Como a redução direcionada da pobreza mudou a estrutura de governança rural na China | 27.06.2023
China 2098: Fábricas cooperativas de alimentos (中国2098:合作社的粮食工厂), 2019-2022. Crédito: Fan Wennan.

Como a redução direcionada da pobreza mudou a estrutura de governança rural na China

Wang Xiaoyi

Wang Xiaoyi (王晓毅) é professor do Instituto de Sociologia da Academia Chinesa de Ciências Sociais. Sua pesquisa foca na redução da pobreza, governança rural e em diversos aspectos do desenvolvimento rural – desde as indústrias da costa sudeste da China até a vida social nas áreas de pastoreio do nordeste do país, sempre com uma forte orientação prática. Ele também trabalhou com redução da pobreza e proteção ambiental para diversas organizações sociais chinesas e internacionais.

O artigo “Como a redução direcionada da pobreza mudou a estrutura de governança rural na China” (精准扶贫如何改变乡村治理结构) foi publicado originalmente na edição nº 3 da Wenhua Zongheng (文化纵横), em junho de 2020.

Diferente dos esforços convencionais de redução da pobreza empreendidos pelo governo chinês, o programa de redução direcionada da pobreza (精准扶贫, jīngzhǔn fúpín), lançado em 2013, exibiu características distintivas de um modo de governar com estilo de campanha. Este programa estabeleceu a erradicação da extrema pobreza como objetivo central em torno do qual as políticas sociais e econômicas foram coordenadas nas áreas rurais e pobres. No final de 2020, depois de oito anos de trabalho árduo, esse objetivo foi atingido.

Para cumprir as metas da redução direcionada da pobreza dentro dos prazos estabelecidos, os governos locais mobilizaram com vigor recursos humanos e materiais, e implementaram medidas excepcionais.[1] Em muitas localidades, os governos empreenderam métodos quase militares para promover os esforços de redução direcionada da pobreza, rompendo com muitas convenções existentes. Embora a governança no estilo de campanha apresente medidas excepcionais e possa obter resultados extraordinários, estudos sugerem que é difícil sustentar este modo de governar em períodos regulares de governo. De qualquer modo, a governança no estilo de campanha ainda pode ter um impacto importante nas estruturas convencionais de governo.

Esse artigo analisa o impacto que a governança no estilo de campanha da redução direcionada da pobreza teve e terá na governança rural. O início do artigo apresenta um panorama dos problemas existentes na governança rural. Na sequência, analisa em que medida essa campanha alterou as estruturas existentes da governança rural. Finalmente, o artigo avalia se os mecanismos governamentais adotados no contexto da redução direcionada da pobreza serão capazes de se adaptar às condições normais de governo, após o fim da campanha, e se terão impacto duradouro na governança rural. O artigo argumenta que, considerando o êxito da redução direcionada da pobreza ao lidar com as fragilidades da governança rural e ao atingir seus objetivos, a campanha tem o potencial de provocar mudanças de longo prazo, por meio da institucionalização de suas práticas e metodologias.

Os dilemas da governança rural

Antes da implementação da estratégia de redução direcionada da pobreza, tanto a governança rural como as políticas de redução da pobreza enfrentavam sérios dilemas. Em 2006, a revogação dos impostos agrícolas levou à desintegração da sociedade rural, a inúmeras dificuldades nos sistemas tradicionais de governo rural e ao distanciamento entre o poder e os recursos dos governos locais e sua responsabilidade social.[2] A distribuição dos recursos para a redução da pobreza, destinados principalmente aos povoados e condados designados como pobres ou afetados pela pobreza, produziu dinâmicas complicadas. Os governos locais e as organizações dos povoados concorriam para serem assim designados, como forma de ter acesso aos recursos. Além do mais, isso produziu desequilíbrios na alocação de recursos, pois não contemplava famílias pobres que viviam em povoados não designados como afetados pela pobreza. Consequentemente, diferentes níveis de tensão emergiram entre os povoados rurais, e entre o Estado e tais povoados.

Os povoados rurais geralmente são tidos como comunidades vivas, nas quais os moradores mantêm os povoados por meio de práticas baseadas em valores compartilhados e na reciprocidade, assim como em instituições locais fortes. Na concepção de China rural do sociólogo e antropólogo Fei Xiaotong (费孝通), e na descrição da economia moral dos camponeses, do antropólogo e cientista político estadunidense James C. Scott, a vida rural é representada como largamente distanciada do Estado. No entanto, na realidade, os povoados da China não são tão distantes do Estado. Os povoados têm características de comunidades vivas, mas também existem sob o mandato do Estado. Além disso, com o aprimoramento das capacidades de governança do Estado, este passou a governar diretamente os povoados. Em grande medida, a força da governança rural do Estado tem sido determinada por sua capacidade de implementar normas e de exercer autoridade nos povoados.

Pequenas e grandes comunidades são geralmente pensadas em uma relação de soma zero, onde a intervenção do Estado reduziria a autonomia de pequenas comunidades, e a autonomia de pequenas comunidades diminuiria a influência do Estado nos povoados. No entanto, até agora, essa relação não tem sido tão evidente na China, já que tanto as pequenas quanto as grandes comunidades têm enfrentado desafios na governança rural.

Como comunidades vivas, os vilarejos da China se enfraqueceram, e até se desintegraram, nas décadas que se seguiram à reforma rural, iniciada nos anos 1980. A reforma rural teve dois componentes centrais: a implementação do sistema de responsabilidade familiar (包产到户, bāochǎn dào hù) na produção agrícola e a criação de comitês de povoados (村民委员会, cūnmín wěiyuánhuì). A primeira medida substituiu o sistema de agricultura coletiva implementado durante o processo de reforma agrária, nos anos 1950, e passou a permitir a contratação de terras por unidades familiares, visando maior autonomia sobre sua produção agrícola, o que estabeleceu as bases para uma economia de mercado nas áreas rurais. Por sua vez, a segunda medida buscou reconstruir as comunidades por meios do autogoverno dos povoados. No entanto, os resultados de cada uma das medidas foram significativamente distintos.

Por um lado, a contratação de terra e a produção familiar progrediram continuamente, com a individualização dos agricultores sendo impulsionada pela economia de mercado, assim como a maior autonomia e mobilidade social dos moradores dos povoados. Por outro lado, os comitês de povoado encontraram inúmeras dificuldades. Esses comitês foram criados para proteger os moradores, mas em meio à desintegração das comunidades, em muitas áreas, as lideranças locais deixaram de atuar como organizadores do povoado, ou tiraram proveito de sua posição para assegurar benefícios privados. O número de organizações de povoado capazes de estabelecer liderança diminuiu significativamente, e os moradores, em geral, não tinham formas de responsabilizar os servidores públicos. Ao mesmo tempo, estes também enfrentavam dificuldades para atender aos moradores e implementar, com eficácia, as políticas governamentais destinadas a beneficiar os agricultores no âmbito comunitário.

Ao mesmo tempo em que as pequenas comunidades se enfraqueceram, a efetividade da governança rural do Estado também diminuiu nas três décadas que seguiram a reforma rural, alcançando seu patamar mais baixo em princípios do século XXI. Em 2006, a revogação da cobrança do imposto agrícola marcou o início da política “indústria estimula a agricultura, cidades apoiam o campo” (工业反哺农业、城市反哺农村, gōngyè fǎnbǔ nóngyè, chéngshì fǎnbǔ nóngcūn). O objetivo foi direcionar mais recursos dos centros urbanos para as áreas rurais para promover seu desenvolvimento e infraestrutura, assim como para ampliar o bem estar social, por meio de diversas proteções, subsídios e fundos para indivíduos e comunidades rurais. Na prática, entretanto, o Estado enfrentava dificuldades para concretizar esses objetivos. Embora a transferência de recursos do governo central para as áreas afetadas pela pobreza tenha aumentado, o Estado teve dificuldades para definir objetivos políticos claros e para desenvolver mecanismos efetivos para alocar os recursos para as populações-alvo da política.[3] Por exemplo, os subsídios voltados ao incentivo à produção de grãos tiveram um impacto limitado no entusiasmo dos agricultores, porque o governo central teve dificuldades para definir quem eram os agricultores produtores de grãos, e concedeu subsídios de acordo apenas com o tamanho da área contratada pelos agricultores. De modo semelhante, o sistema de auxílio de subsistência rural, que pretendia garantir as necessidades básicas das famílias de baixa renda, se deparou com vários obstáculos, incluindo dificuldades na coleta de dados sobre a renda familiar e a identificação das famílias elegíveis, junto com a corrupção como a oferta de tratamento preferencial aos familiares e amigos dos servidores rurais e, até mesmo, o uso do auxílio como instrumento de barganha contra os agricultores. Como resultado, o auxílio de subsistência rural não foi eficiente, uma vez que não foi direcionado aos que mais necessitavam. Em resumo, era difícil para o Estado concretizar suas metas de bem-estar e desenvolvimento rural pelo sistema administrativo vigente à época.

A alocação de recursos para a redução da pobreza deveria ter sido guiada pela precisão e justiça, mas, na prática, foi influenciada por muitos outros fatores. O governo central focou em prover apoio para as áreas afetadas pela pobreza, concedendo fundos especiais de redução da pobreza para as áreas adjacentes aos condados, povoados e domicílios designados como os principais focos afetados pela pobreza. Seguindo o Programa Prioritário de Redução da Pobreza em Sete Anos, que buscou tirar 80 milhões de pessoas da pobreza absoluta, entre 1994 e 2000, os recursos para a redução da pobreza eram canalizados, principalmente, para as principais localidades afetadas pela pobreza. O efeito colateral disso foi que os condados rurais competiam entre si para serem classificados como “afetados pela pobreza”, um fenômeno conhecido na China como “a luta para vestir o ‘chapéu da pobreza’” (争戴贫困帽子, zhēng dài pínkùn màozi). Alguns governos de condado chegaram a comemorar sua entrada na lista de condados afetados pela pobreza. Infelizmente, era frequente que a classificação de condados ou povoados afetados pela pobreza não tivesse como referência a baixa renda ou pouco desenvolvimento, mas também fosse influenciada pelas pressões de vários grupos de interesse, por vezes rivais entre si. Com tantos grupos de interesse disputando recursos, era difícil concretizar, efetivamente, as metas de redução da pobreza.

Ao completar a primeira década do plano para a redução da pobreza, de 2001 a 2010, a abordagem do governo central mudou. A linha da pobreza foi significativamente elevada, primeiro em 2010 e, depois, novamente em 2013, assim como foi estabelecido um cronograma para erradicar a pobreza absoluta e completar a construção de uma sociedade moderadamente próspera em todos os sentidos, até 2020.[4] Sob esse novo padrão, o escopo da redução da pobreza foi expandido, já que a população considerada empobrecida cresceu mais de cinco vezes, passando de menos de 30 milhões de pessoas para 160 milhões. A incidência de pobreza rural também cresceu, de menos de 3% para mais de 17% da população, e o número de condados atingidos pela pobreza cresceu para 832. Além disso, o padrão qualitativo para a redução da pobreza também foi elevado, visando, assim, “dois seguros e três garantias” (两不愁三保障, liǎng bù chóu sān bǎozhàng), o que significa que, para 2020, as pessoas pobres rurais teriam alimentação e vestimenta asseguradas, assim como lhes seria garantido o acesso ao sistema de educação pública, aos serviços básicos de saúde e à moradia segura, incluindo água corrente e eletricidade. Algumas localidades também desenvolveram garantias específicas baseadas nas condições locais, como, por exemplo, a garantia de acesso à água potável em regiões áridas.

Para tirar um número tão grande de pessoas da pobreza em um curto período de tempo, o Estado teve que aumentar significativamente o montante de recursos investidos nessa tarefa. De 2015 a 2020, o financiamento do governo central para a redução da pobreza cresceu, em média, 20 bilhões de yuan (aproximadamente 13,6 bilhões de reais) ao ano. A diversificação de tipos de fundos para a redução da pobreza foi ainda mais importante, incluindo fundos integrados, fundos sociais e diversos instrumentos financeiros. O montante total de recursos investidos pelo Estado na redução da pobreza não tem precedentes, embora tenha gerado novos desafios para a governança rural. Alcançar os objetivos de redução da pobreza foi muito mais complexo e difícil do que meramente aumentar a renda da população, e exigiu mudanças fundamentais no sistema da governança rural em regiões pobres.

A governança rural durante a campanha de redução direcionada da pobreza

Em 2013, o secretário geral do Partido Comunista da China (PCCh), Xi Jinping, propôs o conceito de redução direcionada da pobreza. Pouco depois, em 2015, ele detalhou que esta política exigia precisão nas seguintes áreas: primeiro, na identificação dos pobres, assegurando a chegada do apoio àqueles que, de fato, necessitam. Segundo, no alinhamento dos projetos e auxílios às necessidades das pessoas pobres. Terceiro, na provisão e uso de recursos. Quarto, na implementação de medidas apropriadas a cada família. Quinto, no envio de quadros do partido para implementar as medidas de redução da pobreza em cada povoado. Sexto, nas avaliações sobre o alcance das metas estabelecidas para a redução da pobreza.

Para assegurar que a redução direcionada da pobreza fosse bem sucedida, algumas mudanças fundamentais tiveram que ser feitas no sistema vigente de governança rural. Entre elas, a criação de um novo sistema para coleta e análise de dados, com mais transparência para camponeses e moradores dos povoados. Além disso, foi estabelecido um mecanismo de atuação direta do Estado nos povoados, com um grande número de servidores destacados para se envolver no cotidiano da governança dos povoados. Finalmente, a institucionalização de mecanismos para a participação da população dos povoados nos assuntos públicos. Essas mudanças aprimoraram a governança estatal e a provisão de bem-estar social nas áreas rurais.

A estratégia de redução direcionada da pobreza depende da qualidade da coleta de dados. A partir de 2014, foram realizadas pesquisas detalhadas para identificar cada família pobre, as causas específicas que a levou à pobreza, e as medidas específicas a serem implementadas para a redução da pobreza. As informações reunidas foram usadas para gerar um banco de dados eletrônico com arquivos sobre cada família, povoado, condado e região em situação de pobreza por todo o país. As famílias pobres foram registradas individualmente no banco de dados e receberam um manual de redução da pobreza, contendo um resumo de suas condições básicas e das causas de sua pobreza, seu plano de redução da pobreza e as informações de contato do funcionário responsável por sua família. O governo central já havia tentado desenvolver um sistema de registro da redução da pobreza, incluindo um programa teste em oito províncias, em 2005. No entanto, estes esforços não foram bem sucedidos devido às limitações de recursos humanos e materiais, e à pouca capacidade analítica do Estado. A mobilização administrativa de larga escala para a redução direcionada da pobreza permitiu que essa tarefa fosse, finalmente, concluída.

O sistema de registro eletrônico aperfeiçoou os esforços da China para a redução da pobreza em duas formas. Em primeiro lugar, a identificação mais precisa de famílias e povoados pobres permitiu que os recursos fossem melhor direcionados a quem necessitava e que as medidas fossem especificamente direcionadas às suas necessidades. Em segundo lugar, os dados coletados proporcionaram ao governo central um retrato mais atualizado das condições no âmbito de cada comunidade e, consequentemente, uma compreensão melhor das áreas rurais, apoiando seus processos decisórios, a formulação de políticas específicas e a avaliação dos esforços de redução da pobreza.

Alguns críticos argumentam que a digitalização da gestão da redução da pobreza provocou uma cisão entre as questões concretas da vida dos povoados e a governança no nível comunitário.[5] Além disso, como os processos decisórios do governo central dependiam em grande medida dos dados, os trabalhadores que atuavam pela redução da pobreza no nível comunitário dedicavam muito tempo às atividades administrativas relacionadas à coleta de dados, como preencher formulários. Isso lhes tirava o foco em seu trabalho efetivo de combate à pobreza e, em algumas regiões, resultou em um formalismo excessivo. Diante disso, o governo central adotou diretrizes para reduzir a coleta de dados desnecessários.

Entretanto, conforme a campanha de redução direcionada da pobreza progredia, o processo de coleta de dados, a qualidade dos dados obtidos e a implementação da governança baseada em dados foram aprimorados. Primeiro, ao implementar processos de revisão para verificar os dados após sua coleta, estes se tornaram gradualmente mais precisos e objetivos. Em segundo lugar, a dinâmica de atualização dos dados também aprimorou a qualidade da informação. O objetivo do sistema de registro era verificar as estimativas das estatísticas gerais sobre o número de famílias pobres pela investigação empírica. Conforme a redução direcionada da pobreza progredia, o número de famílias pobres decrescia, as estimativas estatísticas tornavam-se menos confiáveis e aumentava a importância de dados confiáveis sobre cada família. Desde 2017, o banco de dados do registro da redução da pobreza não é mais limitado pelas estimativas estatísticas gerais, e tem sido ajustado de forma dinâmica, a partir do conhecimento empírico em cada localidade. Em terceiro lugar, o sistema de registro da redução da pobreza estabeleceu as bases para a governança rural baseada em dados. Indo além, na medida em que os governos locais adquiriram experiência na coleta de dados e se tornaram capazes de integrar os dados de diferentes níveis e departamentos governamentais, os dados irão desempenhar um papel cada vez mais importante na governança rural.

A governança baseada em dados aumentou a transparência pública nas áreas rurais, mas, por si só, não foi suficiente para aumentar a efetividade da redução direcionada da pobreza. Ela foi apoiada por uma mudança nas prioridades dos governos locais e uma maior distribuição de recursos para o nível local. Após a reforma rural da década de 1980, que estimulou o rápido desenvolvimento econômico da China, os governos locais priorizaram a eficiência econômica e concentraram seus recursos em setores de desenvolvimento rápido. Ao mesmo tempo, o governo central priorizou o desenvolvimento de áreas urbanas e, em geral, concentrou-se na maximização do Produto Interno Bruto (PIB).

A campanha de redução direcionada da pobreza buscou reorientar as prioridades governamentais, tanto no nível central como no local, posicionando a erradicação da pobreza em regiões pobres no topo da agenda. De cima para baixo, os governos locais e os dirigentes do PCCh foram orientados a assumir a redução da pobreza como sua principal tarefa, o que levou a uma mudança nos objetivos, na alocação de recursos e no trabalho dos governos locais e dos comitês do partido. Com a redução da pobreza elevada à primeira prioridade nas áreas pobres, o desenvolvimento econômico tinha que servir a esta finalidade, ao invés de buscar tão somente o crescimento.

Junto com essa repriorização, o governo central ampliou a distribuição de recursos para os níveis inferiores de governo. Esses recursos não apenas incluíam fundos e insumos, como também, e mais importante, recursos humanos. Foi preciso uma enorme quantidade de pessoas para enfrentar a frágil organização administrativa de povoados pobres e promover a redução direcionada da pobreza, já que as instituições locais tradicionais não tinham capacidade para distribuir grandes quantias de recursos às famílias e povoados, nem para implementar os novos métodos de governança associados à campanha. As organizações de povoado nas regiões pobres tinham carência de pessoal, muitas vezes com três servidores no máximo e, portanto, eram incapazes de gerenciar grandes quantidades de recursos ou de administrar procedimentos complexos. Da mesma forma, essas organizações tinham um nível de conhecimento muito baixo, e ficavam sobrecarregadas com o aparecimento de novos conceitos, métodos e processos tecnológicos para a redução da pobreza, como a coleta de dados em larga escala sobre famílias pobres e a seleção de indústrias e mercados nos quais investir. Além disso, a maioria dos funcionários estava imersa nas relações sociais de suas comunidades, resultando em distorções prejudiciais à tomada de decisões objetivas. Assim, era necessário apoio externo para distribuir, de forma justa, as grandes quantidades de recursos para a redução da pobreza que os povoados pobres recebiam do governo central.

O PCCh enviou equipes de trabalho residentes (驻村工作队, zhù cūn gōngzuò duì) e primeiros-secretários do partido para apoiar os povoados pobres, como estratégia para enfrentar a escassez de recursos humanos, melhorar a capacidade administrativa nos níveis mais baixos e fortalecer a governança rural. Desde 2013, mais de três milhões de servidores dos níveis superiores de governo, empresas estatais e outras instituições públicas foram enviados para viver nos povoados e trabalhar para a redução direcionada da pobreza por, pelo menos, dois anos, como parte de 255 mil equipes residentes.[6] Alguns pesquisadores questionam o impacto dessas equipes de trabalho residentes, argumentando que elas não possuíam conhecimento suficiente sobre as situações locais, nem experiência com produção agrícola, além de terem enfrentado resistência das autoridades locais. No entanto, de forma geral, as pesquisas indicam que as equipes de trabalho residentes levaram mais recursos para a redução da pobreza nas áreas rurais, e gradualmente desempenharam um papel decisivo nos esforços de redução direcionada da pobreza.[7]

O envio de equipes de trabalho residentes aos vilarejos rurais como parte da redução direcionada da pobreza foi uma continuação da política de compartilhamento da assistência (对口帮扶, duìkǒu bang fú), na qual os níveis inferiores de governo apoiam uns aos outros. Ao invés de serem encarregadas apenas da tarefa de prover assistência, as equipes de trabalho residentes tiveram a responsabilidade de concretizar a redução da pobreza em seus vilarejos, o que incluiu a administração de recursos de redução da pobreza, a visita às famílias pobres, a realização dos registros e da coleta de dados, e a implementação de medidas de combate a pobreza.

