Unidade” – até hoje, muitos chineses compreendem o socialismo a partir desse conceito cultural –, mas também pela bem sucedida adaptação da narrativa socialista das fases históricas do desenvolvimento ao contexto chinês, por Mao e outros. É, precisamente, nesta narrativa que a aceitação popular do socialismo conquistou unidade de consciência e convicção.

Em um país socialista, a narrativa materialista histórica do desenvolvimento é informativa e esclarecedora. Pode-se afirmar que essa narrativa histórica joga um papel na manutenção da crença pública no sistema político e na trajetória de desenvolvimento nacional em países não religiosos, como a China, assim como a tradição cristã desempenha um papel político importante em democracias liberais, como nos Estados Unidos, Europa e outros países ocidentais. Para um país do tamanho da China, é preciso desenvolver um conjunto de valores e ideais comuns que sejam refletidos nos processos políticos e econômicos reais, ao invés de mera propaganda ideológica. Sob condições históricas em constante transformação, a China deve mobilizar seus próprios ideais e tradições culturais para recriar e revitalizar seus valores comuns, assegurando a sobrevivência do país e guiando-o para a direção correta.

Referências bibliográficas

Deng Xiaoping.“In Everything We Do We Must Proceed From the Realities of the Primary Stage of Socialism” [Em tudo o que fazemos, devemos partir das realidades da primeira etapa do socialismo]. In: Selected Works of Deng Xiaoping, Vol. 3. Beijing: Foreign Languages Press, 1994.

Deng Xiaoping. “Nós podemos desenvolver uma economia de mercado no socialismo”. Traduzido por Abner Garcia Castanho. Arquivo Marxista na Internet, 26 de novembro de 1979.

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Mao Zedong. “A Nova Democracia na China”. Problema – Revista Mensal de Cultura Política, n. 20, ago./set. 1949.

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Mao Zedong. “The Party’s General Line for the Transition Period” [A linha geral do partido para o período de transição]. In: Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 5. Pequim: Foreign Languages Press, 1977.

Comitê Central do Partido Comunista da China. “Decision of the Central Committee of the Communist Party of China on Reform of the Economic Structure”. Beijing Review 27, n. 44, out. 1984.

Notas do autor

1. A expressão “Socialismo com características chinesas” foi cunhada por Deng Xiaoping (邓小平) em 1982, nas fases iniciais da reforma e abertura para enfatizar que o socialismo na China deveria ser adaptado às condições do país.

2. Depois da primeira Guerra do Ópio (1839-1842), a China caiu gradualmente no status de Estado semi-colonial e semi-feudal controlado por potências estrangeiras. O período de mais de 100 anos – de meados do século XIX até a revolução socialista de 1949 – é conhecido como o “século de humilhação” da China (百年国耻, bǎinián guóchǐ). Durante esse período, o conjunto de movimentos revolucionários que lutaram contra a invasão imperialista e em busca de independência e libertação nacional da China é chamado de Movimento pela Salvação Nacional (救国运动 jiùguó yùndòng), por sua importância em “salvar” a nação chinesa quando esta estava no limite da sobrevivência.

3. “Grandes mudanças inéditas em três mil anos” foi uma expressão usada por Lin Hongzhang (李鸿章), líder político do final da dinastia Qing (清朝, 1644-1912), que advogou pela modernização industrial e militar da China para descrever as mudanças geopolíticas que estavam acontecendo no século XIX em âmbito mundial.

4. “Grande Unidade” é um conceito utópico da filosofia tradicional chinesa e se refere a toda humanidade vivendo em uma comunidade harmônica. O conceito data de vários milhares de anos, tendo aparecido pela primeira vez no antigo texto confuciano “Livro dos Ritos” (礼记, Lǐjì), e permanece como um ideal político influente.

5. No início da década de 1920, sob a manipulação de potências imperialistas, a China foi mantida em um estado de fragmentação e militarismo. “Senhores da guerra” de todos os portes saquearam e oprimiram o povo em suas áreas de domínio, conduzindo a uma depressão econômica e espalhando sofrimento. Em resposta às aspirações comuns do povo chinês de derrubar o imperialismo e pôr fim ao domínio dos senhores de guerra, o Partido Comunista da China promoveu ativamente a cooperação com o Partido Nacionalista da China, ou Kuomintang, para estabelecer uma frente única revolucionária. Após a formação da primeira frente única entre os dois partidos, o ritmo da revolução chinesa se acelerou e um movimento revolucionário contra o imperialismo e os “senhores da guerra” feudais irrompeu de 1924 a 1927, o que é conhecido como “Grande Revolução” ou “Revolução Nacional”.