Em geral, as equipes residentes deveriam ficar nos vilarejos sob sua responsabilidade por mais de 20 dias a cada mês para, assim, participarem de todo o processo de redução da pobreza. Em 2015, para lidar com as dificuldades iniciais enfrentadas pelas equipes residentes na implementação das medidas de redução da pobreza, o PCCh começou a responsabilizar os primeiros secretários do partido, na maioria dos vilarejos pobres, pela função de direção da equipe residente em seus vilarejos. Essa medida solucionou a dificuldade institucional de integrar as equipes de trabalho residentes na tomada de decisões do vilarejo. Melhorar a governança social dos vilarejos tornou-se uma responsabilidade fundamental dos primeiros secretários do partido, talvez até mais importante do que seu dever de promover o desenvolvimento econômico local.[8]

O movimento de envio massivo de quadros para os povoados afetados pela pobreza exemplifica o modelo de campanha da governança adotada na redução direcionada da pobreza. Embora as equipes de trabalho residentes fossem diferentes em termos de trabalho, métodos e envolvimento nos assuntos do povoado, a partir de uma perspectiva institucional mais ampla, é possível afirmar que, por meio desse mecanismo, o Estado pôde influenciar diretamente os modos de governar no nível do povoado. Assim, a redução direcionada da pobreza não consistiu apenas na canalização de recursos do governo central para as áreas rurais, mas foi uma extensão do poder estatal aos povoados. Da identificação de famílias pobres à definição dos padrões de redução da pobreza, uma série de medidas formuladas pelo Estado foram implementadas em nível local.

Junto com o maior envolvimento do Estado na administração local, também foi dada maior ênfase à participação dos moradores dos povoados. Em teoria, o autogoverno dos povoados é a base das comunidades rurais, desde o estabelecimento dos comitês de povoado, eleito e supervisionado pelos habitantes, nos anos 1980, à promoção pelo governo central da participação da comunidade na redução da pobreza, nos anos 1990. Na prática, embora os governos dos povoados sejam baseados no sistema de uma pessoa, um voto, as decisões políticas geralmente eram permeadas e influenciadas pelos interesses das famílias, grupos de interesse e outros poderes. Além disso, devido à deterioração das comunidades rurais, assim como à falta de recursos e de ambiente social favorável, era difícil promover e salvaguardar a democracia entre os povoados. Assim, no passado, a participação pública na redução da pobreza era pouco mais que uma formalidade.

A redução direcionada da pobreza fortaleceu as vozes dos moradores dos povoados, especialmente daqueles de famílias pobres. Em primeiro lugar, aumentou a transparência e a abertura pública para a participação dos moradores, especialmente na identificação das famílias afetadas pela pobreza e na avaliação dos esforços de redução da pobreza. As famílias identificadas como pobres recebiam mais recursos para redução da pobreza. Embora isso tenha provocado disputas entre os moradores, especialmente quando as diferenças de renda não eram nítidas, a transparência pública comprovou ser uma solução efetiva para esses conflitos. Na estratégia de redução direcionada da pobreza, a confirmação de famílias pobres exigia um anúncio público e estava sujeita a aprovação dos moradores do vilarejo. A satisfação da população também era um fator importante na avaliação dos esforços pela redução da pobreza. Nisso, a participação da população não era abstrata, mas tinha forma e escopo precisos, incentivando maiores níveis de participação.

Em segundo lugar, e mais importante, a fiscalização estrita de cima para baixo dos esforços de redução da pobreza criaram canais para que as opiniões dos moradores chegassem a níveis superiores de governos, promovendo a prestação de contas pela pressão dos funcionários de maiores escalões sobre os funcionários dos níveis inferiores, garantindo um mecanismo de participação dos moradores dos povoados que se diferenciava das concepções e modelos tradicionais. Na estratégia de redução direcionada da pobreza, a participação da população e a autoridade centralizada se reforçaram mutuamente. A autoridade centralizada fortalecia a voz e a participação dos habitantes por meio da pressão aplicada nos servidores locais, enquanto a participação dos habitantes dos povoados permitia que o governo central avaliasse os funcionários locais, assegurando que a consecução de seus objetivos fosse buscada nas comunidades.

Em última instância, a redução direcionada da pobreza estabeleceu um novo mecanismo de governança em áreas rurais afetadas pela pobreza, diminuindo a distância entre os formuladores de políticas públicas e os beneficiários das políticas de redução da pobreza. Esse mecanismo fez com que o governo central ficasse mais bem informado sobre as condições das comunidades e, por meio da pressão de cima para baixo, aumentasse a participação dos moradores, fazendo com que as políticas governamentais fossem mais bem traduzidas em ações e resultados na base.

O potencial para mudanças permanentes da governança rural

Desenvolvido na campanha de redução direcionada da pobreza, o novo mecanismo de governança rural desempenhou um papel crucial na erradicação da extrema pobreza no final de 2020, e, efetivamente, enfrentou antigas questões políticas das áreas rurais. Entretanto, se tais mudanças poderão ser reproduzidas nos períodos regulares de governo, tendo um impacto duradouro nas áreas rurais, dependerá da capacidade de adaptação deste mecanismo às circunstâncias em constante mudança. Três fatores principais indicam que as mudanças estruturais na governança rural serão duradouras.

Primeiro, a distribuição dos recursos administrativos nacionais aos níveis inferiores de governo é uma das principais tendências que irão permanecer após o fim da campanha de redução direcionada da pobreza. Antes da campanha, o conjunto de talentos locais e estruturas institucionais na maioria dos povoados eram insuficientes para apoiar o desenvolvimento de longo prazo, e os povoados não tinham capacidade de administrar o fluxo de recursos direcionados para a redução da pobreza. Nos últimos anos, a provisão estatal de recursos administrativos para as áreas rurais fortaleceu as instituições de nível local, apoiou o retorno de talentos rurais das cidades para suas comunidades, incentivou a participação de moradores destacados dos povoados a participarem da governança rural e desenvolveu economias coletivas rurais para apoiar os povoados a manterem seus talentos em desenvolvimento e atrair de volta os que estavam nas cidades. Entretanto, a China ainda está em um processo de rápida urbanização. A população rural continuará a migrar para as cidades, e o retorno dos talentos às áreas rurais está apenas começando. Nesse contexto, a distribuição de recursos administrativos para níveis inferiores é indispensável para manter a ordem social rural e realizar uma governança rural eficaz.

Em segundo lugar, o Estado irá desempenhar um papel cada vez mais importante nas áreas rurais, em termos de construção de infraestrutura e provisão de bens públicos. Durante a campanha de redução direcionada da pobreza, o Estado concentrou seu apoio principalmente nas áreas rurais afetadas pela pobreza. Agora, como parte da estratégia mais ampla de revitalização rural, mais áreas rurais se beneficiarão dos recursos do Estado. Nesse processo, a transparência pública em relação às famílias e aos povoados beneficiários continuará sendo importante para evitar disputas e impedir que a distribuição de recursos seja influenciada por disputas locais pelo poder. Dessa forma, será preciso que o Estado se baseie no banco de dados de registro de redução da pobreza e desenvolva um sistema geral de informações. Para identificar a população que vive em situação de pobreza relativa, por exemplo, são necessárias informações sobre as famílias pobres e não pobres, pois a pobreza relativa só pode ser definida por meio de uma comparação abrangente da população rural. Em resumo, à medida que o Estado investe mais recursos em áreas rurais, ele precisará e dependerá cada vez mais de sistemas de informação.

Em terceiro lugar, o desenvolvimento rural se concentra nas áreas onde há altos níveis de participação dos moradores em assuntos públicos. No contexto de grande migração de jovens talentos para as cidades e do envelhecimento da população, as comunidades rurais têm sido esvaziadas. Portanto, são necessárias fortes garantias institucionais para assegurar a participação dos moradores. O mecanismo para a participação da população na redução da pobreza foi baseado em uma maior transparência pública nos assuntos rurais, na criação de um canal eficaz de comunicação das bases para as autoridades de alto nível e na prestação de contas e avaliação rigorosa dos administradores rurais. Dessa forma, a participação de baixo para cima foi garantida pelo apoio de cima para baixo, mesmo que esse processo fosse diferente dos modos tradicionais de autogoverno dos moradores. Atualmente, o objetivo não é recriar os sistemas tradicionais de governança dos vilarejos, mas desenvolver mecanismos de participação que facilitem a distribuição eficaz dos recursos do Estado para as áreas rurais. Assim, a participação não deve se limitar à concessão de direitos formais à população. O mais importante é que haja garantias institucionais concretas para assegurar que os moradores dos vilarejos possam participar e, de fato, participem.

Os mecanismos de governo da campanha de redução direcionada da pobreza provocaram importantes mudanças na governança rural, mas estes não podem ser simplesmente reproduzidos no futuro, em períodos normais de governo. Depois de concluídas e bem sucedidas as tarefas da redução direcionada da pobreza, algumas localidades previamente afetadas pela pobreza tentaram adaptar os mecanismos de governo da campanha – em particular, o programa de equipes de trabalho residentes – aos seus sistemas tradicionais de governo. No entanto, tais esforços encontraram duas dificuldades principais.

A primeira dificuldade é o alto custo de medidas de governo no modelo de campanha. Por exemplo, para preencher o sistema de registro da redução da pobreza e garantir sua alta qualidade, mais de dois milhões de técnicos foram mobilizados durante oito meses de trabalho, apenas para a revisão de dados. Por sua vez, o programa de equipes de trabalho residentes demandava o remanejamento de mais de três milhões de servidores públicos para trabalhar em tempo integral nos povoados. Isso não apenas implicou em altos custos em termos de subsídios, treinamento, supervisão e construção de alojamentos, como também em termos de interrupções em outras instituições governamentais, que tiveram que assumir responsabilidades adicionais na redução da pobreza. Além disso, o rodízio das equipes de trabalho residentes entre diferentes povoados dificultou a continuidade do trabalho e o acúmulo de experiência e conhecimento local pelos servidores. Tanto da perspectiva dos recursos financeiros como dos recursos humanos, os mecanismos de governança da redução direcionada da pobreza significaram custos extraordinários, que não podem ser estendidos aos períodos regulares de governos.

A segunda dificuldade se refere aos baixos níveis de institucionalização dos mecanismos de governança da redução direcionada da pobreza. A governança no modelo de campanha tem um único objetivo como foco, adotando métodos diversos e, por vezes, extraordinários para alcançá-lo. Alguns destes métodos podem ser insustentáveis e, ainda, podem resultar em desequilíbrios e injustiças. Durante a campanha da redução direcionada da pobreza, esta era a tarefa central nas regiões pobres, com o investimento de um montante significativo de recursos materiais e humanos para o cumprimento das metas e a correção de fragilidades. Uma consequência inevitável disso foi o negligenciamento de tarefas que não se enquadravam nesse objetivo. Por exemplo, seguindo os registros da redução da pobreza, os recursos eram concentrados nas famílias pobres e, por vezes, as necessidades de outros agricultores foram negligenciadas. Em alguns casos, as famílias pobres eram realocadas para situações nas quais teriam uma renda estável e, não apenas teriam acesso à moradia, como também imóveis para estabelecer pequenos negócios, dando-lhes mais ativos que, em geral, um agricultor médio tem acesso. As medidas temporárias e de curto prazo empregadas nessa campanha são difíceis de serem reproduzidas em períodos ordinários devido à carência de institucionalização.

Para continuar promovendo os padrões adequados das condições de vida e o desenvolvimento equilibrado como parte da revitalização rural, os mecanismos de governança e as medidas extraordinárias da redução direcionada da pobreza devem ser adaptadas de forma apropriada aos modos permanentes de governo. Nesse processo de adaptação, é necessário institucionalizar o sistema de informação rural, a distribuição de recursos administrativos para as áreas rurais e a participação dos moradores, de modo a reduzir os custos operacionais, mantendo suas características vantajosas.

Primeiro, é preciso regularizar e institucionalizar a coleta e análise de dados nas áreas rurais. Nos anos 1950, o governo central estabeleceu um sistema de gestão econômica da agricultura que coletou e agregou os dados rurais por décadas. Porém, esses dados não eram objetivos o suficiente, e foram finalmente substituídos por pesquisas de amostragem estatística. Embora a amostragem estatística possa apoiar os processos decisórios no nível macro de governo, esta metodologia não é adequada para o nível micro. Nos marcos do registro da redução da pobreza, os sistemas de informação de diversos departamentos governamentais, tais como assuntos civis, segurança pública e finanças, podem ser integrados para estabelecer uma rede unificada de informação rural, sistematizando, assim, a governança rural baseada em dados.

Segundo, é preciso institucionalizar a distribuição dos recursos administrativos aos níveis locais. O Estado deve continuar provendo os recursos humanos e financeiros para apoiar a governança rural, incluindo a incorporação do serviço rural às responsabilidades dos servidores civis nacionais. Atualmente, o governo central distribui os recursos administrativos aos níveis locais de governo de diferentes formas, sendo a baocun (包村, bāo cūn) a mais comum. Trata-se de um sistema de designação de funcionários municipais como responsáveis por assessorar o desenvolvimento econômico e social de povoados específicos, assim como foi o envio de primeiros secretários do partido e das equipes de trabalho residentes para povoados pobres nos marcos da redução direcionada da pobreza. A combinação dessas duas medidas o baocun e as equipes de trabalho residentes poderia criar um sistema sustentável de administração dos vilarejos e promover mudanças de longo prazo na estrutura de governança rural.

Não se deve reduzir a compreensão sobre os sistemas administrativos dos povoados apenas aos servidores e organizações existentes no nível local. Ele deve ser visto de forma mais ampla, como a extensão do sistema administrativo nacional aos povoados rurais. Portanto, os rodízios na governança dos vilarejos devem ser sistematicamente incorporados às responsabilidades dos funcionários de nível superior e dos servidores públicos, mas de uma maneira sustentável e que não sobrecarregue as instituições.

Terceiro, é preciso institucionalizar a participação dos moradores nos povoados. Os comitês de povoados devem ser fortalecidos como instituições de autogoverno e como meios para a participação dos moradores nas questões públicas e nos processos democráticos de tomada de decisão. Por um lado, a burocratização dos comitês de povoados deve ser revertida, para que eles possam estar mais próximos ao povo, não sendo meramente extensões do governo central. Por outro lado, é preciso fortalecer o papel de supervisão dos comitês e sua coordenação com as autoridades administrativas de nível local, para que possam se tornar organizações do povo.

A redução direcionada da pobreza trouxe inovações ao modelo de governança rural da China como mobilização social, campanha e experiência significativas. Seu impacto duradouro dependerá não apenas das mudanças já ocorridas, mas também de como tais mudanças poderão ser adaptadas e institucionalizadas no futuro da governança rural.

Referências bibliográficas

Ji Shao; Li Xiaoliang. “Um estudo sobre as mudanças na renda da população rural nos últimos 70 anos: uma perspectiva de reforma e inovação institucional” [建国70年来我国农村居民收入变化研究——体制改革、制度创新视角], Pesquisa sobre assuntos econômicos [经济问题探索], n. 11, 2019, p. 180-190.

Departamento de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China. Poverty Alleviation: China’s Experience and Contribution. Beijing: Foreign Languages Press, 2021.

Wang Yulei. “Digitalização no campo: Governança baseada em tecnologia na redução direcionada da pobreza rural” [数字下乡:农村精准扶贫中的技术治理], Estudos sociológicos [社会学研究], n. 6, 2016, p. 119-142.

Wei Chenglin; Zhao Xiaofeng. “Governança regular, governança no modelo de campanha e o programa de redução direcionada da pobreza” [常规治理、运动式治理与中国扶贫实践], Revista da Universidade Agrícola da China (Edição Ciências Sociais) [中国农业大学学报(社会科学版)] 35, n. 5, 2018, p. 58-69.

Xie Yumei; Yang Yang; Liu Zhen. “Integração direcionada: seleção, operação e prática dos primeiros secretários nas equipes de trabalho residentes em povoados pobres” [精准嵌入:“第一书记”驻村帮扶选派、运行与实践], Revista da Universidade de Jiangnan (Humanidades e Ciências Sociais) [江南大学学报(人文社会科学版)], n. 2, 2019, p. 29-36.

Xu Hanze; Li Xiaoyun. “Sobre a dimensão prática das equipes de trabalho residentes e suas consequências no contexto da redução direcionada da pobreza” [精准扶贫背景下驻村机制的实践困境及其后果], Revista da Universidade Jiangxi de Economia e Finanças [江西财经大学学报], n. 3, 2017, p. 82-89.

Notas do autor

1. Wei Chenglin; Zhao Xiaofeng. “Governança regular, governança com modelo de campanha e o programa de redução direcionada da pobreza” [常规治理、运动式治理与中国扶贫实践], Revista da Universidade Agrícola da China (Edição Ciências Sociais) [中国农业大学学报(社会科学版)] 35, n. 5, 2018.

2. Durante muitos séculos a China cobrou um imposto agrícola, que foi a fonte mais importante de receita fiscal do país. Tal imposto remonta à dinastia Zhou (周朝, 1046-256 AEC), há cerca de 2.600 anos. À medida que a China desenvolveu sua indústria e comércio, passou a depender menos do imposto agrícola para obter receita e, em 2006, ele foi completamente eliminado, criando um vácuo na presença do governo no campo.

3. Ji Shao; Li Xiaoliang. “Um estudo sobre as mudanças na renda da população rural nos últimos 70 anos: uma perspectiva de reforma e inovação institucional” [建国70年来我国农村居民收入变化研究——体制改革、制度创新视角], Pesquisa sobre assuntos econômicos [经济问题探索], n. 11, 2019.

4. Em 2010, a China quase dobrou o valor da sua linha de pobreza nacional, de 1.196 yuans por ano (valores de 2008) para 2.300 yuans por ano (valores de 2010). Em 2013, com o início da campanha de redução direcionada da pobreza, a China aumentou sua linha de pobreza para 4.000 yuans por ano (valores de 2013).

5. Wang Yulei. “Digitalização no campo: Governança baseada em tecnologia na redução direcionada da pobreza rural” [数字下乡:农村精准扶贫中的技术治理], Estudos sociológicos [社会学研究], n. 6, 2016.

6. Departamento de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China. Poverty Alleviation: China’s Experience and Contribution. Beijing: Foreign Languages Press, 2021.

7. Para uma avaliação mais crítica das equipes de trabalho residentes, ver Xu Hanze; Li Xiaoyun. “Sobre a dimensão prática das equipes de trabalho residentes e suas consequências no contexto da redução direcionada da pobreza” [精准扶贫背景下驻村机制的实践困境及其后果], Revista da Universidade Jiangxi de Economia e Finanças [江西财经大学学报], n. 3, 2017. Sobre a integração e liderança das equipes de trabalho residentes no campo, ver Xie Yumei; Yang Yang; Liu Zhen. “Integração direcionada: seleção, operação e prática dos primeiros secretários nas equipes de trabalho residentes em povoados pobres” [精准嵌入:“第一书记”驻村帮扶选派、运行与实践], Revista da Universidade de Jiangnan (Humanidades e Ciências Sociais) [江南大学学报(人文社会科学版)], n. 2, 2019.

8. Os primeiros secretários do partido desempenharam um papel importante na governança dos povoados durante a campanha de redução direcionada da pobreza, embora suas tarefas específicas tenham variado regionalmente. Na província de Shandong, por exemplo, eles tinham três responsabilidades principais: redução da pobreza, contato com o público e construção rural do partido. Por sua vez, na província de Guizhou, as responsabilidades dos primeiros secretários eram divididas em seis categorias: apoiar as organizações comunitárias a construir infraestrutura, formação de talentos locais, promover indústrias locais, fortalecer economias coletivas, aprimorar mecanismos de gestão e solucionar conflitos.

A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária alternativa na era pós-revolucionária da China | 27.06.2023

China 2098: Seção Tarim Hunan – Estação de bombeamento de Ruoqiang (中国2098: 塔里木湖南段——若羌泵站), 2019-2022. Crédito: Fan Wennan.


A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária alternativa na era pós-revolucionária da China

Li Xiaoyun

Yang Chengxue

Li Xiaoyun (李小云) é um ilustre professor da Escola de Humanidades e Estudos do Desenvolvimento, e diretor honorário no Instituto da China para a Cooperação Sul-Sul em Agricultura e da Escola de Desenvolvimento Internacional e Agricultura Global, na Universidade Agrícola da China. Sua pesquisa foca na pobreza, desenvolvimento rural e desenvolvimento internacional.

Yang Chengxue (杨程雪) é doutoranda na Escola de Humanidades e Estudos do Desenvolvimento na Universidade Agrícola da China. Sua pesquisa de doutorado tem como foco questões de gênero na China rural e a participação das mulheres na governança rural.

“A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária na era pós-revolucionária da China” (脱贫攻坚:后革命时代的另类革命实践) foi publicado originalmente na edição nº 3 da Wenhua Zongheng (文化纵横), em junho de 2020.

O fim de uma era de revolução radical não significa que a revolução seja relegada à memória. Com a expansão contínua da globalização, os países governados por partidos revolucionários enfrentam o desafio de concluir missões revolucionárias inacabadas. No atual período, o Partido Comunista da China (PCCh) tem destacado a importância de “permanecer fiel à nossa aspiração original e à nossa missão fundacional” (不忘初心, 牢记使命, bùwàng chūxīn, láojì shǐmìng). Este não é um mero aceno retórico ao passado, mas uma base ideológica para que a ação concreta do partido mantenha seu caráter revolucionário no novo contexto econômico e social.[1] A redução da pobreza tem sido o foco principal dessa ação concreta.

Desde 2012, a redução da pobreza tornou-se uma tarefa central para todo o partido e a sociedade, com o secretário geral do partido sendo pessoalmente responsável pelo seu cumprimento. A estratégia do partido para a redução da pobreza evoluiu de uma abordagem convencional técnico-burocrática para a “batalha contra a pobreza” (扶贫攻坚, fúpín gōngjiān), focada em instituições de governança inovadoras para promover a transformação econômica e social. Atualmente, a redução da pobreza ganhou um novo peso no ambiente político e econômico do país. A abordagem da batalha contra a pobreza incorporou a linguagem e os lemas revolucionários, atribuindo um senso de importância e sacralidade a essa questão social.

Por exemplo, a pobreza tem sido tratada como o “inimigo”, a redução da pobreza como o “campo de batalha” e a luta contra a pobreza como a “batalha árdua”. Reuniões de mobilização declararam uma “guerra contra a pobreza” e celebraram as vitórias na “batalha”. Uma multidão de jovens quadros foi enviada para o “campo de batalha”, e aqueles que sucumbiram nesta “batalha” foram saudados como “heróis que morreram no campo de batalha”. A “revolução” da redução da pobreza não foi apenas um movimento de massa ou uma mobilização social na era pós-revolucionária. Em vez disso, foi uma resposta política e simbólica às crescentes desigualdades que emergiram no processo de reforma e abertura da China – desigualdades que contradizem a filosofia básica do PCCh. Em outras palavras, na era pós-revolucionária, o PCCh retornou, de certa forma, à sua agenda revolucionária histórica, abordando o dilema nacional e global da distribuição da riqueza social. Isso reflete uma nova fase da governança do PCCh, que busca se consolidar e “permanecer fiel à sua aspiração original e missão fundacional” no caminho da modernização nacional.

É evidente que o discurso revolucionário da campanha de redução da pobreza é metafórico. Se os inimigos de classe já não existem, é hora de dizer adeus à revolução. Mas, se a pobreza que a revolução prometeu eliminar continua presente, um “inimigo” da revolução persiste e, portanto, uma tarefa essencial da revolução permanece inacabada. Nessa batalha, o PCCh tem redistribuído continuamente recursos sócio-econômicos direcionados à redução da pobreza, utilizando os meios políticos e institucionais a seu dispôr e transcendendo os entraves dos grupos sociais de interesse e da burocracia existente. Essa mobilização de recursos é, sem dúvidas, a mais intensa e poderosa da história da China. A capacidade do PCCh de regular o padrão de distribuição social de recursos por meio de instituições estatais sob sua liderança, assim como sua capacidade de iniciar reformas orientadas ao mercado e corrigir as disparidades de seu desenvolvimento, demonstram um aprimoramento fundamental na força institucional e na capacidade do Estado moderno chinês, em comparação com os períodos do final da dinastia Qing (清朝, 1840–1912) e a República da China (1912–1949).

O significado prático da batalha contra a pobreza extrapola o domínio da política de desenvolvimento econômico e social e tem um impacto sócio-econômico mais amplo e profundo. No entanto, tem havido pouca discussão e análise sobre essa imensa campanha para melhorar as condições de vida do povo. Na relação histórica entre a pobreza e as práticas políticas do PCCh, tal iniciativa raramente foi vista desde o início da reforma e abertura.

Nos últimos anos, cientistas sociais chineses foram além de seus focos tradicionais em estudar os temas revolucionários na história do partido, e lançaram uma iniciativa acadêmica para “trazer a revolução de volta”.[2] Comunidades intelectuais começaram a repensar a grande narrativa da civilização tradicional chinesa, e deram início a pesquisas sobre como as mudanças políticas e ideológicas ocorridas na China moderna foram moldadas pela lógica da revolução.[3] A batalha contra a pobreza, como uma “forma revolucionária”, proporciona um estudo de caso vívido sobre o sistema de Estado liderado pelo partido e sobre como o PCCh tem moldado uma nova tradição política. Ao invés de uma discussão acadêmica sobre os significados de revolução e pós-revolução, ou de uma avaliação da batalha contra a pobreza, esse artigo pretende usar os conceitos de revolução e pós-revolução para discutir a importância do sentido revolucionário deste movimento pelo bem-estar do povo no contexto da sociedade e política da China moderna.

Pobreza: um fio que alinhava as etapas da revolução chinesa

Revolução é um processo de transformação que produz profundas mudanças políticas, econômicas e tecnológicas em uma sociedade. Desde meados do século XIX, a sociedade chinesa foi marcada por revoluções durante quase todas as fases de sua história. Em contraste com as “revoluções” na história da China antiga, que viram a continuidade de poderes dinásticos sob diferentes sobrenomes imperiais, as revoluções ocorridas na China após meados do século XIX começaram a romper com o padrão tradicional de mudanças dinásticas, passando a se conectar com o pensamento ocidental revolucionário e com a prática baseada na teoria da evolução social. A China entrou em uma nova fase revolucionária em sua história, especialmente porque não era mais possível, para o governo da dinastia Qing, lidar com as pressões externas e os conflitos internos, que conduziram inevitavelmente à resistência doméstica de forças políticas que não eram parte do sistema de governo. A saber, um movimento de base composto pela colaboração dos setores médio e baixo da aristocracia, da burguesia nacional, da sociedade civil – incluindo sociedades secretas anti-Qing –, de novos círculos intelectuais e do Partido Nacionalista da China – o Kuomintang (KMT) –, com o Novo Exército sob seu controle.[4] É importante destacar que as forças rebeldes anti-Qing, que emergiram no final da dinastia Qing, eram completamente diferentes daquelas que provocaram as mudanças dinásticas anteriores, tanto em termos de composição, como de ideologia e prática.

Alguns estudiosos argumentam que, desde o fim do período Qing, as grandes mudanças ocorridas na China foram simplesmente uma continuação natural da civilização chinesa e da modernidade nativa, por meio do sistema autocrítico e adaptativo confuciano.[5] No entanto, também houve um ímpeto externo para a mudança. Após a abertura do país, em meados do século XIX, a consciência nacional passou a compreender a enorme distância civilizatória entre a China e o capitalismo ocidental, em termos de desenvolvimento, tecnologia e conhecimento. Ao mesmo tempo, as ideias do Iluminismo ocidental começaram a chegar à China, onde a elite intelectual passou a incorporar essas novas visões de mundo.

Quando a centenária ordem da dinastia Qing chegou ao fim, os rebeldes que buscavam substituí-la não eram as tradicionais forças de mudança, mas revolucionários que, em diferentes níveis, entendiam as raízes sistêmicas do “atraso” chinês. Assim como nas crises de legitimidade e nas mudanças dinásticas anteriores na China, o sofrimento do povo estava na raiz das causas da crise do governo Qing. Mas, diferente das rebeliões anteriores, as demandas dos revolucionários anti-Qing foram formuladas em um diálogo entre o Ocidente, o estudo da religião e cultura chinesas e uma análise sistemática, abrangente e reflexiva sobre a história social, econômica e política do país.

A pobreza foi um dos principais fios condutores das fases da revolução anti-Qing. Em 1904, o Imperador Guangxu – décimo imperador da dinastia Qing, que governou de 1875 a 1908 – emitiu um decreto imperial estabelecendo que “a única maneira de sustentar uma nação é proteger o povo. Nos anos recentes, os recursos financeiros do povo foram exauridos ao extremo e, com todas as províncias compartilhando o fardo das reparações de guerra, as condições de vida da população se tornaram crescentemente precárias”. Apesar de reconhecer que a riqueza da população havia se esgotado e que o povo estava profundamente empobrecido, o imperador falhou em reconhecer a incapacidade do sistema Qing de lidar com as preocupações internas e as ameaças externas, tornando o alívio da pobreza impossível. Em contraste, quase todos os revolucionários defendiam que a modernização seria uma solução para o problema da pobreza no país.

Um dos mais proeminentes intelectuais do movimento de modernização da China, Yan Fu (严复) acreditava que solucionar a questão da pobreza era fundamental para a sobrevivência da China. Ele argumentou que “a primeira coisa a fazer para salvar o país, hoje, é eliminar essa pobreza. Só quando a pobreza for resolvida poderemos falar sobre tornar a nação mais forte, e, então, promover a riqueza, inteligência e moralidade do povo”.[6] Yan Fu não apenas situou a pobreza no centro dos problemas da China, como também levou adiante uma série de ideias sobre redução da pobreza, incluindo a construção de estradas e minas – o que pode ser considerado como a fonte do ditado popular “construir estradas antes de enriquecer” (要想富先修路, yà o xiǎngfù xiān xiūlù) –, a melhoria da educação, o apoio à economia dos pequenos proprietários rurais e o desenvolvimento de uma estratégia abrangente para combater a pobreza.

Enquanto isso, o líder da revolução de 1911, Dr. Sun Yat-sen (孙中山, Sūn Zhōngshān), também colocou a questão da solução do problema da pobreza na China no centro de seu pensamento sobre a construção nacional.[7] Em Plano para a reconstrução nacional (建国方略, Jiànguó fānglüè), publicado em 1924, ele propôs uma estratégia de governo com base nos “Três princípios do povo” (三民主义, Sānmín zhǔyì) – nacionalismo, democracia e condições de vida – e buscou modernizar a China por meio de uma revolução burguesa.[8]

A erradicação da pobreza e a promoção de poder e prosperidade nacionais, por meio da modernização, foram aspirações compartilhadas pelos revolucionários nesse período. Apesar disso, a prática efetiva de construção nacional após a Revolução Xinhai (辛亥革命, Xīnhài gémìng) – que, em 1911 derrubou a dinastia Qing e liderou o estabelecimento da República da China – não colocou o país em uma trajetória de superação da pobreza. De acordo com o estudioso da modernização Luo Rongqu (罗荣渠), a Revolução Xinhai fracassou porque não estabeleceu um Estado moderno após o colapso da dinastia Qing. A tarefa da modernização chinesa exigia a construção de uma força política forte, capaz de realizá-la.[9] Após a Revolução Xinhai, a construção de um Estado moderno foi obstruída pela existência de uma pluralidade de centros locais de poder. O KMT tentou superar essa fragmentação por meio de uma campanha militar para reunificar o país – conhecida como Revolução Nacional ou Expedição do Norte (1926–1928) – e da centralização do poder, com o partido do governo no centro. No entanto, o governo da República da China liderado pelo KMT continuou sendo um arranjo frágil e complexo, influenciado por diversas forças políticas e militares locais. Além disso, as principais forças políticas nas quais o governo se apoiava estavam em um acirrado conflito de classe com a população rural. Como resultado, faltava ao governo do KMT autoridade política suficiente para mobilizar, efetivamente, os recursos sociais necessários para implementar a modernização. Durante esse período, não houve progresso na redução da pobreza, tampouco na industrialização – questões que a Revolução Xinhai e a Revolução Nacional pretendiam implementar. Por isso, o governo do KMT se afundou em uma crise de legitimidade.

A composição organizativa do KMT foi determinante para que seu governo não pudesse transformar a estrutura básica de classes da China. Resolver as questões da pobreza e da modernização na China exigia uma autoridade política impulsionada pela maioria da sociedade, ou seja, o campesinato. O estabelecimento dessa autoridade exigia uma transformação radical na superestrutura da China. Esses fatores pressionaram a luta para erradicar a pobreza e modernizar a China, de um caminho reformista para o caminho revolucionário. Proprietários de terra, capitalistas e forças feudais, junto com as forças do imperialismo, eram vistos cada vez mais como as causas da pobreza e do atraso da China e, consequentemente, identificados como inimigos da revolução.

Nesse contexto, o PCCh entrou no cenário político da China Moderna. Desde sua fundação em 1921, o PCCh declarou explicitamente sua missão de transformar a China de um país pobre a um país próspero e poderoso. A aliança inicial do partido com o KMT se baseou nos Três Princípios do Povo, com o direito igual à terra em seu centro. Sob a liderança do PCCh, a revolução não apenas teve o objetivo de completar as tarefas inacabadas da Revolução Xinhai – especialmente o anti-imperialismo e o anti-feudalismo – como também buscou incorporá-las na Revolução Comunista. Embora a erradicação da pobreza e a modernização fossem aspirações compartilhadas por diferentes correntes revolucionárias da China moderna – o que conectava as Revoluções Xinhai, Nacional e Comunista –, a esperança por uma solução efetiva emergiu apenas quando o PCCh chegou ao poder.

O método do Partido Comunista da China em relação à pobreza

O PCCh e os reformistas compartilhavam a visão de que a China era pobre e atrasada, mas divergiam sobre como resolver estas questões. Muitos historiadores e cientistas políticos estudaram as estratégias e mobilizações de base por meio das quais o PCCh acumulou forças, como a frente única, a luta armada, a construção partidária e a linha de massa. No entanto, os estudiosos costumam negligenciar a análise sobre como o partido procurou usar seu poder para redefinir o sentido de desenvolvimento e buscar uma forma radical de revolução para concretizar a modernização.

Durante o início no século XX, faltava à sociedade civil chinesa auto-organização e poder para promover efetivamente a industrialização. Por isso, era necessário que o Estado entrasse em cena para dirigir esse processo.[10] No período da República da China, o Estado dirigido pelo KMT foi incapaz de implementar a industrialização. A transformação necessária do Estado chinês seria finalmente alcançada por meio da mobilização política de um partido marxista-leninista, o PCCh.[11] De fato, a legitimidade do PCCh, ao substituir a administração do KMT, foi determinada por sua capacidade de promover a construção do Estado e, consequentemente, a modernização.

No final dos anos 1930, Mao Zedong (毛泽东) propôs que “a construção econômica deveria estar no centro de todo o trabalho do partido e das organizações populares, e no centro do trabalho dos comitês e governos partidários”.[12] Ele também apontou que “o povo apoia o Partido porque representamos as demandas da nação e do povo. Mas, se nós falharmos em solucionar os problemas, construir novas formas de indústria e desenvolver as forças produtivas, o povo não necessariamente irá nos apoiar”.[13] Nesse sentido, não é difícil compreender a prioridade consistente que o PCCh dá ao desenvolvimento nacional, à industrialização e à busca pela erradicação da pobreza, assim como sua motivação para iniciar a reforma e abertura.

Em seus anos iniciais, ao mesmo tempo em que organizava a luta revolucionária, o PCCh levava adiante uma série de campanhas para a redução da pobreza nas áreas de base revolucionárias. Essas campanhas foram um prenúncio das políticas de desenvolvimento no período “pós-revolucionário”, e refletiram a intenção original do PCCh de construir um Estado modernizado. É impressionante, por exemplo, a semelhança entre a atual batalha do partido contra a pobreza e os esforços do partido para a reforma agrária, a educação, a saúde, a seguridade social e a assistência social na Base Revolucionária Central, ou no Soviete Jiangxi-Fujian e na Região de Fronteira Shaanxi-Gansu-Ningxia, durante os anos 1930 e 1940.

Em primeiro lugar, o método combinado para resolver a pobreza na Região de Fronteira Shaanxi-Gansu-Ningxia – focado em superar o atraso econômico e em garantir assistência social – compartilha semelhanças com os programas atuais do partido para reduzir a pobreza. Na Região de Fronteira, o partido estabeleceu a produção agrícola como a prioridade inicial na construção econômica, organizando os camponeses em cooperativas para aumentar a produtividade e impulsionar o desenvolvimento rural. Em seguida, o partido adotou um sistema de tributação progressiva, no qual as pessoas de todas as classes – exceto aquelas em situação de extrema pobreza – deveriam pagar impostos ao governo, ao mesmo tempo em que eram isentos de aluguel e contavam com juros reduzidos. Finalmente, o partido criou uma instituição dedicada à assistência social, concedendo fundos especiais para auxílio em situações de desastre e para o reassentamento de refugiados da guerra civil da China e da Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa (1937-1945).[14]

De certa forma, a experiência na Região de Fronteira representou um protótipo para os atuais programas do partido de redução da pobreza orientados ao desenvolvimento – focados em melhorar as condições de vida no longo prazo pela promoção do desenvolvimento econômico em áreas mais pobres –, e para os programas de redução da pobreza orientados ao bem-estar – focados em promover auxílio imediato e apoiar aqueles que vivem em situação de pobreza.

Em segundo lugar, o desenvolvimento da educação pelo PCCh na Base Revolucionária Central tem aspectos semelhantes aos atuais esforços do partido para a redução da pobreza. Depois de estabelecer a área da Base, em 1931, o partido construiu escolas primárias em todos os distritos até 1934, fornecendo educação gratuita para todas as crianças. Junto com o desenvolvimento de um sistema de educação obrigatória para as crianças e jovens, o PCCh também levou a cabo uma campanha de larga escala de educação de adultos, para erradicar o analfabetismo na Base. Por exemplo, no condado de Xingguo, o partido criou 1.900 escolas noturnas, abertas a todas as pessoas analfabetas com menos de 35 anos, sendo que as mulheres correspondiam a 69% das estudantes.[15]

Durante a fundação da Base Revolucionária Central, Mao declarou que todas as pessoas tinham direito à educação, independente do gênero, status ou identidade. Além disso, a constituição que governava a área da Base garantia às massas trabalhadoras e camponesas o direito a receber educação e a implementação de um sistema de educação universal e gratuita.[16] Atualmente, a China tem um sistema nacional de nove anos de educação gratuita e obrigatória, e o partido continua a perseguir a redução da pobreza por meio da educação, com o foco em ampliar o acesso à educação e aos recursos educacionais nas áreas rurais, oferecendo educação profissionalizante e capacitação técnica para interromper a transmissão intergeracional da pobreza.

Além disso, as práticas de assistência social do PCCh na Base Revolucionária Central também se assemelham aos atuais programas de redução da pobreza orientados ao bem-estar, já mencionados. Na área da Base, o partido estabeleceu um comitê dos trabalhadores que garantiu direitos trabalhistas, apoiou trabalhadores desempregados e forneceu seguridade social, assim como organizou várias sociedades de apoio mútuo. O partido também criou escritórios que atuavam principalmente no resgate e auxílio às vítimas de guerra e desastres naturais. Essa tradição data das primeiras experiências de governo do partido, e continuam até hoje.

Com relação às campanhas para melhorar as condições de vida na Base Revolucionária Central, Mao enfatizou que ninguém deveria ser negligenciado ou deixado para trás, e que todas as pessoas deveriam ser tratadas com igualdade e respeito, especialmente os grupos marginalizados, como as mulheres, as pessoas idosas e com deficiências.[17] A atual batalha contra a pobreza carrega consigo esse princípio de “não deixar ninguém para trás”.