6. Mao Zedong. “A Revolução Chinesa e o Partido Comunista da China”. In: Obras Escolhidas de Mao Tse-tung, Vol. 2. Pequim: Edições do Povo, 1975; Mao Zedong. “A Nova Democracia na China”. Problema – Revista Mensal de Cultura Política, n. 20 (agosto-setembro de 1949).

7. Nova Democracia, ou a Nova Revolução Democrática, é um conceito desenvolvido por Mao Zedong que se refere a uma fase da transformação revolucionária da China. Durante essa fase, o Partido Comunista deveria liderar uma frente única da classe trabalhadora, do campesinato, da pequena burguesia e da burguesia nacional, permitindo um desenvolvimento limitado do capitalismo nacional para superar o feudalismo e assegurar a independência nacional.

8. O Movimento de Auto-Fortalecimento (1861-1895) foi composto por uma série de reformas institucionais lançadas no último período da dinastia Qing, buscando modernizar a China em termos econômicos e militares.

9. Mao Zedong. “The Party’s General Line for the Transition Period” [A linha geral do partido para o período de transição]. In: Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 5. Pequim: Foreign Languages Press, 1977.

10. “Uma transformação e três reformas” foi a linha geral adotada pelo PCCh durante a transição ao socialismo. “Uma transformação” se refere à industrialização socialista do país, enquanto “três reformas” se referem à transformação socialista da agricultura, da indústria manufatureira e da indústria e comércio capitalistas.

11. Mao Zedong. “Sobre os ‘Problemas Econômicos do Socialismo na URSS’ de Stalin”. Traduzido por Eduardo Vasco. Arquivo Marxista na Internet, novembro de 1958.

12. “Duas participações e uma reforma” é uma referência às práticas da siderúrgica Angang, ou Anshang (atualmente conhecida como Ansteel Group) em 1960. “Duas participações” significava que os quadros deveriam participar do trabalho, enquanto os trabalhadores deveriam participar da administração. “Uma reforma” significava que regras e regulamentos inadequados deveriam ser reformados.

13. Deng Xiaoping. “Nós podemos desenvolver uma economia de mercado no socialismo”. Traduzido por Abner Garcia Castanho. Arquivo Marxista na Internet, 26 de novembro de 1979.

14. Comitê Central do Partido Comunista da China. “Decision of the Central Committee of the Communist Party of China on Reform of the Economic Structure”. Beijing Review 27, n. 44, out. 1984.

15. Deng Xiaoping.“In Everything We Do We Must Proceed From the Realities of the Primary Stage of Socialism” [Em tudo o que fazemos, devemos partir das realidades da primeira etapa do socialismo]. In: Selected Works of Deng Xiaoping, Vol. 3. Beijing: Foreign Languages Press, 1994.

Vol.1 N.º 2 | 27.06.2023

Wenhua Zongheng: Revista Trimestral do Pensamento Chinês | VOL.1 Nº 2

O caminho da China: da extrema pobreza à modernização socialista


China 2098: Bem-vindo de volta (中国2098:欢迎回家), 2019-2022. Crédito: Fan Wennan.

O socialismo é um processo histórico

“O conceito de socialismo está no centro de intensas batalhas ideológicas”. É o que a Fundação Longway (修远基金) afirma no primeiro artigo desta edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横). “Em geral, esses debates permanecem no plano das ideias, […] enquanto ignoram que o socialismo é um processo histórico que se desenvolveu junto com a industrialização”.

Na China, a história da industrialização é inseparável da construção do socialismo, ao longo de suas diferentes etapas, progressos, tentativas e erros. Nas últimas décadas do século XX, o movimento socialista mundial se enfraqueceu com a dissolução da União Soviética. Nesse período, o sistema socialista da China passou por uma autotransformação por meio da reforma e abertura, sob a liderança de Deng Xiaoping. Ao mesmo tempo, observadores de todo espectro político interpretaram essa nova direção como a sentença de morte do projeto socialista na China, e como o início de um caminho capitalista do país. Essas análises iniciais, tanto de dentro como de fora do país, não tinham as informações necessárias nem o distanciamento histórico para avaliar o caráter socialista das reformas da China.