Apesar da visão do PCCh sobre as raízes da pobreza serem a exploração do campesinato pela classe feudal dos proprietários de terra, a agressão econômica do imperialismo e a opressão da classe burocrática capitalista, logo após a vitória da revolução e a realização da reforma agrária, o partido chegou a dura conclusão de que as condições fundamentais da pobreza nas áreas rurais não haviam mudado. Imediatamente após a fundação da República Popular da China, em 1949, o PCCh empreendeu um processo sistemático de transformação social com o objetivo de erradicar a pobreza, implementando uma reforma agrária nacional que destruiu completamente o sistema feudal de terras. Ao mesmo tempo, por reconhecer a importância de transformar a economia dos pequenos proprietários individuais, o PCCh mobilizou o apoio mútuo e o movimento de cooperativas nas áreas rurais. Ainda assim, em 1956, em suas notas para A maré alta do socialismo na China rural (中国农村社会主义高潮, Zhōngguó nóngcūn shèhuì zhǔyì gāocháo), Mao escreveu que a China ainda era muito pobre e que eram necessárias décadas para que ela se tornasse um país rico. Duas décadas depois, em 1975, quando Mao conhecera Kukrit Pramok, ele afirmaria que “o Partido Comunista não é temível, o que é realmente temível é a pobreza”.[18] Esses exemplos refletem a longa permanência da ênfase na redução da pobreza na agenda política do PCCh.

Ao longo da era Mao, o partido continuou buscando a transformação social por todo o país e em todas as frentes, desenvolvendo a infraestrutura básica da agricultura, a preservação da água, o transporte, a educação e a saúde. Nesse sentido, o período de construção socialista entre a fundação da RPC e 1978 pode ser situado, em linhas gerais, dentro da história do que o partido agora chama de redução da pobreza orientada para o desenvolvimento.[19]

Em 1978, a China entrou em um período de reforma econômica de mercado. Apesar de profundas mudanças na estratégia econômica do PCCh, a pobreza permaneceu central na agenda política do partido. Como afirmou Deng Xiaoping (邓小平), “nossa luta de décadas sempre teve o propósito de eliminar a pobreza”.[20]

Para atingir esse objetivo, Deng argumentou que era necessário ter um método diferente do período anterior. “Nossos vinte anos de experiência, entre 1958 e 1976, nos ensinaram que: a pobreza não é socialismo, socialismo é eliminar a pobreza”.[21] Deng tentou esclarecer a relação entre modernização e pobreza, apresentando formulações criativas, como “aqueles que enriquecem primeiro levam os outros consigo” (先富带后富, xiānfù dài hòufù),[22] introduzindo o conceito de construção de uma “sociedade moderadamente próspera” (小康社会, xiǎokāng shèhuì) como objetivo da modernização, propondo a Estratégia de desenvolvimento em três passos para alcançar a modernização e estabelecendo a condução do povo à “prosperidade comum” (共同富裕, gòngtóng fùyù) como objetivo de governo do PCCh.

Embora os líderes posteriores do PCCh tenham continuado a enfatizar a adesão do partido ao objetivo de prosperidade comum, à medida que a reforma e a abertura avançavam, a polarização e a desigualdade social tornaram-se questões cada vez mais sérias no contexto do rápido desenvolvimento econômico do país. Apesar do PCCh ter identificado o problema da pobreza no início da reforma e abertura e empreendido uma série de iniciativas direcionadas à questão durante esse período – incluindo a campanha de redução da pobreza orientada ao desenvolvimento em “três áreas” (三西地区, sānxī dìqū) no início nos anos 1980, e o Programa Prioritário para a Redução da Pobreza em Sete Anos, que visava tirar 80 milhões de pessoas da pobreza absoluta entre 1994 e 2000 – tornou-se cada vez mais difícil para a população pobre sair desta condição, uma vez que a desigualdade aumentou.[23] Mesmo que a China tenha tido conquistas significativas na modernização, é evidente que o PCCh enfrenta, atualmente, o grande desafio de gerenciar a relação entre eficiência e equidade.

Antes da revolução, a sociedade e a economia da China sofreram um longo período de subdesenvolvimento devido, de um lado, à fragilidade das forças da sociedade civil em impulsionar o desenvolvimento econômico e, de outro, à incapacidade do Estado de promover a modernização em âmbito nacional. Quando chegou ao poder, o PCCh representou uma nova força para impulsionar o processo de modernização do país, contando com a capacidade política, institucional e administrativa para transformar a sociedade chinesa. Rompeu-se, assim, com o ciclo das mudanças dinásticas, assegurando as bases para o desenvolvimento nacional da China. No entanto, na era pós-revolucionária, o PCCh tem enfrentado os desafios de regulação e distribuição da riqueza em uma sociedade com interesses diversos.

Uma prática revolucionária alternativa para erradicar a pobreza

O 18º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, em 2012, marcou um giro em sua tática, aumentando o peso de sua força institucional na condução do processo de modernização. Na época, o Secretário Geral Xi Jinping (习近平) afirmou que “a eliminação da pobreza, a melhoria nas condições de vida do povo e o alcance da prosperidade comum são requisitos essenciais do socialismo. Hoje, a maioria da população tem visto uma grande elevação de seus padrões de vida, com a emergência de grupos de renda média e alta, mas ainda existe uma grande parte da população com baixa renda, e são estes que realmente precisam de nossa ajuda”.[24] Em uma série de debates sobre o trabalho de redução da pobreza, Xi Jinping enfatizou repetidamente o conceito fundamental segundo o qual “o desenvolvimento compartilhado tem como foco solucionar as questões de justiça social”.[25] Junto à liderança do PCCh, nos últimos anos, Xi tem levantado a questão da pobreza com mais frequência, o que representa a preocupação crescente do partido com as questões de justiça social nessa fase de desenvolvimento. A promoção da modernização da China, com ênfase no desenvolvimento econômico, foi o desafio inicial enfrentado pelo PCCh, um partido revolucionário que se transformou em um partido de governo. Agora, tendo realizado grandes conquistas econômicas, o partido enfrenta o desafio de promover a justiça social para efetivar plenamente a modernização do país.

Durante a era pós-revolucionária, as mudanças nas relações entre o partido e o governo, entre a sociedade e o Estado, assim como fatores socioculturais, limitaram o uso de meios revolucionários pelo PCCh para distribuir a riqueza social. Além disso, como a pobreza é um problema estrutural, os mecanismos normativos da governança técnico-burocrática foram incapazes de regular a distribuição. Como resultado, para mudar o padrão de distribuição, o partido teve que usar seus recursos institucionais e intervir institucionalmente, ao mesmo tempo em que também transcendeu as instituições existentes por meio de iniciativas “revolucionárias”. Isso incluiu uma auto-revolução dentro do PCCh, reconfigurando os interesses do partido e os interesses pessoais de seus membros. A evolução do método do partido – de sua estratégia técnico-burocrática à campanha de larga escala para a erradicação da pobreza – não foi um movimento de massa irracional, semelhante ao Grande Salto Adiante (1958–1962), mas um movimento racional de construção de consenso e de mobilização de massa, um experimento para revitalizar o simbolismo e a prática revolucionária na era pós-revolucionária.

A batalha contra a pobreza restabeleceu a autoridade política do PCCh, diminuindo a distância entre o partido e o governo, que havia emergido da priorização do crescimento econômico. Os secretários do partido em todos os cinco níveis de governo – povoado, distrito, condado, cidade e província – são integralmente responsáveis por assegurar o êxito dos esforços de redução da pobreza, sob a liderança direta do secretário-geral. O retorno da liderança centralizada do partido contribuiu para o PCCh reconstruir o consenso social, evitar a desordem social e administrar o complexo ambiente interno e externo. Dessa forma, o significado político da batalha contra a pobreza vai muito além da melhoria das condições de vida do povo.

Esse impacto é particularmente visível nas áreas rurais, o que não chega a ser surpreendente, já que a solução da pobreza rural na China é essencial para efetivar a modernização, construir uma sociedade moderadamente próspera e promover a justiça social no país. O PCCh implementou uma ampla gama de medidas nas áreas rurais, que romperam com a lógica técnico-burocrática e com os entraves das normas técnicas e administrativas existentes, permitindo que as metas de justiça social extrapolassem o processo administrativo. Entre os exemplos disso, estão a concentração de recursos em áreas mais atingidas pela pobreza, como as “três regiões e três prefeituras”[26] (三区三州, sānqū sānzhōu), o envio de quadros para vilarejos pobres para assumir as principais responsabilidades dos esforços locais de redução da pobreza como primeiro-secretários do partido, e a implementação de um sistema de supervisão para lidar com os problemas nos povoados e condados em situação de pobreza – o que, em alguns casos, exigiu a realocação das pessoas que viviam em condições difíceis ou perigosas.

O governo também criou muitas iniciativas orientadas ao mercado e, simultaneamente, contrárias aos interesses do mercado, como a redução da pobreza por meio do consumo, focada no incentivo à compra de mercadorias e serviços rurais para a promoção do desenvolvimento, oficinas de redução de pobreza, e o programa “10 mil empresas ajudando 10 mil vilarejos” (万企帮万村, wànqǐ bāng wàncūn), que mobilizou a contribuição de empresas privadas para os esforços de redução da pobreza rural. O PCCh foi capaz de redefinir o equilíbrio entre equidade e eficiência usando a “vitória” da batalha contra a pobreza e a “qualidade da vitória” como padrões para monitorar e avaliar o trabalho do partido e do governo.

Para completar as tarefas inacabadas da revolução na era pós-revolucionária, o PCCh precisou superar os marcos normativos de governança existentes e a influência dos grupos de interesse que haviam emergido durante a reforma e abertura. Ao mesmo tempo, pelas experiências anteriores – como a Revolução Cultural (1966-1976) –, o partido tem plena consciência da necessidade de garantir a estabilidade institucional. De modo geral, a batalha contra a pobreza pode ser entendida como um tipo alternativo de prática revolucionária.

Considerações Finais

O uso da expressão “era pós-revolucionária” neste artigo não é um argumento para abandonar os conceitos ou práticas revolucionárias na era da globalização, tampouco para retornar às práticas revolucionárias de períodos anteriores. O PCCh identifica o atual momento histórico da China como “primeira etapa do socialismo” (社会主义初级阶段, shèhuì zhǔyì chūjí jiēduàn), na qual as relações de produção incompatíveis com os princípios do socialismo continuarão existindo. Dessa forma, práticas revolucionárias radicais perderam legitimidade. Entretanto, enquanto administra a tensão entre equidade e eficiência no processo de modernização da China, o cumprimento de objetivos revolucionários continua sendo de grande importância, tanto para a teoria como para a prática do partido. Com a erradicação da pobreza absoluta, a China atingiu seu primeiro objetivo centenário na construção de uma sociedade moderadamente próspera. No entanto, para alcançar seu segundo objetivo centenário de construir um país socialista moderno, que seja próspero, forte, democrático, culturalmente avançado, harmonioso e bonito, o PCCh deve continuar essa batalha e confrontar a pobreza relativa e a desigualdade.[27] Resta saber se as práticas revolucionárias alternativas da batalha contra a pobreza se tornarão uma lembrança ou se serão estabelecidas como uma nova tradição política.

Referências bibliográficas

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Zhou Feizhou, “Padrões de ordem diferenciados e prioridades étnicas”’ [差序格局和伦理本位], Chinese Journal of Sociology [社会] 35, n. 1, jan. 2015, p. 26–48.

Notas do autor

1. Xi Jinping, “Permanecer fiel às nossas aspirações originais e missões fundacionais – uma campanha em curso” In. A governança da China, vol. 3. Beijing: Editora de Línguas Estrangeiras, 2021.

2. Ying Xing, “Trazer a revolução de volta: expandindo os novos horizontes na sociologia” [‘把革命带回来’:社会学新视野的拓展], Revista Chinesa de Sociologia [社会] 36, n. 4, jul. 2016.

3. Zhou Feizhou, “Padrões de ordem diferenciados e prioridades étnicas”’ [差序格局和伦理本位], Chinese Journal of Sociology [社会] 35, n. 1, jan. 2015; Qu Jingdong, “O retorno à perspectiva histórica e o remodelamento da imaginação sociológica” [返回历史视野,重塑社会学的想象力], Revista Chinesa de Sociologia [社会] 35, n. 1, jan. 2015.

4. O Novo Exército foi uma força armada modernizada na dinastia Qing, na sequência de sua derrota na Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-95). Ver Chen Mingming, Política e modernização da sociedade pós-revolucionária [革命后社会的政治与现代化]. Shanghai: Shanghai Lexicographical Publishing House, 2002.

5. Wang Ban; He Xiang; Zhang Yu. “Desvelando o Iluminismo na História: uma leitura de A emergência do pensamento moderno chinês, de Wang Hui.” [在历史中发现启蒙——读汪晖的《现代中国思想的兴起], Revista da Universidade Tsinghua, Edição Filosofia e Ciências Sociais [清华大学学报(哲学社会科学版)], n. 5, 2008.

6. Yan Fu. “Uma leitura da nova tradução de Problemas Sociais, de Henry George” [读新译甄克思《社会通诠》] In: Coleção de Yan Fu, Vol. 1 [严复集, 第1册]. Beijing: Zhonghua Book Company [中华书局], 1986, p. 149.

7. Nota da tradução: a escrita em pinyin do nome do Dr. Sun Yat-sen foi incluída neste texto, pois a grafia clássica de seu nome nos países ocidentais não corresponde ao seu nome em chinês, diferente de Yan Fu, mencionado anteriormente.

8. Sun Yat-sen. “Primeira conferência sobre os Princípios das condições de vida do povo (3 de agosto de 1924) ”[民生主义第一讲(1924年8月3日)], In: Obras completas de Sun Yat-sen, Vol. 9 (孙中山全集, 第9卷). Beijing: Zhonghua Book Company [中华书局], 1986.

9. Chen. Política e Modernização.

10. Chen. Política e modernização.

11. Ibidem.

12. Departamento de Pesquisa Literária do Comitê Central do Partido Comunista da China [中共中央文献研究室] A cronologia de Mao Zedong (1893–1949), Vol. 2 [毛泽东年谱(1893–1949): 中]. Beijing: Imprensa Literária Central do Partido, 2013, p. 209.

13. Mao Zedong, Obras escolhidas de Mao Zedong, Vol. 3. Edições em Línguas Estrangeiras, Pequim, 1975.

14. Ouyang Dejun. “As práticas de combate à pobreza do Partido Comunista da China na região de fronteira Shaanxi-Gansu-Ningxia” [中国共产党在陕甘宁边区的反贫困实践], Revista da Universidade de Yan’an (edição de Ciências Sociais) [延安大学学报(社会科学版)] 41, n. 4, 2019.

15. Yu Boliu; Ling Buji, Mao Zedong e Ruijin [毛泽东与瑞金]. Nanchang: Editora do Povo de Jiangxi[江西人民出版社], 2003, p. 317.

16. Ibidem.

17. Yu e Ling. Mao Zedong e Ruijin, p. 317.

18. Zhao Xingsheng. “Pobreza e combate a pobreza: as expressões e práticas do PCCh nas questões rurais na era da coletivização” [贫困与反贫困——集体化时代中共对乡村问题的表达与实践], Historiografia de Anhui [安徽史学], n. 6, 2016.

19. Li Xiaoyun; Yu Lerong; Tang Lixia. “A jornada de combate à pobreza e os mecanismos de redução da pobreza nos 70 anos após a fundação da Nova China” [新中国成立后 70 年的反贫困历程及减贫机制], Economia Rural Chinesa [中国农村经济] 9, n. 10, 2019.

20. Aban Maolitihan. “A teoria de combate à pobreza e a prática do Partido Comunista da China” [中国共产党反贫困理论与实践], Estudos sobre as teorias de Mao Zedong e Deng Xiaoping [毛泽东邓小平理论研究], n. 11, 2006.

21. Deng Xiaoping. Construindo o socialismo com características chinesas. [建设有中国特色的社会主义] Beijing: Edições do povo [人民出版社], 1987, p. 103–4.

22. No Ocidente, Deng Xiaoping é geralmente citado equivocadamente, dizendo apenas “deixar que alguns enriqueçam primeiro”. A omissão da segunda parte da expressão de Deng desconsidera a orientação de que os membros mais ricos da sociedade tem a responsabilidade de “levar os demais consigo” em direção ao objetivo de prosperidade comum.

23. Nota da tradução: as “três áreas” se referem à Hexi e Dingxi na província de Gansu, e à Xihaigu, na Região Autônoma de Ningxia Hui.

24. Xi Jinping. Trechos do discurso de Xi Jinping sobre a redução da pobreza [习近平扶贫论述编摘]. Instituto de História e Literatura do Comitê Central do PCCh [中国共产党中央委员会党史和文献研究院]. Beijing: Edições centrais do Partido [中央文献出版社], 2018, p. 3.

25. Xi, Trechos, p. 9.

26. NT: as “três regiões” englobam o Tibete, as áreas étnicas tibetanas das províncias de Sichuan, Yunnan, Gansu e Qinghai, e as quatro prefeituras no sul de Xinjiang (Hotan, Aksu, Kashgar e a Prefeitura Autônoma Kizilsu Kyrgyz). As “três prefeituras” são Liangshan em Sichuan, Nujiang em Yunnan e Linxia em Gansu.

27. No 18º Congresso Nacional do PCCh, em 2012, o partido anunciou um conjunto de objetivos de desenvolvimento – conhecidos como “os dois objetivos centenários” – a serem alcançados em dois aniversários de 100 anos muito significativos. O primeiro objetivo era a erradicação da pobreza absoluta e a construção de uma sociedade moderadamente próspera, em todos os sentidos, até 2021, o centenário do PCCh, fundado em 1921. O segundo objetivo centenário é a construção de um “país socialista moderno que seja próspero, forte, democrático, culturalmente avançado, harmonioso e bonito”, até 2049, o centenário de fundação da República Popular da China, em 1949.

Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China | 27.06.2023

China 2098: O sol nasce da mesma forma (中国2098:太阳照常升起), 2019-2022. Crédito: Fan Wennan.


Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China

Fundação Longway

A Fundação de Pesquisa Econômica e Social Beijing Longway foi fundada em 2009 com o seguinte propósito: estudar a crise de continuidade cultural na China moderna e promover confiança e autonomia culturais na sociedade chinesa. As pesquisas da Fundação se dedicam a compreender como as mudanças na estrutura social da China moldaram o desenvolvimento cultural do país e conduziram à ascensão de novas classes sociais com orientações políticas e culturais distintas.

O artigo “Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China” (社会主义3.0——中国社会主义的现实与未来) foi escrito coletivamente pela Fundação Longway (修远基金), e publicado originalmente na segunda edição da Wenhua Zongheng (文化纵横), em abril de 2015.

Precisamos falar sobre socialismo

O conceito de socialismo está no centro de intensas batalhas ideológicas, com discussões veementes entre seus apoiadores e adversários. Em geral, esses debates permanecem no plano das ideias, com participantes defendendo suas concepções de socialismo embasadas em relatos históricos seletivos e doutrinas teóricas, enquanto ignoram que o socialismo é um processo histórico que se desenvolveu junto com a industrialização. Ao longo de vários séculos, o socialismo emergiu como um caminho alternativo para o desenvolvimento para superar a crise da industrialização capitalista. Tal caminho se caracteriza pela busca de mais igualdade política e econômica e de um ideal ético e cultural de comunidade. Além de dar origem a Estados como a União Soviética e a China, o socialismo também teve um impacto significativo nas políticas da social-democracia na Europa ocidental. No entanto, com o colapso da União Soviética no final do século XX, o movimento socialista internacional sofreu um grande retrocesso. As formas de Estado e de modos de produção socialistas exigiam reflexão e revitalização sistemáticas. Atualmente, com o desmantelamento dos Estados de bem-estar social capitalistas, com múltiplas crises e transformações complexas de suas formas de produção material, é necessário revisitar e analisar novamente as ideias e práticas do socialismo para ativar seu dinamismo político.

Enquanto o movimento socialista internacional se enfraquecia, o sistema socialista da China passou por um processo de autotransformação por meio da reforma e abertura. Entretanto, apesar de suas conquistas, é inegável que o socialismo com características chinesas hoje enfrenta sérios desafios[1]. Na China, existem dúvidas sobre o significado do socialismo, se ele ainda é necessário ou mesmo se é possível. Isso coloca um dilema para a China: por um lado, como um país socialista, nós não podemos evitar a discussão sobre o socialismo e, por outro, não podemos nos paralisar em disputas conceituais. Em vez de nos deixar consumir por batalhas ideológicas, deveríamos encarar o socialismo como um processo em curso e um esforço permanente para criar uma sociedade mais justa e equitativa, diante das oportunidades e desafios decorrentes das transformações produtivas desde o início da industrialização.