Apesar das conquistas sociais, econômicas e industriais do início do período socialista sob a liderança de Mao Zedong, três décadas depois da revolução, a China continuava sendo um país muito pobre, e a maioria do povo chinês permanecia vivendo na extrema pobreza. Nessa situação, Deng declarou que “pobreza não é socialismo. Socialismo é eliminar a pobreza”, e tentou construir um novo caminho para lidar com as necessidades de modernização do país e de melhores condições de vida para o povo. A reintrodução do capital privado e a integração da China no sistema econômico internacional fizeram parte dos esforços de desenvolver rapidamente as forças produtivas do país, priorizando estrategicamente algumas regiões para “deixar que aquelas que enriqueçam primeiro levem as demais junto consigo” (先富带后富, xiānfù dài hòufù). No Ocidente, de forma intencional ou não, essa formulação tende a ser reduzida a “deixar alguns enriquecerem primeiro”, omitindo a segunda parte da expressão, que responsabiliza os membros ou regiões mais ricos do país a “levar os outros consigo” em direção ao objetivo da prosperidade comum. Isso expressa a pobreza de informação sobre a China que existe fora do país, um fator crucial nas disputas sobre o conceito de socialismo.

No final de 2020, apenas quatro décadas após o início da experiência de Deng, a China anunciou o êxito da erradicação da extrema pobreza entre seus 1,4 bilhão de habitantes. Essa conquista histórica aconteceu em meio à pandemia global de Covid-19, durante a qual as crises sociais e econômicas se aprofundaram em todo o mundo e milhões de pessoas retornaram à situação de extrema pobreza, especialmente no Sul Global. A erradicação da extrema pobreza na China foi um dos dois objetivos centenários estabelecidos pelo Partido Comunista da China (PCCh), a serem cumpridos no aniversário de 100 anos do partido, fundado em 1921. Durante a última fase desse processo, de 2013 a 2020, a China empreendeu um programa de redução direcionada da pobreza (精准扶贫, jīngzhǔn fúpín), iniciado pelo presidente Xi Jinping, para tirar as últimas 100 milhões de pessoas chinesas da extrema pobreza. Isso se soma às mais de 700 milhões de pessoas que saíram da pobreza no país desde o início do programa de reforma e abertura. Desde 1978, a China respondeu por mais de 70% da redução da pobreza global. Como podemos compreender essa conquista impressionante? A quais processos e atores devemos dar os créditos e quais devem ser os fundamentos de nossa avaliação?

Apesar dos incríveis avanços econômicos da China nesse período, seria incompleto e equivocado atribuir a conquista da eliminação da extrema pobreza apenas à reforma econômica e à reintrodução das forças do mercado. Este número da Wenhua Zongheng, intitulado O caminho da China: da extrema pobreza à modernização socialista, é composto por três artigos que analisam detalhadamente a batalha centenária da China contra a pobreza, situando-a na experiência histórica de construção socialista no país.

No primeiro artigo, Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China, a Fundação Longway contextualiza a era atual do socialismo chinês e a batalha contra a pobreza dentro da busca histórica do PCCh por modernização e pelo objetivo duplo de industrialização e igualdade. Os autores argumentam que o método do partido para atingir tais objetivos, interrelacionados e, por vezes, contraditórios, evoluiu em três fases distintas. De 1949 a 1976, a era de Mao Zedong — chamada de “socialismo 1.0” — estabeleceu a propriedade pública dos meios de produção, mantendo a igualdade social e alcançando uma industrialização básica, mas encontrou limitações no desenvolvimento econômico. A essa fase se seguiu o “socialismo 2.0”, na era de Deng Xiaoping, que deu início a introdução da economia de mercado, em 1978, e alcançou grandes avanços econômicos e sociais. Porém levou a um aumento acentuado na desigualdade, a uma maior separação entre trabalhadores e meios de produção, e “estabeleceu as bases para uma grave crise”. Finalmente, no período contemporâneo, a China deve desenvolver um “socialismo 3.0”, a partir das eras anteriores, mas encarando seus limites, por meio do combate à desigualdade e da promoção dos interesses da classe trabalhadora. De fato, o 18º Congresso Nacional do PCCh, em 2012, marcou uma nova era no caminho socialista da China, com a elevação dos esforços de redução da pobreza à tarefa central do partido e da sociedade.