O debate contemporâneo sobre o socialismo e as formas futuras que este pode vir a assumir devem situar o socialismo no contexto de processos históricos reais e da produção industrial em massa, tal como esclarecido por Karl Marx. E, assim, analisar a interação complexa entre o ideal de igualdade e as realidades materiais de produção. No caso da China, para compreender a realidade e necessidade do socialismo, é preciso analisar o caminho socialista do país no contexto de sua trajetória histórica desde o século XX – investigando o processo complexo a partir do qual o socialismo, como um conceito político estrangeiro, foi integrado nas tradições políticas da China, e avaliando as lições aprendidas pelas experiências chinesas de construção do socialismo. Além disso, para determinar a futura direção do socialismo é preciso explorar as mudanças em padrões de organização social, fatores de produção e de divisão do trabalho originadas pela globalização e pelo novo cenário industrial.

Somente assim poderemos encarar efetivamente as condições políticas e econômicas neste tempo de grandes mudanças, entender os recursos políticos oferecidos pelo socialismo e contemplar o caminho para o desenvolvimento futuro da China.

Esse artigo traça a evolução histórica e a direção futura do socialismo chinês. Os autores descrevem a prática socialista do período de 1949 a 1976, liderado por Mao Zedong (毛泽东), como “socialismo 1.0” da China. A posterior adoção da economia de mercado socialista desde o início da reforma e abertura, em 1978, é descrita como “socialismo 2.0”. Finalmente, em meio ao período atual de turbulências políticas e econômicas em âmbito global, os autores argumentam que a China deve desenvolver um “socialismo 3.0” para guiar seu futuro, com base nas lições aprendidas com o socialismo 1.0 e 2.0.

Socialismo 1.0

1. O encontro histórico entre o socialismo e a crescente consciência de salvação nacional da China[2]

A definição da China pelo caminho socialista não foi acidental. No final do século XIX, todas as principais civilizações não-ocidentais enfrentaram desafios complexos colocados pelo Ocidente. Com o avanço do processo de industrialização, as modernas forças militares do Ocidente conseguiram derrotar completamente as frágeis estruturas militares que eram necessárias para manter a ordem nos tradicionais impérios agrícolas. Isso provocou ansiedade e frustração nas elites dessas civilizações, que sentiam ter tido sua cultura superada ou destruída. Estados-civilizações, como a China, perderam seu senso de superioridade sobre os “bárbaros”, ou sobre os Estados vizinhos e minorias étnicas.

Os “navios fortes e armas afiadas” (坚船利炮, jiānchuán lìpào) do Ocidente impuseram ao mundo “grandes mudanças inéditas em três mil anos” (三千年未见之大变局, sānqiānnián wèijiàn zhī dàbiànjú), forçando reações de intelectuais e políticos chineses[3]. Impulsionados pelas poderosas forças materiais de sua industrialização, os países “avançados”, liderados pelo Reino Unido, continuaram sua expansão ao exterior, moldando uma nova ordem internacional, com novas “regras do jogo”. A transformação da ordem mundial inviabilizou todas as convenções anteriores.

Confrontada pelas potências ocidentais armadas pela industrialização, a China teve que definir como conseguiria industrializar-se rapidamente para alcançar o Ocidente e se proteger. Enquanto intelectuais e políticos estudavam cuidadosamente o caminho para a industrialização do país durante o final do século XIX e início do século XX, a expansão do capitalismo liderado pelo Ocidente gradualmente passou da fase de livre comércio para a fase do imperialismo. A lógica cruel do capitalismo, na qual os fracos são dominados pelos fortes, tornou-se cada vez mais predominante. Entre os países europeus, o conflito de classe entre o capital e o trabalho se intensificou, os movimentos sociais de resistência emergiram, e essa dinâmica teve um profundo impacto nos intelectuais chineses nesse período. A eclosão da Primeira Guerra Mundial levou muitos teóricos chineses a refletirem profundamente sobre os dilemas internos à civilização ocidental.

O empenho dos revolucionários e pensadores da China moderna tinha dois aspectos. Por um lado, eles buscaram aprender com o Ocidente para alcançar seus próprios objetivos de modernização e prosperidade nacionais. Por outro, eles permaneceram atentos à pobreza e à desigualdade provocadas pela industrialização capitalista. Figuras como o intelectual Yan Fu (严复) e o líder da revolução de 1911, Dr. Sun Yat-sen (孙中山, Sūn Zhōngshān), apresentavam uma visão mais ampla do desenvolvimento da China porque tinham “aberto seus olhos para ver o mundo” (开眼看世界, kāiyǎn kàn shìjiè). Reconheceram, assim, as tendências históricas do progresso e da mudança. Entretanto, suas bases intelectuais e ideológicas, formadas em sua juventude, eram profundamente influenciadas pela cultura tradicional chinesa, incluindo o antigo ideal confuciano de “Grande Unidade” (大同, dàtóng).[4]

Dessa forma, ao mesmo tempo em que aprendiam com o Ocidente, os pensadores chineses também identificavam os problemas da civilização industrial ocidental e a possibilidade de construir um sistema social que a superasse. Particularmente, o rápido crescimento da industrialização socialista da União Soviética, em um curto período de tempo, era visto como um caminho realista a ser seguido pela China para alcançar o Ocidente. Quando o conceito de socialismo foi introduzido na China, muitos intelectuais chineses consideraram seu ideal fundacional de igualdade mais alinhado aos ideais tradicionais chineses do que o liberalismo ocidental. Durante esse período, o socialismo teve um forte apelo na China porque não se tratava apenas de um conjunto de valores comunitários superiores, mas sim de um exemplo concreto de um sistema capaz de realizar a industrialização. Tanto a social-democracia da Europa ocidental como o socialismo da União Soviética demonstraram que eram capazes de desenvolver um modo de produção moderno e realizar a industrialização.

Nas décadas de 1920 e 1930, na sequência do fracasso decepcionante da Grande Revolução (1924-1927), os intelectuais chineses debatiam fervorosamente a teoria socialista.[5] É importante ressaltar que a concepção evolutiva da história, importada da União Soviética – segundo a qual a sociedade humana teria passado de uma sociedade “primitiva”, para uma sociedade escravocrata, para uma sociedade feudal, para uma sociedade capitalista e, finalmente, para uma sociedade socialista e comunista – começou a ser aplicada de forma consciente ao desenvolvimento histórico da civilização chinesa. Esta revolução na concepção de história se tornou uma premissa da revolução política posterior.

A tarefa de alcançar o Ocidente finalmente caiu nas mãos dos comunistas chineses, que foram fortemente influenciados pela Revolução de Outubro de 1917. Tal influência não se limitou ao modelo organizativo de partido de vanguarda, de Vladimir Lenin, mas incluiu também o exemplo prático e os métodos específicos que poderiam ser utilizados por um país “atrasado” para sua industrialização. Assim, houve uma integração profunda entre o desejo de industrialização (impulsionado pela crescente consciência de salvação nacional) e o plano de construir um Estado socialista na China.

2. A prática e as ideias socialistas de Mao Zedong: a primeira tentativa de adaptar o socialismo ao contexto chinês

No final dos anos 1930, Mao Zedong começou a pensar em como integrar as ambições industriais e revolucionárias da China às tendências históricas do socialismo no mundo. Em seus trabalhos, A revolução chinesa e o Partido Comunista da China (中国革命与中国共产党, Zhōngguó gémìng yǔ Zhōngguó Gòngchǎndǎng, 1939) e Sobre a nova democracia (新民主主义论, Xīn mínzhǔ zhǔyì lùn, 1940), Mao argumentou que a China, naquele tempo, era uma sociedade semi-colonial e semi-feudal, e que o Partido Comunista da China (PCCh) era o partido que conduziria uma revolução socialista.[6] Na concepção de Mao, o plano para o desenvolvimento futuro da China poderia ser dividido em duas etapas: primeiro, a etapa da Nova Democracia, seguida pela etapa socialista, que seria alcançada apenas com o desenvolvimento completo da Nova Democracia.[7] Partindo da teoria de Joseph Stalin e outros sobre as etapas históricas do desenvolvimento, Mao incorporou os escritos de Lenin sobre o imperialismo e o colonialismo e, finalmente, construiu uma concepção histórica do desenvolvimento da China moderna: após passar pelas sociedades “primitiva”, escravocrata e feudal, o país entrou em um estágio semi-feudal e semi-colonial, que precisava ser transcendido por um estágio de revolução democrática, dividida nas fases de Velha e Nova Democracia. Essa concepção de história serviu como um marco para o PCCh formular e avaliar suas políticas: aquelas que eram consideradas adiantadas neste cronograma histórico, por assim dizer, eram definidas como inclinadas à esquerda, enquanto as atrasadas eram consideradas políticas inclinadas à direita.

Orientada por essa concepção de história, a geração de comunistas chineses liderada por Mao perseguiu a industrialização socialista e a igualdade socialista, dois objetivos relacionados entre si de forma complexa e até contraditória.

O PCCh assumia, então, a responsabilidade pelo desenvolvimento industrial do país, seguindo os esforços fracassados do final do século XIX e início do século XX, tais como o Movimento de Auto-Fortalecimento (1861–1895).[8] A perspectiva histórica e socialista do partido sobre a questão da industrialização tinha um forte sentido igualitário, que, em geral, transcendia a consciência de salvação nacional. Com a fundação da República Popular da China (RPC) em 1949, o modelo de industrialização do PCCh priorizou o desenvolvimento da indústria pesada, considerada necessária em países que buscavam recuperar o atraso no desenvolvimento, e que era defendida desde o Movimento de Auto-Fortalecimento. Essa concepção foi exposta em A linha geral do partido para o período de transição (过渡时期总路线, Guòdù shíqí zǒnglùxiàn), uma resolução de 1953 na qual Mao enfatizava a necessidade de concentrar esforços no desenvolvimento da indústria pesada para estabelecer a fundação da modernização industrial e da defesa da nação.[9]

A estratégia de priorizar a indústria pesada e “se tornar mais forte antes de ficar mais rico” (先强后富, xiānqiáng hòufù) é, de certa forma, inevitável para os países menos desenvolvidos. No entanto, a industrialização tem um custo muito alto, exigindo a acumulação de grande quantidade de capital. Se não for possível obter fontes de investimento e drenar recursos externos, em geral será necessário que o investimento em indústria pesada seja extraído das áreas rurais domésticas. No início da RPC, a única forma de avançar com a industrialização foi reconcentrar a terra distribuída, aumentando a gestão centralizada e distribuição do excedente agrícola por meio do movimento popular comunal. Além dos impostos agrícolas, um instrumento chamado “monoṕolio estatal de compra e comercialização” (统购统销, tǒnggòu tǒngxiāo) redirecionou o excedente agrícola para a indústria e as cidades.

A industrialização também demandou um grande número de trabalhadores qualificados, tornando necessário destinar recursos massivos para a construção de um sistema de educação moderno – com a popularização da educação primária e secundária, o desenvolvimento de instituições de educação superior, aumentando a população escolarizada de dezenas ou centenas de milhares para dezenas de milhões. Assim, diante da necessidade premente de industrialização, a China rapidamente concluiu sua fase de Nova Democracia e entrou no estágio inicial do socialismo. Em 1953, o PCCh adotou a linha geral de “uma transformação e três reformas” (一化三改, yīhuà sāngǎi), por meio da qual o socialismo 1.0 foi gradualmente estabelecido no país, orientado pelos seguintes princípios político-econômicos: propriedade pública dos meios de produção, economia planejada e distribuição conforme o trabalho.[10] Semelhante ao modelo soviético, esse foi um sistema de acumulação eficiente nos primeiros estágios da industrialização da China.

Entretanto, à medida que o processo de industrialização socialista avançava, a contradição entre a industrialização e o objetivo de igualdade socialista tornou-se evidente. O modelo de industrialização liderada pelo Estado – que priorizava a indústria pesada – inevitavelmente exigia um grande número de funcionários do governo, executivos das empresas e profissionais. Tal demanda se expandia junto com a industrialização. Como resultado, os meios de produção se concentraram nas mãos dos gerentes e não dos trabalhadores, levando a uma tendência de burocratização. No final dos anos 1950, Mao percebeu que, se a produção continuasse a se desenvolver desta forma, iria gerar uma classe gerencial dentro do sistema – gerentes com seus próprios interesses que acumulariam o controle de assuntos governamentais e empresariais, e usariam seu poder para minar a propriedade pública. Em outras palavras, essa classe burocrática usaria sua posição para administrar a economia, usufruindo dos benefícios da industrialização, ao passo que deslocaria os custos da industrialização para as pessoas comuns, especialmente para o campesinato.

Diante desse dilema, Mao procurou um novo modelo de industrialização que “permitisse ao povo administrar diretamente os processos produtivos” por meio de uma campanha chamada “agarrar a revolução, promover a produção” (抓革命促生产, zhuā gémìng cù shēngchǎn). Assim, buscou tornar complementares os objetivos da industrialização e da igualdade, que de outra forma seriam contraditórias. Em seu comentário sobre o livro de Stalin Problemas econômicos do socialismo na URSS (1951), Mao apontou que a transformação socialista das propriedades dos meios de produção não necessariamente resultaria na tomada do controle da produção pelos trabalhadores.[11] Para Mao, a propriedade pública dos meios de produção não garantiria que a China se desenvolvesse em uma direção socialista, na qual o povo trabalhador dirigiria seu país. Por isso, eram necessárias adaptações e experiências no nível da liderança política e cultural – ou seja, era preciso romper com o regime legal burguês. Com esse objetivo, Mao impulsionou uma série de iniciativas nas décadas seguintes, fortalecendo a orientação e a supervisão política dos quadros, e conduzindo diversas medidas experimentais destinadas a resolver esse problema. Isso incluiu a crítica ao sistema salarial baseado em ranqueamento, o envio de um grande número de quadros para o trabalho manual no campo e nas fábricas, a recomendação de políticas que reorganizassem a divisão do trabalho, campanhas de formação socialista, e assim por diante. Mao também propôs que a economia deveria “andar com duas pernas” (两条腿走路, liǎngtiáotuǐ zǒulù). Ou seja, o desenvolvimento econômico não poderia depender apenas do modelo liderado pelo Estado, também eram necessárias mobilizações massivas para reverter os retrocessos surgidos da dependência que este modelo tinha dos tecnocratas para implementar as diretrizes da economia centralmente planejada. Isso foi exemplificado pela emergência de políticas que reorganizaram a divisão do trabalho, como a Constituição Angang (鞍钢宪法, Āngāng xiànfǎ), em 1960, e sua prática de “duas participações e uma reforma” (两参一改, liǎngcān yīgǎi), elogiada por Mao.[12] Tais esforços refletiam a preocupação constante de Mao de assegurar que a industrialização do país prosseguisse em direção ao socialismo, seus esforços para corrigir os desequilíbrios provocados pela industrialização e seu compromisso com o ideal de igualdade.

De forma geral, entre a fundação da RPC, em 1949, e o início da reforma e abertura, no final dos anos 1970, a China gradualmente se transformou em um país industrializado. Nesse período, a estrutura social da China permaneceu relativamente igual e as divisões sociais não eram tão acentuadas. No entanto, embora o modelo de desenvolvimento baseado em “se tornar mais forte antes de ficar mais rico” tenha contribuído para a industrialização do país, a população, em geral, permaneceu na pobreza. As contradições entre o modelo de industrialização liderado pelo Estado e o objetivo da igualdade se tornaram crescentemente proeminentes na era de Mao. Além disso, impulsionado pela longa onda de pensamento radical no país, Mao tentou resolver estes problemas com o Grande Salto Adiante (1958-1962) e com a Revolução Cultural (1966-1976), mas ambas iniciativas terminaram fracassando. As gerações seguintes continuaram lidando com essa dupla busca do socialismo chinês: industrialização e igualdade.

3. Os dilemas internos do socialismo 1.0

Desde Marx, a teoria socialista teve os seguintes objetivos centrais: superar a propriedade privada capitalista e a concorrência desenfreada por meio da propriedade pública e da economia planejada, eliminar a exploração e implementar a distribuição conforme o trabalho. No entanto, foram necessárias adaptações substantivas à teoria socialista, tanto para o caminho socialista liderado pelo Estado, iniciado por Lenin, como para o caminho social democrata da Europa ocidental. O socialismo vislumbrado por Marx supostamente seria alcançado nos países capitalistas desenvolvidos, onde a acumulação de capital social teria alcançado um nível considerável, proporcionando as condições para uma economia planejada e para a distribuição conforme o trabalho.

No entanto, nem a União Soviética nem a China eram países desenvolvidos capitalistas e, então, o primeiro passo nestes países era definir como acumular capital rapidamente para estabelecer as bases da propriedade pública. No início do século XX, a estrutura centro-periferia do capitalismo mundial tomou forma, o que significou que os países socialistas não poderiam depender do mercado mundial para acumular capital rapidamente. Como resultado, os países socialistas tiveram que experimentar e, às vezes, reformular rapidamente suas políticas econômicas, uma dinâmica observada na União Soviética. Durante a guerra civil, em resposta ao estado de emergência e à necessidade de manter o poder político, Lenin implementou, de 1918 a 1921, o “comunismo de guerra” – caracterizado pela quase total nacionalização da economia e requisição compulsória dos produtos alimentícios do campesinato. Com o fim da guerra civil, diante da necessidade imperativa de crescimento da produtividade, Lenin teve que implementar uma série de mudanças radicais (em alguma medida, concessões), como a implementação da Nova Política Econômica (1921-1928) e a permissão para o desenvolvimento do capitalismo e de uma economia de mercado sob controle do Estado. Enquanto isso, Stalin teve outra abordagem, mais custosa, substituindo o mercado por um sistema burocrático organizado para assumir a pesada responsabilidade de planejamento e distribuição.

Na China, a fase inicial da industrialização se baseou, em grande medida, na privação das áreas rurais. Uma das funções do movimento comunal rural era direcionar o excedente agrícola para a industrialização. Em comparação com a União Soviética, no entanto, a China não transferiu completamente os custos da acumulação de capital industrial para as áreas rurais. Mao, junto com outros líderes, convocou todo o país para “apertar os cintos”, ou seja, para que toda a população assumisse os custos da acumulação de capital. Objetivamente, tanto na União Soviética como na China, a economia planejada desempenhou um papel importante precisamente na fase inicial da industrialização. Durante essa fase, as estruturas sociais e econômicas eram relativamente simples, e, por isso, era possível que o Estado formulasse os arranjos planejados para a produção, comércio, distribuição e consumo. No entanto, quando a industrialização foi além desta fase inicial, a divisão do trabalho industrial tornou-se crescentemente complexa e as cadeias de produção se estenderam, conduzindo a um rápido declínio na eficiência do planejamento, ao “entupimento das linhas” ao longo do sistema econômico e a uma crise de informação onde não havia comunicação interna suficiente para realizar os ajustes necessários à política.

Embora Mao tivesse a expectativa de que priorizar a participação popular na administração da produção promoveria a efetivação da concepção de Marx sobre o controle dos meios de produção pelos trabalhadores, tais esforços enfrentaram dificuldades profundas na realidade. À medida que a industrialização avança, a divisão do trabalho se intensifica, não apenas em termos de trabalho industrial, mas também nos cargos e funções de gerentes e pesquisadores científicos. Além disso, como a industrialização desenvolve processos de produção, distribuição e consumo cada vez mais complexos, a quantidade de informação gerada também cresce em comparação com a sociedade agrícola, demandando um sistema burocrático organizado de gestão de informação. Esse sistema burocrático, tal como articulado por Max Weber e outros autores, é necessário não apenas no interior das unidades produtivas, mas para a sociedade como um todo. Nesse sentido, em tempos de desenvolvimento pacífico, um dos efeitos colaterais da industrialização é que um partido político de vanguarda pode se dividir rapidamente em componentes burocráticos cada vez mais sofisticados, e em diferentes agrupações políticas. Mao esperava que esse problema pudesse ser resolvido pela substituição do sistema burocrático pela auto-organização popular. Sua confiança deve ter se originado pela experiência de guerra popular do PCCh. Com a prática da linha de massa, o partido foi capaz de realizar mobilizações sociais poderosas e processos políticos dinâmicos que integraram a vanguarda do partido com o povo.

Mao queria reviver o modelo organizativo da guerra popular durante a industrialização para impulsionar o desenvolvimento nacional. No entanto, esse modelo organizativo foi exitoso em um contexto histórico específico, no qual havia um forte sentimento de urgência entre o povo, devido à guerra civil chinesa (1927-1937; 1945-1949) e a Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa (1937-1945). Na sequência da vitória da Revolução e no início da construção nacional, esse senso de urgência se dissipou gradualmente. Além disso, as condições durante a era do socialismo 1.0 não eram propícias para que o povo lidasse com as complexidades do desenvolvimento do país, uma vez que, deliberada ou inadvertidamente, os sistemas burocráticos do partido e do governo distorceram e desintegraram a auto-organização das massas. Assim, os objetivos de Mao eram difíceis de implementar na prática.

Outro problema que não pôde ser solucionado à época foi o ajuste do sistema de alta acumulação durante o início da RPC. Depois de completar a fase inicial de acumulação industrial, o próximo desafio de um Estado socialista seria promover um ciclo estável para reprodução ampliada. Isso envolve duas tarefas: primeiro, é necessário ajustar a proporção de acumulação e consumo de forma razoável, conduzir reformas fiscais e financeiras e gerar poder sustentável para o crescimento econômico. Porém, no socialismo 1.0, as políticas fiscais e financeiras da China eram relativamente conservadoras, levando a uma oferta monetária insuficiente que suprimiu a expansão do consumo, resultando na ausência de motivação para a evolução industrial. Além disso, é necessário resolver o problema da integração da economia nacional ao sistema econômico internacional. O sistema moderno de produção industrial em massa depende de insumos de recursos e produtos que extrapolam fronteiras e regiões. É difícil sustentar o crescimento econômico dependendo apenas do investimento e consumo interno. Um ciclo econômico efetivo deve ser estabelecido por meio de comércio internacional para manter a vitalidade.

No início da década de 1930, a União Soviética tentou atrair capital e tecnologia dos Estados Unidos, que estavam em meio a uma crise econômica à época e tinham uma demanda objetiva por produção industrial e de capital. Essas condições eram favoráveis para promover a cooperação e o desenvolvimento acelerado da economia soviética. Na sequência, a União Soviética se comprometeu a construir o campo socialista, não apenas por motivos políticos ou de segurança, mas também para estabelecer um ciclo econômico entre os países socialistas. Depois da revolução de 1949, a China se somou ao campo socialista e recebeu uma quantia significativa de capital soviético e apoio técnico, especialmente após a Guerra da Coreia (1950-1953), conhecida na China como Guerra de Resistência à Agressão dos EUA e de Ajuda à Coreia (抗美援朝战争, Kànɡměi yuáncháo zhànzhēnɡ). Esse apoio permitiu que a industrialização básica da China transcorresse sem maiores problemas. Mas o sistema econômico liderado pela União Soviética também produziu seus próprios desequilíbrios entre os países. Finalmente, Mao e a liderança do partido decidiram romper com o sistema soviético, assim como romperam com o sistema econômico capitalista mundial em 1949, o que resultou na permanência da economia da China relativamente fechada por um longo tempo.

Em geral, a visão do socialismo 1.0 pode ser sintetizada da seguinte forma: sob propriedade pública, os trabalhadores coletivamente administraram os meios de produção, produzindo para seu próprio bem estar material e espiritual, e não para o lucro. De fato, a economia planejada e o sistema de propriedade pública criaram um sistema de acumulação no qual os custos eram compartilhados pelo povo como um todo, e a industrialização básica foi completada em um período relativamente curto de tempo. No entanto, essa estrutura econômica também tinha limitações inerentes, relativas à sustentabilidade do desenvolvimento interno e às dificuldades de conexão com o ciclo econômico externo. Enfim, o modo de produção e a capacidade de organização da China durante o socialismo 1.0 não foram suficientes para concretizar verdadeiramente os ideais socialistas de igualdade e cooperação. Esse foi o desafio enfrentado por Deng Xiaoping (邓小平) e demais líderes que conduziram a China para sua nova fase do socialismo.

Socialismo 2.0

1. A economia política do socialismo 2.0

Tendo experimentado e participado da construção do socialismo 1.0, Deng Xiaoping compreendia com nitidez seus problemas. Em contraste com a ênfase de Mao nos objetivos idealistas de “combater o individualismo e criticar o revisionismo” (斗私批修, dòusī pīxiū), “ser justo e altruísta” (大公无私, dàgōng wúsī) e “servir ao povo” (为人民服务, wèi rénmín fúwù), Deng Xiaoping estava mais inclinado a uma abordagem realista, devido a seu longo envolvimento na linha de frente do trabalho econômico. Essa orientação se expressou em uma reunião com convidados estrangeiros em 1979, quando Deng afirmou ser um equívoco pensar que a economia de mercado só poderia existir no capitalismo, defendendo que o socialismo também poderia adotar uma economia de mercado e aprender algo com países capitalistas, tal como métodos de gestão de negócios.[13] A estratégia de Deng era transformar, gradualmente, a economia planejada em um instrumento de regulação macroeconômica, estabelecer o mecanismo de uma economia de mercado, e tentar compatibilizar a economia de mercado com a propriedade pública e a distribuição conforme o trabalho. Essa abordagem era significativamente distinta do socialismo 1.0, em que a economia planejada era uma base institucional inter-relacionada com a propriedade pública e a distribuição conforme o trabalho. Em 1984, a Resolução do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre a Reforma da Estrutura Econômica foi aprovada na Terceira Sessão Plenária do 12º Comitê Central do PCCh, o primeiro avanço no impasse entre a economia planejada e a economia de mercado.[14] Deng valorizou essa decisão, dizendo que este era um paradigma político e econômico que combinava os princípios básicos do marxismo com a prática socialista da China.

Inevitavelmente, as mudanças na estrutura básica da economia do país levantaram questões sobre o significado e a interpretação do socialismo. Especificamente, onde estariam seus elementos e características centrais? Embora fosse necessário elucidar, teoricamente, como tais reformas eram consistentes com o socialismo, Deng propôs que o partido deixasse de lado os debates teóricos e, ao invés disso, colocasse o foco em estabelecer metas específicas e em mapear a trajetória para a nova direção de desenvolvimento do país. Assim, ao promover a reforma econômica, Deng ajustou a teoria das fases históricas do desenvolvimento que havia sido adotada durante o período do socialismo 1.0. Em 1987, o 13º Congresso Nacional do PCCh propôs o entendimento de que a China, devido a seu subdesenvolvimento histórico, estava na “primeira fase do socialismo” (社会主义初级阶段, shèhuì zhǔyì chūjí jiēduàn), durante a qual a principal tarefa seria desenvolver as forças produtivas e estabelecer uma estratégia de desenvolvimento de três passos para alcançar um padrão de vida relativamente bom para o povo e efetivar a modernização socialista até o centenário da revolução.[15] Na sequência, em 1992, o 14º Congresso Nacional do PCCh declarou que a reforma da China tinha como objetivo estabelecer um sistema de economia socialista de mercado. Esta era, efetivamente, uma mudança na concepção clássica de socialismo, por não insistir em que uma economia totalmente planejada seria necessária para assegurar a propriedade pública e distribuição conforme o trabalho. Adaptações correspondentes foram feitas à teoria das fases históricas do desenvolvimento, gradualmente esclarecendo que era necessário construir uma economia socialista de mercado durante a primeira fase do socialismo. Juntos, esses desenvolvimentos teóricos formaram a base do socialismo com características chinesas.

2. Os desafios do socialismo 2.0

Durante o período de reforma e abertura, a indústria chinesa cresceu rapidamente, devido à ativação da demanda interna e ao acesso a investimentos externos pela integração ao mercado mundial. Tendo a circulação econômica doméstica e internacional como suporte, a industrialização embarcou em um processo sustentado de desenvolvimento soberano e rápido crescimento, passando da fase de acumulação industrial para a evolução industrial.

Na economia socialista de mercado, de acordo com Deng, o mercado é apenas um meio para concretizar a visão socialista de construção de uma “sociedade moderadamente próspera” (小康社会, xiǎokāng shèhuì) e alcançar a “prosperidade comum” (共同富裕, gòngtóng fùyù). No entanto, com o desenvolvimento acelerado da economia de mercado, essa visão enfrentou problemas crescentes.

Em primeiro lugar, o paradigma teórico de Deng não tinha uma narrativa histórica convincente como suporte. Ou seja, não identificava um caminho nítido para o desenvolvimento socialista da China, criando uma fragilidade no novo paradigma ideológico do partido. A teoria socialista da era Deng acrescentou um novo segmento à narrativa histórica apresentada por Mao em A nova democracia, inserindo a primeira fase do socialismo na transição proposta do socialismo ao comunismo. No entanto, essa formulação de uma primeira fase do socialismo não respondia a duas questões fundamentais: existe uma fase superior que segue à primeira fase do socialismo? E, como esse caminho levaria, finalmente, ao comunismo? Naquela época, o partido não tinha a capacidade nem os recursos para responder a essas questões e apenas poderia adiar o tema, sem discuti-lo.

Em segundo lugar, o sistema econômico básico do socialismo 2.0 também enfrentou uma série de dificuldades. A preocupação central da teoria da economia socialista de mercado era sobre a compatibilidade entre socialismo e economia de mercado. Socialismo, como uma forma de propriedade, é caracterizado pela propriedade pública e coletiva, enquanto o mercado, teoricamente, aloca recursos, baseando os tipos de produtos e escalas de produção de diferentes empresas nos indicadores de preço determinados pelas forças de oferta e demanda. Assim, em teoria, formas diversas de propriedade deveriam ser compatíveis com o mercado. Os proponentes da economia socialista de mercado argumentaram que o socialismo poderia desenvolver uma economia de mercado no lugar da economia planejada, mantendo os dois elementos básicos do socialismo: propriedade pública e distribuição conforme o trabalho. No entanto, na prática, a economia de mercado começou a minar esses dois princípios socialistas. No final dos anos 1980, o setor comercial da China foi gradualmente privatizado e, após 1992, um grande montante de investimento externo chegou ao país, e a propriedade privada da produção começou a se expandir. Em 1997, o PCCh adotou a política de “agarrar os grandes e deixar os pequenos irem” (抓大放小, zhuādà fàngxiǎo), concentrando-se em manter o controle do Estado sobre empresas de propriedade estatal (SOE, pela sigla em inglês) maiores e estrategicamente mais importantes, como são os setores bancário e de energia, ao passo que se flexibilizava o controle sobre empresas estatais menores e não estratégicas, como a indústria leve. Sob essa política, as reformas tiveram como resultado a privatização básica de empresas estatais locais, uma grande perda de ativos estatais, a exposição da classe trabalhadora às forças do mercado e o distanciamento do partido de sua base.

Ao mesmo tempo, houve uma mudança do princípio de “distribuição conforme o trabalho” para a “distribuição conforme outros fatores”, tais como capital, terra e tecnologia que, escassos, em geral ocuparam posição vantajosa em relação ao trabalho nas transações do mercado. A prioridade extrema da eficiência econômica ampliou e abusou das vantagens desses outros fatores sobre o trabalho. Isso iria, inevitavelmente, comprimir a proporção do excedente distribuído ao trabalho, levando a uma crescente separação entre os trabalhadores e os meios de produção, assim como a uma deterioração contínua das condições de vida da classe trabalhadora. Esta tendência era exacerbada pela insuficiência de serviços públicos. Se o custo dos primeiros 30 anos de industrialização havia sido distribuído de forma equânime para toda a população, por meio da poderosa vontade do Estado, nos 30 anos seguintes, os custos da reforma orientada ao mercado recaíram mais sobre os setores populares.

Socialismo 3.0: em direção ao futuro

Para a China, tanto a prática do socialismo 1.0 nas três primeiras décadas que seguiram à revolução, quanto a implementação do socialismo 2.0 nas três décadas subsequentes, demonstraram como os ideais e crenças socialistas estavam integrados às realidades do país. Essa integração faz com que seja irracional qualquer desvio radical da China de seu caminho socialista. No entanto, o desafio enfrentado pela China repousa no fato de que não existe um modelo externo que sirva de ponto de partida para ajustar o socialismo 2.0.

Com a evolução do panorama internacional político e econômico e as transformações nas formas de produção, tanto o caminho da social-democracia da Europa ocidental, como o caminho dos Estados Unidos – de negação completa do socialismo –, entraram em crise devido a suas contradições inerentes. Assim, a reforma do caminho socialista da China precisa se basear em sua própria prática.

Concentrar-se na própria prática da China não significa separar o país do mundo externo. Pelo contrário, a realidade fundamental da China contemporânea é sua profunda integração com o mundo. Dessa forma, as discussões sobre o socialismo na China precisam considerar as mudanças políticas e econômicas globais como pano de fundo. Assim como Marx empreendeu grandes esforços para compreender e analisar a lógica interna e o funcionamento do capitalismo industrial moderno, em meados do século XIX, hoje é preciso compreender e analisar o funcionamento e a lógica interna da atual forma de produção e sua transformação.

Ações racionais só podem ser adotadas de acordo com a direção dessa transformação e, em momentos e conjunturas críticas, escolhas relativamente coerentes deveriam se basear nas condições históricas dadas. Para a China, o socialismo não pode ser simplesmente limitado a um manifesto assinado pelo partido no poder. Deveria ser, também, um conceito e um recurso prático para repensar a participação pública e recriar a comunidade política. Em meio a um novo cenário mundial e da ascensão de novas formas de produção, a nova direção do socialismo deve ser considerada seriamente.

Os princípios centrais do socialismo 1.0 – a economia planejada, a propriedade pública e a distribuição conforme o trabalho – foram construídos por meio de reflexão e aprimoramentos no modelo de produção de massa. A base da produção de massa é o trabalho coletivo: os trabalhadores se reúnem em um local de trabalho comum e trabalham uns com os outros, operando os meios de produção para produzir e montar bens. Os princípios do socialismo 1.0 buscavam permitir que os trabalhadores controlassem os meios de produção com base no trabalho coletivo de modo a se libertarem da exploração da burguesia, e a melhorar a estrutura de trabalho e as condições de vida da classe trabalhadora. O socialismo 3.0 deveria buscar novas abordagens para corrigir os abusos provocados pela posição dominante do capitalismo na economia global, visando a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e ampliando seu controle dos meios de produção, ao mesmo tempo em que reconhece a necessidade de uma economia de mercado. Na China, é preciso limitar os abusos do capital e melhorar a posição do trabalho no processo produtivo, de forma alinhada com as dinâmicas de industrialização, e, finalmente, construir um modelo de industrialização mais inclusivo e justo. Evidentemente, esse objetivo não pode ser alcançado por meio de ajustes espontâneos do mercado e exige que o Estado assegure e mantenha sua liderança no domínio econômico.

Desde o início da revolução, o Estado chinês tem demonstrado certa singularidade, ao possuir múltiplas forças executivas que perpassam a sociedade, a política e economia do país. Mesmo após as reformas administrativas durante o socialismo 2.0, o Estado continuou possuindo uma razoável iniciativa econômica, não apenas em termos de suas políticas públicas mas, sobretudo, pelas empresas (SOE’s) e sistemas de terras de propriedade estatais.

Ao empreender essa tarefa hercúlea, o país deve estar atento à eventual burocratização que pode surgir dos esforços para regular a produção. Para continuar liderando o povo chinês, o PCCh deve usar efetivamente seu poder e recursos para reestruturar as relações de produção e promover os interesses da classe trabalhadora, conquistando, com isso, o apoio do povo. Na era do socialismo 1.0, o PCCh distribuiu os principais meios de produção – a terra – para o campesinato e formou a classe trabalhadora por meio da industrialização. Como resultado, os interesses gerais do PCCh e do povo estavam alinhados, e a base social do partido era sólida. Entretanto, na era do socialismo 2.0, o PCCh introduziu e desenvolveu a economia de mercado, e instituiu a eficiência como princípio central para orientar a alocação de recursos, incentivando o enriquecimento individual. Essa abordagem atendia às “crescentes necessidades culturais e materiais do povo” (人民群众日益增长的物质文化需求, rénmín qúnzhòng rìyì zēngzhǎng de wùzhì wénhuà xūqiú), mas também estabelecia as bases para uma grave crise. Atualmente, se o PCCh pretende reconstruir sua base social, não pode simplesmente ajustar suas políticas de bem-estar social. É preciso regenerar sua base de classe, por meio da ampla melhoria das condições de vida da classe trabalhadora, de uma distribuição de renda mais equilibrada por todo o país, e da elevação do status do trabalho no sistema industrial, assim como deve colocar limites aos abusos do capital.

Além dos âmbitos econômicos e sociais, também é preciso reconhecer que os valores e ideais inerentes ao socialismo são um recurso importante para a China enquanto uma comunidade política e cultural. As ideias socialistas foram rapidamente aceitas e difundidas na China moderna não apenas porque eram próximas ao tradicional ideal chinês de “Grande Unidade” – até hoje, muitos chineses compreendem o socialismo a partir desse conceito cultural –, mas também pela bem sucedida adaptação da narrativa socialista das fases históricas do desenvolvimento ao contexto chinês, por Mao e outros. É, precisamente, nesta narrativa que a aceitação popular do socialismo conquistou unidade de consciência e convicção.

Em um país socialista, a narrativa materialista histórica do desenvolvimento é informativa e esclarecedora. Pode-se afirmar que essa narrativa histórica joga um papel na manutenção da crença pública no sistema político e na trajetória de desenvolvimento nacional em países não religiosos, como a China, assim como a tradição cristã desempenha um papel político importante em democracias liberais, como nos Estados Unidos, Europa e outros países ocidentais. Para um país do tamanho da China, é preciso desenvolver um conjunto de valores e ideais comuns que sejam refletidos nos processos políticos e econômicos reais, ao invés de mera propaganda ideológica. Sob condições históricas em constante transformação, a China deve mobilizar seus próprios ideais e tradições culturais para recriar e revitalizar seus valores comuns, assegurando a sobrevivência do país e guiando-o para a direção correta.

Referências bibliográficas

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Deng Xiaoping. “Nós podemos desenvolver uma economia de mercado no socialismo”. Traduzido por Abner Garcia Castanho. Arquivo Marxista na Internet, 26 de novembro de 1979.

Mao Zedong. “Sobre os ‘Problemas Econômicos do Socialismo na URSS’ de Stalin”. Traduzido por Eduardo Vasco. Arquivo Marxista na Internet, novembro de 1958.

Mao Zedong. “A Nova Democracia na China”. Problema – Revista Mensal de Cultura Política, n. 20, ago./set. 1949.

Mao Zedong. “A Revolução Chinesa e o Partido Comunista da China”. In: Obras Escolhidas de Mao Tse-tung, Vol. 2. Pequim: Edições do Povo, 1975.

Mao Zedong. “The Party’s General Line for the Transition Period” [A linha geral do partido para o período de transição]. In: Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 5. Pequim: Foreign Languages Press, 1977.

Comitê Central do Partido Comunista da China. “Decision of the Central Committee of the Communist Party of China on Reform of the Economic Structure”. Beijing Review 27, n. 44, out. 1984.

Notas do autor

1. A expressão “Socialismo com características chinesas” foi cunhada por Deng Xiaoping (邓小平) em 1982, nas fases iniciais da reforma e abertura para enfatizar que o socialismo na China deveria ser adaptado às condições do país.

2. Depois da primeira Guerra do Ópio (1839-1842), a China caiu gradualmente no status de Estado semi-colonial e semi-feudal controlado por potências estrangeiras. O período de mais de 100 anos – de meados do século XIX até a revolução socialista de 1949 – é conhecido como o “século de humilhação” da China (百年国耻, bǎinián guóchǐ). Durante esse período, o conjunto de movimentos revolucionários que lutaram contra a invasão imperialista e em busca de independência e libertação nacional da China é chamado de Movimento pela Salvação Nacional (救国运动 jiùguó yùndòng), por sua importância em “salvar” a nação chinesa quando esta estava no limite da sobrevivência.

3. “Grandes mudanças inéditas em três mil anos” foi uma expressão usada por Lin Hongzhang (李鸿章), líder político do final da dinastia Qing (清朝, 1644-1912), que advogou pela modernização industrial e militar da China para descrever as mudanças geopolíticas que estavam acontecendo no século XIX em âmbito mundial.

4. “Grande Unidade” é um conceito utópico da filosofia tradicional chinesa e se refere a toda humanidade vivendo em uma comunidade harmônica. O conceito data de vários milhares de anos, tendo aparecido pela primeira vez no antigo texto confuciano “Livro dos Ritos” (礼记, Lǐjì), e permanece como um ideal político influente.