No segundo artigo, A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária alternativa na era pós-revolucionária da China, Li Xiaoyun (李小云) e Yang Chengxue (杨程雪) analisam a “batalha contra a pobreza” (扶贫攻坚, fúpín gōngjiān), argumentando que esta representa uma espécie de retorno do partido à sua agenda revolucionária. Os autores traçam as origens das políticas atuais de redução da pobreza nas práticas do início do movimento comunista na China, particularmente nas formas de governar do partido nas áreas das bases revolucionárias nas décadas de 1930 e 1940. Além de melhorar as condições de vida do povo, os autores argumentam que a batalha contra a pobreza teve um impacto político e econômico mais amplo, ao restabelecer a autoridade política do PCCh e reconstruir o consenso social no país. Li e Yang concluem que “isso expressa uma nova fase do governo do PCCh”, caracterizada pela “promoção de justiça social para concretizar a modernização do país”. Essa nova fase busca conduzir o país ao segundo objetivo centenário do PCCh, ou seja, construir uma sociedade socialista moderna até 2049, no centésimo aniversário da revolução chinesa. Para esses esforços, é fundamental o avanço do desenvolvimento e do bem-estar social nas áreas rurais. Com esse objetivo, em 2013, o PCCh lançou seu programa de redução direcionada da pobreza, para erradicar a extrema pobreza na China.

No terceiro artigo, Como a redução direcionada da pobreza mudou as estruturas de governança rural na China, Wang Xiaoyi (王晓毅) analisa como esse programa atingiu seu objetivo experimentando novas práticas, utilizando o método histórico de governo no modelo de campanha da era de Mao Zedong. Esse método se caracteriza pela mobilização de enormes quantidades de recursos humanos e materiais para a realização de tarefas de larga escala. Durante o período da reforma e abertura, devido ao desenvolvimento da economia de mercado, as áreas rurais foram esvaziadas com a migração em massa para as cidades, as organizações dos povoados se enfraqueceram e o partido e o Estado se distanciaram das bases, o que teve como resultado a diminuição do acesso aos serviços públicos nas áreas pobres. Wang detalha como, além de satisfazer as necessidades materiais imediatas da população rural, a redução direcionada da pobreza desempenhou um papel importante na reconstrução das organizações nos povoados, fortalecendo os processos democráticos de autogoverno local e reaproximando o partido de sua base rural – o que incluiu o envio de três milhões de quadros do partido para trabalhar nas áreas empobrecidas. Resta saber se essas experiências e inovações significativas da campanha de redução direcionada da pobreza poderão ser traduzidas em mudanças institucionais e se poderão efetuar transformações de longo prazo na governança rural.

Em novembro de 2022, em seu relatório ao 20º Congresso Nacional do PCCh, Xi afirmou que “a modernização chinesa é a modernização socialista conduzida sob a liderança do Partido Comunista da China”. Ele destacou cinco características do caminho da China rumo à modernização: a modernização de uma população enorme, prosperidade comum para todos, progresso material e ético-cultural, harmonia entre humanidade e natureza e desenvolvimento pacífico. Xi afirmou, ainda, que “ao realizar a modernização, a China não irá trilhar o velho caminho da guerra, colonização e espoliação adotado por alguns países. Esse caminho brutal e manchado de sangue do enriquecimento de alguns às custas de outros provocou muito sofrimento para os povos dos países em desenvolvimento. Nós iremos nos manter firmes no lado certo da história e no lado do progresso humano”. Assim como no caso do socialismo, a luta para redefinir o conceito de modernização, arrancando-o da hegemonia do Ocidente, é uma batalha ideológica fundamental em nosso tempo.

Não há dúvida de que o caminho da China para a modernização socialista tem importância global e, nele, a luta contra a pobreza desempenha um papel central. Entretanto, não se trata de um modelo único a ser reproduzido ou imposto a outros países, já que cada um tem suas próprias histórias e condições. Representa um caminho alternativo ao desenvolvimento capitalista ocidental e a possibilidade de que os povos e países do Sul Global sigam seu próprio rumo a uma modernização — e, talvez, para o socialismo —, defendendo firmemente a dignidade humana e a soberania nacional.

Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China

Fundação Longway

A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária alternativa na era pós-revolucionária da China

Li Xiaoyun

Yang Chengxue

Como a redução direcionada da pobreza mudou a estrutura de governança rural na China

Wang Xiaoyi