5. No início da década de 1920, sob a manipulação de potências imperialistas, a China foi mantida em um estado de fragmentação e militarismo. “Senhores da guerra” de todos os portes saquearam e oprimiram o povo em suas áreas de domínio, conduzindo a uma depressão econômica e espalhando sofrimento. Em resposta às aspirações comuns do povo chinês de derrubar o imperialismo e pôr fim ao domínio dos senhores de guerra, o Partido Comunista da China promoveu ativamente a cooperação com o Partido Nacionalista da China, ou Kuomintang, para estabelecer uma frente única revolucionária. Após a formação da primeira frente única entre os dois partidos, o ritmo da revolução chinesa se acelerou e um movimento revolucionário contra o imperialismo e os “senhores da guerra” feudais irrompeu de 1924 a 1927, o que é conhecido como “Grande Revolução” ou “Revolução Nacional”.

6. Mao Zedong. “A Revolução Chinesa e o Partido Comunista da China”. In: Obras Escolhidas de Mao Tse-tung, Vol. 2. Pequim: Edições do Povo, 1975; Mao Zedong. “A Nova Democracia na China”. Problema – Revista Mensal de Cultura Política, n. 20 (agosto-setembro de 1949).

7. Nova Democracia, ou a Nova Revolução Democrática, é um conceito desenvolvido por Mao Zedong que se refere a uma fase da transformação revolucionária da China. Durante essa fase, o Partido Comunista deveria liderar uma frente única da classe trabalhadora, do campesinato, da pequena burguesia e da burguesia nacional, permitindo um desenvolvimento limitado do capitalismo nacional para superar o feudalismo e assegurar a independência nacional.

8. O Movimento de Auto-Fortalecimento (1861-1895) foi composto por uma série de reformas institucionais lançadas no último período da dinastia Qing, buscando modernizar a China em termos econômicos e militares.

9. Mao Zedong. “The Party’s General Line for the Transition Period” [A linha geral do partido para o período de transição]. In: Selected Works of Mao Tse-tung, Vol. 5. Pequim: Foreign Languages Press, 1977.

10. “Uma transformação e três reformas” foi a linha geral adotada pelo PCCh durante a transição ao socialismo. “Uma transformação” se refere à industrialização socialista do país, enquanto “três reformas” se referem à transformação socialista da agricultura, da indústria manufatureira e da indústria e comércio capitalistas.

11. Mao Zedong. “Sobre os ‘Problemas Econômicos do Socialismo na URSS’ de Stalin”. Traduzido por Eduardo Vasco. Arquivo Marxista na Internet, novembro de 1958.

12. “Duas participações e uma reforma” é uma referência às práticas da siderúrgica Angang, ou Anshang (atualmente conhecida como Ansteel Group) em 1960. “Duas participações” significava que os quadros deveriam participar do trabalho, enquanto os trabalhadores deveriam participar da administração. “Uma reforma” significava que regras e regulamentos inadequados deveriam ser reformados.

13. Deng Xiaoping. “Nós podemos desenvolver uma economia de mercado no socialismo”. Traduzido por Abner Garcia Castanho. Arquivo Marxista na Internet, 26 de novembro de 1979.

14. Comitê Central do Partido Comunista da China. “Decision of the Central Committee of the Communist Party of China on Reform of the Economic Structure”. Beijing Review 27, n. 44, out. 1984.

15. Deng Xiaoping.“In Everything We Do We Must Proceed From the Realities of the Primary Stage of Socialism” [Em tudo o que fazemos, devemos partir das realidades da primeira etapa do socialismo]. In: Selected Works of Deng Xiaoping, Vol. 3. Beijing: Foreign Languages Press, 1994.

Vol.1 N.º 2 | 27.06.2023

Wenhua Zongheng: Revista Trimestral do Pensamento Chinês | VOL.1 Nº 2

O caminho da China: da extrema pobreza à modernização socialista


China 2098: Bem-vindo de volta (中国2098:欢迎回家), 2019-2022. Crédito: Fan Wennan.

O socialismo é um processo histórico

“O conceito de socialismo está no centro de intensas batalhas ideológicas”. É o que a Fundação Longway (修远基金) afirma no primeiro artigo desta edição internacional da Wenhua Zongheng (文化纵横). “Em geral, esses debates permanecem no plano das ideias, […] enquanto ignoram que o socialismo é um processo histórico que se desenvolveu junto com a industrialização”.

Na China, a história da industrialização é inseparável da construção do socialismo, ao longo de suas diferentes etapas, progressos, tentativas e erros. Nas últimas décadas do século XX, o movimento socialista mundial se enfraqueceu com a dissolução da União Soviética. Nesse período, o sistema socialista da China passou por uma autotransformação por meio da reforma e abertura, sob a liderança de Deng Xiaoping. Ao mesmo tempo, observadores de todo espectro político interpretaram essa nova direção como a sentença de morte do projeto socialista na China, e como o início de um caminho capitalista do país. Essas análises iniciais, tanto de dentro como de fora do país, não tinham as informações necessárias nem o distanciamento histórico para avaliar o caráter socialista das reformas da China.

Apesar das conquistas sociais, econômicas e industriais do início do período socialista sob a liderança de Mao Zedong, três décadas depois da revolução, a China continuava sendo um país muito pobre, e a maioria do povo chinês permanecia vivendo na extrema pobreza. Nessa situação, Deng declarou que “pobreza não é socialismo. Socialismo é eliminar a pobreza”, e tentou construir um novo caminho para lidar com as necessidades de modernização do país e de melhores condições de vida para o povo. A reintrodução do capital privado e a integração da China no sistema econômico internacional fizeram parte dos esforços de desenvolver rapidamente as forças produtivas do país, priorizando estrategicamente algumas regiões para “deixar que aquelas que enriqueçam primeiro levem as demais junto consigo” (先富带后富, xiānfù dài hòufù). No Ocidente, de forma intencional ou não, essa formulação tende a ser reduzida a “deixar alguns enriquecerem primeiro”, omitindo a segunda parte da expressão, que responsabiliza os membros ou regiões mais ricos do país a “levar os outros consigo” em direção ao objetivo da prosperidade comum. Isso expressa a pobreza de informação sobre a China que existe fora do país, um fator crucial nas disputas sobre o conceito de socialismo.

No final de 2020, apenas quatro décadas após o início da experiência de Deng, a China anunciou o êxito da erradicação da extrema pobreza entre seus 1,4 bilhão de habitantes. Essa conquista histórica aconteceu em meio à pandemia global de Covid-19, durante a qual as crises sociais e econômicas se aprofundaram em todo o mundo e milhões de pessoas retornaram à situação de extrema pobreza, especialmente no Sul Global. A erradicação da extrema pobreza na China foi um dos dois objetivos centenários estabelecidos pelo Partido Comunista da China (PCCh), a serem cumpridos no aniversário de 100 anos do partido, fundado em 1921. Durante a última fase desse processo, de 2013 a 2020, a China empreendeu um programa de redução direcionada da pobreza (精准扶贫, jīngzhǔn fúpín), iniciado pelo presidente Xi Jinping, para tirar as últimas 100 milhões de pessoas chinesas da extrema pobreza. Isso se soma às mais de 700 milhões de pessoas que saíram da pobreza no país desde o início do programa de reforma e abertura. Desde 1978, a China respondeu por mais de 70% da redução da pobreza global. Como podemos compreender essa conquista impressionante? A quais processos e atores devemos dar os créditos e quais devem ser os fundamentos de nossa avaliação?

Apesar dos incríveis avanços econômicos da China nesse período, seria incompleto e equivocado atribuir a conquista da eliminação da extrema pobreza apenas à reforma econômica e à reintrodução das forças do mercado. Este número da Wenhua Zongheng, intitulado O caminho da China: da extrema pobreza à modernização socialista, é composto por três artigos que analisam detalhadamente a batalha centenária da China contra a pobreza, situando-a na experiência histórica de construção socialista no país.

No primeiro artigo, Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China, a Fundação Longway contextualiza a era atual do socialismo chinês e a batalha contra a pobreza dentro da busca histórica do PCCh por modernização e pelo objetivo duplo de industrialização e igualdade. Os autores argumentam que o método do partido para atingir tais objetivos, interrelacionados e, por vezes, contraditórios, evoluiu em três fases distintas. De 1949 a 1976, a era de Mao Zedong — chamada de “socialismo 1.0” — estabeleceu a propriedade pública dos meios de produção, mantendo a igualdade social e alcançando uma industrialização básica, mas encontrou limitações no desenvolvimento econômico. A essa fase se seguiu o “socialismo 2.0”, na era de Deng Xiaoping, que deu início a introdução da economia de mercado, em 1978, e alcançou grandes avanços econômicos e sociais. Porém levou a um aumento acentuado na desigualdade, a uma maior separação entre trabalhadores e meios de produção, e “estabeleceu as bases para uma grave crise”. Finalmente, no período contemporâneo, a China deve desenvolver um “socialismo 3.0”, a partir das eras anteriores, mas encarando seus limites, por meio do combate à desigualdade e da promoção dos interesses da classe trabalhadora. De fato, o 18º Congresso Nacional do PCCh, em 2012, marcou uma nova era no caminho socialista da China, com a elevação dos esforços de redução da pobreza à tarefa central do partido e da sociedade.

No segundo artigo, A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária alternativa na era pós-revolucionária da China, Li Xiaoyun (李小云) e Yang Chengxue (杨程雪) analisam a “batalha contra a pobreza” (扶贫攻坚, fúpín gōngjiān), argumentando que esta representa uma espécie de retorno do partido à sua agenda revolucionária. Os autores traçam as origens das políticas atuais de redução da pobreza nas práticas do início do movimento comunista na China, particularmente nas formas de governar do partido nas áreas das bases revolucionárias nas décadas de 1930 e 1940. Além de melhorar as condições de vida do povo, os autores argumentam que a batalha contra a pobreza teve um impacto político e econômico mais amplo, ao restabelecer a autoridade política do PCCh e reconstruir o consenso social no país. Li e Yang concluem que “isso expressa uma nova fase do governo do PCCh”, caracterizada pela “promoção de justiça social para concretizar a modernização do país”. Essa nova fase busca conduzir o país ao segundo objetivo centenário do PCCh, ou seja, construir uma sociedade socialista moderna até 2049, no centésimo aniversário da revolução chinesa. Para esses esforços, é fundamental o avanço do desenvolvimento e do bem-estar social nas áreas rurais. Com esse objetivo, em 2013, o PCCh lançou seu programa de redução direcionada da pobreza, para erradicar a extrema pobreza na China.

No terceiro artigo, Como a redução direcionada da pobreza mudou as estruturas de governança rural na China, Wang Xiaoyi (王晓毅) analisa como esse programa atingiu seu objetivo experimentando novas práticas, utilizando o método histórico de governo no modelo de campanha da era de Mao Zedong. Esse método se caracteriza pela mobilização de enormes quantidades de recursos humanos e materiais para a realização de tarefas de larga escala. Durante o período da reforma e abertura, devido ao desenvolvimento da economia de mercado, as áreas rurais foram esvaziadas com a migração em massa para as cidades, as organizações dos povoados se enfraqueceram e o partido e o Estado se distanciaram das bases, o que teve como resultado a diminuição do acesso aos serviços públicos nas áreas pobres. Wang detalha como, além de satisfazer as necessidades materiais imediatas da população rural, a redução direcionada da pobreza desempenhou um papel importante na reconstrução das organizações nos povoados, fortalecendo os processos democráticos de autogoverno local e reaproximando o partido de sua base rural – o que incluiu o envio de três milhões de quadros do partido para trabalhar nas áreas empobrecidas. Resta saber se essas experiências e inovações significativas da campanha de redução direcionada da pobreza poderão ser traduzidas em mudanças institucionais e se poderão efetuar transformações de longo prazo na governança rural.

Em novembro de 2022, em seu relatório ao 20º Congresso Nacional do PCCh, Xi afirmou que “a modernização chinesa é a modernização socialista conduzida sob a liderança do Partido Comunista da China”. Ele destacou cinco características do caminho da China rumo à modernização: a modernização de uma população enorme, prosperidade comum para todos, progresso material e ético-cultural, harmonia entre humanidade e natureza e desenvolvimento pacífico. Xi afirmou, ainda, que “ao realizar a modernização, a China não irá trilhar o velho caminho da guerra, colonização e espoliação adotado por alguns países. Esse caminho brutal e manchado de sangue do enriquecimento de alguns às custas de outros provocou muito sofrimento para os povos dos países em desenvolvimento. Nós iremos nos manter firmes no lado certo da história e no lado do progresso humano”. Assim como no caso do socialismo, a luta para redefinir o conceito de modernização, arrancando-o da hegemonia do Ocidente, é uma batalha ideológica fundamental em nosso tempo.

Não há dúvida de que o caminho da China para a modernização socialista tem importância global e, nele, a luta contra a pobreza desempenha um papel central. Entretanto, não se trata de um modelo único a ser reproduzido ou imposto a outros países, já que cada um tem suas próprias histórias e condições. Representa um caminho alternativo ao desenvolvimento capitalista ocidental e a possibilidade de que os povos e países do Sul Global sigam seu próprio rumo a uma modernização — e, talvez, para o socialismo —, defendendo firmemente a dignidade humana e a soberania nacional.

Socialismo 3.0: a prática e as perspectivas do socialismo na China

Fundação Longway

A batalha contra a pobreza: uma prática revolucionária alternativa na era pós-revolucionária da China

Li Xiaoyun

Yang Chengxue

Como a redução direcionada da pobreza mudou a estrutura de governança rural na China

Wang Xiaoyi

Vol.1 N.º 1 | 28.03.2023

Wenhua Zongheng: Revista Trimestral do Pensamento Chinês | VOL.1 Nº 1

No limiar de uma nova ordem mundial


Colagem de uma nova Rota da Seda, 2023, Fang Zixin.

Rumo ao diálogo entre civilizações

Vijay Prashad

Vijay Prashad é diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, editor chefe da LeftWord Books, e correspondente chefe da Globetrotter.

Está cada vez mais difícil ter discussões razoáveis sobre a situação do mundo em meio às crescentes tensões internacionais. O atual cenário de conflito e instabilidade globais emergiu ao longo dos últimos quinze anos, impulsionado, por um lado, pela crescente debilidade dos principais Estados do Atlântico Norte, liderados pelos Estados Unidos – aos quais chamamos de Ocidente – e, por outro, pela assertividade cada vez maior dos grandes países em desenvolvimento, exemplificada pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Este grupo de Estados, junto com vários outros, construíram as condições materiais para suas próprias agendas de desenvolvimento, incluindo a próxima geração de tecnologia, setor previamente monopolizado pelas empresas e Estados ocidentais por meio do regime de propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio. Ao lado dos BRICS, o surgimento de uma nova ordem econômica internacional é anunciada pela construção de projetos regionais de comércio e desenvolvimento na África, Ásia e América Latina que estão fora do controle ocidental, como são a Organização de Cooperação de Xangai (2001), a Iniciativa Cinturão e Rota (2013), a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (2011) e a Parceria Econômica Abrangente Regional (2022).

Desde a crise financeira internacional de 2007-08, os Estados Unidos e seus aliados do Atlântico Norte se tornaram plenamente conscientes da deterioração de seu status hegemônico no mundo. Esse declínio se deu porque tais países passaram dos limites de três formas decisivas: a primeira, militar, através das enormes despesas com as forças armadas e com guerras; a segunda, financeira, provocada pelo galopante desperdício de riqueza social no setor financeiro improdutivo, a imposição generalizada de sanções, a hegemonia do dólar e o controle de mecanismos financeiros internacionais (como o SWIFT); e a terceira, econômica, devido à greve fiscal e de investimento de uma parcela minúscula da população mundial, a quem só interessa encher ainda mais os seus imensos cofres privados. Essa extrapolação levou à debilidade dos Estados ocidentais, que perderam capacidade de exercer sua autoridade mundo afora. Como reação a seu próprio enfraquecimento e aos novos desdobramentos no Sul Global, os Estados Unidos conduziram seus aliados a iniciar uma campanha abrangente de pressão contra quem consideram ser seus ‘rivais mais próximos’, a saber, China e Rússia. Essa política externa hostil, que inclui guerra comercial, sanções unilaterais, diplomacia agressiva e operações militares, é comumente conhecida como Nova Guerra Fria.

A guerra informacional se soma a essas medidas tangíveis como um elemento chave na Nova Guerra Fria. Atualmente, nas sociedades ocidentais, qualquer esforço para promover um diálogo equilibrado e razoável sobre China e Rússia, ou mesmo sobre os países protagonistas no mundo em desenvolvimento, é duramente atacado por Estados, corporações e instituições midiáticas como desinformação, propaganda ou ingerência externa. Fatos estabelecidos e, sobretudo, perspectivas alternativas, viram tema de disputa. Como consequência, tornou- se virtualmente impossível se envolver em discussões construtivas sobre a ordem mundial em transformação sem ser alvo de cancelamento, seja nas discussões sobre os novos regimes de comércio e desenvolvimento, ou sobre as questões urgentes que requerem cooperação internacional, como mudança climática, pobreza e desigualdade. Nesse contexto, o diálogo entre intelectuais em países como a China e seus pares no Ocidente se rompeu. De forma semelhante, o diálogo entre intelectuais em países do Sul Global e na China também foi dificultado pela Nova Guerra Fria, que tem prejudicado os já frágeis canais de comunicação do mundo em desenvolvimento. Como resultado, o panorama conceitual, os paradigmas e os debates centrais que acontecem na China são quase inteiramente desconhecidos fora do país, o que dificulta muito a realização de discussões ponderadas entre os países.

A Nova Guerra Fria levou a um pico de sinofobia e racismo anti-asiático nos estados ocidentais, frequentemente incentivado por líderes políticos. O racismo ascendente nos Estados ocidentais aprofundou a ausência de engajamento genuíno de intelectuais ocidentais com as perspectivas, debates e discussões contemporâneas na China. E, devido ao imenso poder dos fluxos ocidentais de informação pelo mundo, tais posturas depreciativas também cresceram em muitos países em desenvolvimento. Embora haja um número crescente de estudantes estrangeiros na China, estes tendem a estudar disciplinas técnicas e, em geral, não se dedicam ou participam nas discussões políticas mais amplas na e sobre a China.

No atual clima global de divisão e conflito, é essencial desenvolver linhas de comunicação que incentivem o intercâmbio entre a China, o Ocidente e o mundo em desenvolvimento. O espectro de narrativas e de pensamento político dentro da China é imenso, e se estende de uma variedade de abordagens marxistas à defesa fervorosa do neoliberalismo, de profundas análises históricas da civilização chinesa às profundezas do pensamento patriótico que cresceram no período recente. Longe de serem estáticas, essas tendências intelectuais evoluíram no tempo e interagiram umas com as outras. Uma rica variedade de pensamento marxista emergiu na China, e abrange do maoísmo ao marxismo criativo. Embora todas essas vertentes se concentrem em experiências, história e teorias socialistas, cada uma desenvolveu uma escola de pensamento singular com seu próprio discurso interno, assim como debates com outras tradições. Já o panorama de pensamento patriótico é muito mais eclético, com algumas tendências se sobrepondo às vertentes marxistas, o que é compreensível, dadas as conexões entre marxismo e libertação nacional, ao passo que outras estão mais próximas às explicações culturais para os avanços do desenvolvimento da China. Essa diversidade de pensamento não se reflete em representações e na compreensão dos estrangeiros sobre a China – nem mesmo na literatura acadêmica – que, ao contrário, reproduz em demasia as posturas da Nova Guerra Fria.

Para contribuir com o desenvolvimento de uma melhor compreensão e engajamento com o pensamento e as discussões que acontecem atualmente na China, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Coletivo Dongsheng fizeram uma parceria com Wenhua Zongheng (文化纵横), um prestigiado periódico de pensamento cultural e político chinês contemporâneo. Criada em 2008, a Revista é uma referência importante sobre o desenvolvimento intelectual e os debates que acontecem atualmente na China, e publica edições bimestrais com artigos de intelectuais de um amplo leque de profissões em todo o país. Nessa parceria, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o coletivo Dongsheng irão publicar uma edição internacional da Wenhua Zongheng, lançando quatro edições por ano em inglês, português e espanhol, com curadoria realizada por nossa equipe editorial conjunta. A edição internacional irá incluir traduções de uma seleção de artigos das edições originais chinesas de particular importância para o Sul Global. Além disso, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social irá publicar uma coluna na edição chinesa de Wenhua Zongheng, colocando vozes da África, Ásia e América Latina em diálogo com a China (algumas das quais também serão publicadas na edição internacional). Ao contrário da divisão global perseguida pela Nova Guerra Fria, nossa missão é aprender uns com os outros rumo a um mundo de colaboração, e não de confrontação.

A crise na Ucrânia e a construção de um novo sistema internacional

Yang Ping

Cinco séculos de transformações globais: uma perspectiva chinesa

Yao Zhongqiu

Construindo os novos “Três Anéis”: a reconfiguração das relações exteriores da China diante do desacoplamento

Cheng Yawen

Construindo os novos “Três Anéis”: a reconfiguração das relações exteriores da China diante do desacoplamento | 28.03.2023
Observatorio de la Tierra de la NASA com modificações por by Mapthematics LLC. / Wikimedia Commons.

Construindo os novos “Três Anéis”: a reconfiguração das relações exteriores da China diante do desacoplamento

Cheng Yawen

O professor Cheng Yawen(程亚文) é diretor do departamento de Ciência Política da Escola de Relaçães Internacionais e Administração Pública, da Universidade de Estudos Internacionais de Xangai. Anteriormente lecionou no departamento de Teoria da Guerra e Pesquisa Estratégica, da Academia de Ciências Militares do Exército de Libertação Popular. Suas áreas de pesquisas incluem política comparada e estratégias de desenvolvimento nacional. Tem interesse de longa data em temas como os impactos da globalização nos países subdesenvolvidos, as estratégias de desenvolvimento dos países em desenvolvimento no contexto da globalização, e as relações entre a China e os países subdesenvolvidos.

A “operação militar especial” da Rússia contra a Ucrânia e o impasse instalado entre o Ocidente e a Rússia são acontecimentos históricos que indicam o fim iminente da onda de globalização iniciada nos anos 1980. Os absurdos esforços dos Estados Unidos para intimidar seus aliados a impor sanções assassinas contra a Rússia e para constranger outros países a tomar partido neste conflito conduziram o mundo a uma situação que lembra as lutas globais mortíferas do século XX. Tais acontecimentos colocam um grande desafio para a China. O fim dessa onda de globalização significa que o país já não terá o mesmo ambiente externo para o desenvolvimento, usufruído nos últimos quarenta anos, e que os Estados Unidos devem intensificar a ofensiva para restabelecer seu domínio sobre o sistema internacional e se desacoplar da China e da Rússia. O mundo passou por uma mudança de paradigma[1]. Diante de um possível desacoplamento forçado e completo dos Estados Unidos e dos países ocidentais, a China deve ter a iniciativa de ajustar sua orientação estratégica de relações exteriores, e priorizar as alianças com países com os quais possa desenvolver uma nova ordem internacional que a proteja contra as repercussões desse desacoplamento.

A regra tácita da ordem internacional: a estrutura de poder centro-periferia

Durante três décadas desde o colapso da União Soviética, as relações entre a Rússia e o Ocidente foram hesitantes. Inicialmente, a Rússia buscou construir laços amistosos com os Estados Unidos e os países ocidentais, depois se afastou gradualmente destes e, agora, entrou em uma confrontação feroz. A evolução dessa relação reflete os limites políticos da globalização. Diferente das noções românticas sobre a globalização que cresceram na sequência do fim da Guerra Fria, na realidade esse período testemunhou o estabelecimento da hegemonia estadunidense e o desmembramento da União Soviética e do campo socialista. Esse processo de globalização e a busca dos Estados Unidos por supremacia global são dois lados da mesma moeda, são condições um do outro, e se promovem mutuamente. Esse sistema não pode perdurar indefinidamente, devido a sua incapacidade de promover a igualdade internacional, com países desenvolvidos e em desenvolvimento presos em uma relação de dominantes e dominados. Por um lado, a globalização é abandonada, revertida e reformatada quando se volta contra seus promotores, ameaçando sua superioridade. Por outro, os países vão continuar resistindo à busca implacável dos Estados poderosos por dominação[2]. A operação militar especial da Rússia contra a Ucrânia é resultado da natureza de dominação dessa fase de globalização, e levou o sistema dominado pelos Estados Unidos a um impasse.

A expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o Leste, que já dura décadas, foi a principal razão do ataque preventivo da Rússia. Essa expansão militar não foi apenas uma questão de segurança, mas também econômica, parte dos esforços dos Estados Unidos para marginalizar a Rússia. Os esforços russos para aproveitar a globalização, avançar em seu desenvolvimento nacional e se tornar um país central na ordem mundial contrariam a lógica da globalização liderada pelos EUA. O capital internacional, particularmente o capital financeiro, se concentrou predominantemente em energia, grãos e minerais russos, setores que pode explorar para obter lucros extravagantes. No entanto, durante o mandato de Vladimir Putin como presidente da Rússia, o Estado fortaleceu seu peso em setores estratégicos para a segurança nacional e as condições de vida da população, e buscou construir uma união econômica eurasiana para criar espaço para seu próprio crescimento econômico. Isso irritou o capital estrangeiro. A expansão da OTAN ao leste expressa o controle do capital sobre a política com o objetivo de expandir seus mercados. Se a Rússia não puder responder efetivamente aos esforços que visam restringir seu espaço de desenvolvimento e ao aumento de sua marginalização, ela será ainda mais profundamente obrigada a ser mera produtora de bens primários e perderá o acesso à política das grandes potências. Isso aumentaria as probabilidades de crises políticas internas, que as elites russas pretendem evitar.

A estrutura de poder da ordem mundial contemporânea foi revelada pela expansão da OTAN ao leste e pelo regime de sanções abrangentes impostas pelos países ocidentais à Rússia. Após a Segunda Guerra Mundial, o sistema colonial europeu começou a desvanecer e, durante a segunda metade do século XX, a ordem mundial passou a estar centrada nas Nações Unidas e no direito internacional, notadamente no princípio de igualdade soberana dos Estados. Entretanto, a ordem hierárquica centro-periferia do sistema colonial europeu não desapareceu de fato. Ao contrário, continua a existir de forma implícita e dissimulada. As hierarquias de poder absoluto impostas pelos regimes coloniais foram substituídas por uma ordem internacional baseada em “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, na qual os Estados são soberanos e iguais em aparência, mas desiguais no exercício efetivo de poder[3]. Embora os Estados Unidos e seus aliados se refiram a esse sistema internacional como uma ordem “baseada em regras”, na qual cada nação deveria cumprir as mesmas regras, trata-se, com efeito, de uma ordem que gira em torno do Ocidente, e não da ONU e do direito internacional.

A hegemonia dos Estados Unidos no pós-guerra é a encarnação moderna da ordem global centro-periferia. O Grupo dos Sete (G7), estabelecido nos anos 1970, realiza reuniões anuais nas quais Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e os Estados Unidos discutem não apenas questões relativas a estes sete países, mas também questões globais sobre as quais negociam e determinam regras internacionais. A chamada ordem baseada em regras é, com efeito, uma ordem baseada nas regras estabelecidas pelos países ocidentais e seus aliados. O importante, aqui, é quem faz as regras. Nesse sistema internacional, a divisão do trabalho, a oferta monetária, a produção industrial e o estabelecimento de regras são atribuições exclusivas de um pequeno e seleto grupo de países. A posição vantajosa desses países seria rompida se outros países tentassem entrar nesse clube, perturbando a autoridade normativa, o domínio monetário e a superioridade tecnológica mantida pelo regime de propriedade intelectual. O surpreendente crescimento econômico da China nas últimas décadas rompeu precisamente essa ordem mundial centro-periferia do pós-guerra, ameaçando os privilégios estruturais dos países ocidentais, que jamais imaginariam que a China pudesse chegar ao centro do cenário global (mesmo que a China apenas esteja se aproximando dessa posição e ainda não tenha chegado a ela). Como resultado, nos últimos anos os Estados Unidos definiram a China como seu “concorrente estratégico” e demonstraram sua disposição de usar todos os meios para impedir seu desenvolvimento.

A expansão da OTAN para o Leste e a tentativa de Washington de contenção da China são indicações de que os Estados Unidos e os países ocidentais pretendem manter e reforçar suas posições de poder na ordem mundial. O conflito Rússia-Ucrânia e as abrangentes sanções ocidentais contra a Rússia evidenciaram, ainda mais, a verdade sobre o sistema global: a maioria do mundo se encontra no “campo” da periferia global, enquanto apenas poucos e seletos países estão nas “cidades” do centro global, cujo núcleo é ocupado pelos Estados Unidos. Esses países não pretendem ver o “campo” se transformar em “cidade”, como o são. China e Rússia atrapalham o “centro urbano” em dois aspectos fundamentais. Por um lado, devido a sua forte capacidade de controle de capital, os dois países são os maiores territórios do mundo que ainda não foram submetidos a dominação arbitŕaria da globalização capitalista. Por outro lado, sua força nacional é muito maior do que a de muitos países e bloqueia esforços do “centro urbano” de ampliar seu controle sobre o “campo” da periferia global. Durante essa onda de globalização, a China foi do “campo” para a “cidade” com seu crescimento econômico robusto e a ampliação de sua força nacional. Os países do centro, apesar de sua prévia apologia entusiasmada à globalização, agora protagonizam esforços de “desglobalização”, expondo os limites da universalidade da ordem mundial do pós-guerra. A integração da China e de outras nações do “campo” às “cidades” é simplesmente intolerável para os países centrais.

A base de apoio para o multilateralismo está no Sul Global

Desde a década de 1980, a China adotou a política de reforma e abertura e promoveu a cooperação internacional, incluindo, na última década, a apresentação da proposta de construir uma “comunidade de futuro compartilhado para a humanidade” (人类命运共同体, rénlèi mìngyùn gòngtóngtǐ). Esses esforços remontam à antiga noção chinesa de “grande unidade sob o céu” (天下大同, tiānxià dàtóng). No entanto, essa “grande unidade” não pode ser atingida apenas pela vontade da China. No atual contexto de hostilidade aberta do Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, contra Rússia e China, o mundo não pode mais ser visto de forma mecânica, nem é possível presumir simplesmente que todos estejam unidos em torno da paz e do desenvolvimento. Ao contrário, é preciso considerar seriamente as ameaças de competição, conflito e guerra. Ainda que se exclua a guerra dos resultados prováveis, é evidente que não é mais possível que a China continue buscando seu caminho de desenvolvimento no sistema de globalização dominado pelo Ocidente. Assim, a China deve reavaliar sua resposta à questão básica nas relações exteriores: quais países são parceiros potenciais da China, hoje e no futuro, e com quais países a China terá dificuldade de estabelecer e manter parcerias?

Como diz um conhecido ditado chinês, as coisas semelhantes se juntam e as pessoas semelhantes se dão bem (ou, pássaros da mesma plumagem voam juntos). O mesmo se aplica às nações. Aquelas nações que compartilham experiências, contextos e desafios semelhantes tendem a formar relações de cooperação mais sólidas. Desde o século XIX, o mundo passou por uma transformação global conduzida por três componentes principais: industrialização, construção racional de Estados-nação, e ideologias de progresso, passando de um mundo policêntrico, sem centro dominante, para uma ordem centro-periferia altamente interligada e hierárquica na qual o centro gravitacional está no Ocidente[4]. Entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, imperialismo e globalização foram os dois lados da mesma moeda: o imperialismo impulsionou a globalização, enquanto a globalização reforçou o imperialismo. Juntos, esses processos articulados confinaram as nações periféricas do mundo à prisão do subdesenvolvimento, da qual é extremamente difícil se libertar. O Ocidente, como antigo centro do sistema internacional e berço do imperialismo, produziu tanto a ordem colonial moderna como o sistema de hegemonia dos Estados Unidos, que dominam o mundo desde a segunda metade do século XX. Contudo, muitos movimentos revolucionários, notadamente as lutas anticoloniais do século passado, lutaram para superar a desigualdade e injustiça dessa estrutura global de poder centro-periferia.

Nessa ordem mundial desigual, os países centrais não acolhem de forma justa os países periféricos no centro e se opõem a revoluções na periferia. Assim, para se libertar da subordinação e exploração, os países periféricos precisam trabalhar conjuntamente e, ocasionalmente, explorar as fissuras entre os Estados do centro, cooperando taticamente com Estados centrais quando isso puder contribuir para o avanço da luta. Ao longo do século passado, durante a Revolução Chinesa e a consolidação do poder estatal, as principais forças externas nas quais a China se apoiou eram do Sul Global. Na primeira metade do século XX, o Partido Comunista da China (PCCh) integrou a Internacional Comunista, uma aliança de atores estatais e não estatais entre os povos colonizados e oprimidos do mundo. Durante a Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa (1931-45), a China se somou à Guerra Mundial Anti-Fascista, levantou a bandeira anti-imperialista e fomentou a luta para desmantelar as estruturas globais de desigualdade criadas pelos Estados imperialistas. Depois que a República Popular da China foi fundada em 1949, a China deu muita ênfase à cooperação com os países do Terceiro Mundo, apoiou os movimentos anti-coloniais e o desenvolvimento pós-independência na Ásia, África e América Latina. Foi de particular importância a participação ativa da China na Conferência de Bandung em 1955 – um passo importante na criação do Movimento dos Países Não Alinhados em 1961 – onde sua proposta de Cinco Princípios de Coexistência Pacífica (和平共处五项原则, hépíng gòngchǔ wǔ xiàng yuánzé) foi bem recebida. A conferência se tornou um marco das relações da China com o Sul Global, na qual cooperação e solidariedade tiveram um impulso positivo[5]. Foi com o apoio dos países periféricos que a República Popular da China retomou o assento que lhe é de direito nas Nações Unidas, e se tornou membro permanente do Conselho de Segurança.

A solidariedade e apoio mútuo entre a China e os países da Ásia, África e América Latina continuam sendo componentes importantes da abordagem chinesa às relações internacionais, com ênfase na cooperação multilateral com países em desenvolvimento do Sul Global para defender a soberania nacional e o desenvolvimento, em uma luta conjunta contra a ordem mundial desigual e injusta estruturada pelos países centrais. Apesar de focar em relações com os países periféricos, com o paradigma da “diplomacia omnidirecional” (全方位外交, quán fāngwèi wàijiāo), a China permanece aberta a estabelecer e desenvolver uma cooperação amistosa com os países ocidentais desenvolvidos e outras grandes potências. Entretanto, há que se atentar para o fato de que, no passado, a interação e cooperação entre China e os países centrais sempre tiveram duas pré-condições. Por um lado, a insistência da China em desenvolver relações exteriores tendo a independência, igualdade e benefício mútuos como premissas, e se opondo as hierarquias de poder existentes nas relações internacionais. Por outro lado, os países centrais colocaram um teto em sua colaboração com a China, a saber, a impossibilidade de alteração na posição dos países ocidentais no centro da estrutura global de poder. Sempre que uma dessas duas pré-condições não estava dada, a China – como parte do mundo em desenvolvimento – enfrentou sérios desafios para aprofundar sua cooperação com os países ocidentais, especialmente em matérias políticas.

Ajustando as prioridades geográficas das relações exteriores da China

Nos últimos quarenta anos, deixando de lado diferenças ideológicas e disparidades institucionais entre os países, a China buscou atuar junto com outras nações. Gradualmente, as relações internacionais da China passaram a ser guiadas pela seguinte lógica: as potências são o principal, as áreas do entorno são a primeira prioridade, os países em desenvolvimento são as fundações, e os fóruns multilaterais são os cenários importantes. No entanto, na medida em que a era da globalização chega ao fim, essa abordagem tem encontrado cada vez mais obstáculos. É improvável que o processo de desacoplamento da China em termos econômicos, tecnológicos, de conhecimento e intercâmbio entre as pessoas – iniciado pelos Estados Unidos, ao qual Washington coagiu outros países ocidentais a se somarem –, seja revertido. Pelo contrário, devido à guerra Rússia-Ucrânia, esse processo pode ser ainda mais intensificado.

Desde sua fundação em 1949, a República Popular da China passou por mudanças significativas na direção de sua política externa, todas tendo acontecido em resposta a situações históricas específicas: da proposta de Cinco Princípios de Coexistência Pacífica nos primeiros anos da RPC, à Teoria dos Três Mundos proposta no contexto da normalização das relações China-Estados Unidos nos anos 1970, e à ênfase ao desenvolvimento de parcerias com os países ocidentais como parte da transição à reforma e abertura após 1978. A situação contemporânea é definida pelo que o presidente da China Xi Jinping chamou de “grandes mudanças inéditas em um século” (百年未有之大变局, bǎinián wèi yǒu zhī dà biànjú) e pela tendência crescente dos Estados ocidentais de suprimirem os questionamentos à sua autoridade. Especialmente desde a eclosão da guerra entre Rússia e Ucrânia, os Estados ocidentais explicitaram sua disposição de se unir na pressão e contenção aos países em desenvolvimento, característica da atual ordem dominada pelo Ocidente que irá debilitar as relações internacionais por algum tempo. Não há como a China não ficar altamente alarmada pelas medidas punitivas que o Ocidente impôs à Rússia, já que estas podem ser impostas à China de forma similar no futuro. Por isso, é urgente e necessário que a China reavalie sua tradição de multilateralismo e reoriente a configuração geográfica de suas relações exteriores, fortalecendo suas parcerias com os países em desenvolvimento do Sul Global para fomentar um novo ambiente internacional que favoreçam a segurança nacional e o desenvolvimento de longo prazo da China.

Em 1974, Mao Zedong estabeleceu sua Teoria dos Três Mundos, categorizando os países do mundo em três grupos principais, cada um demandando da China uma relação distinta. O terceiro grupo, dos países em desenvolvimento do Terceiro Mundo, era o principal foco da China, que também formava parte do Terceiro Mundo. O povo e o governo chinês apoiaram com firmeza as lutas justas de todos os povos e nações oprimidas. Tomando como base as práticas e experiências anteriores da China em suas relações exteriores, a teoria delineou prioridades geográficas para os laços da China com outros países, e forneceu um importante guia ideológico para a abordagem do país com relação à cooperação Sul-Sul. Essa teoria permanece de grande relevância e deveria orientar a reconfiguração atual das prioridades geográficas das relações exteriores da China. Ao contrário da ênfase dedicada ao trabalho com países ocidentais desde o início da reforma e abertura há quatro décadas, a China agora precisa trazer o avanço do projeto Sul-Sul para o primeiro plano.

Seja em relação a assuntos diplomáticos, desenvolvimento de longo prazo ou rejuvenescimento da nação, os arranjos exteriores da China terão que priorizar o engajamento com países do Sul Global por um período de tempo considerável. A China deveria configurar suas relações exteriores e promover a construção de uma nova ordem mundial a partir do paradigma dos “três anéis” (三环, sān huán). O primeiro anel se refere às regiões vizinhas da China, ou seja, o Leste Asiático, a Ásia Central e o Oriente Médio, que apresentam elementos importantes em termos de recursos, energia e segurança. O segundo anel engloba os países em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina, com os quais a China tem relações de comércio e investimento e projetos de infraestrutura, e aos quais a China direciona a maioria de sua ajuda externa. O terceiro anel engloba os Estados Unidos, os países europeus e outros países industrializados com os quais a China intercambia produtos industriais, tecnológicos e conhecimento.

No paradigma dos “três anéis”, a primeira e mais importante prioridade para ajudar a construir um novo sistema internacional deveria ser o primeiro anel, ou seja, o Leste Asiático, a Ásia Central e o Oriente Médio. Para promover ainda mais a integração econômica do leste asiático e suas ligações com a Ásia Central e o Oriente Médio, é preciso fortalecer o engajamento e a cooperação entre os países asiáticos. Nos últimos anos, ao promover a diplomacia econômica, a China fez progressos consideráveis em ampliar a integração econômica do leste asiático e a cooperação econômica com diversos outros países asiáticos. O último grande marco da integração econômica do Leste Asiático foi lançado no dia 1º de janeiro de 2022, quando a Parceria Regional Econômica Abrangente (RCEP pela sigla em inglês) finalmente entrou em vigor, após dez anos de negociação. No entanto, o intercâmbio econômico entre os países do Leste Asiático tem sido crescentemente afetado por forças extra-regionais e questões de segurança nos últimos anos, com disputas sobre direitos marítimos no Mar do Sul da China e a estratégia “Indo-Pacífico” de Washington que fomentam incertezas na região. Como forma de prevenir a exploração de problemas internos da Ásia por forças externas, a China deveria se afastar da “supremacia do PIB”, ou do foco estreito em assuntos econômicos que priorizou anteriormente em suas relações exteriores, e dedicar mais atenção às agendas políticas e de segurança na região, promovendo mais cooperação em matéria de segurança entre os países asiáticos.

A cooperação Sul-Sul é a base material dos novos “Três Anéis”

A base material para o para o paradigma dos “três anéis” é a cooperação Sul-Sul, conceito que emergiu no fim do século XX e se relaciona com os interesses, solidariedade e apoio mútuos entre os países do Terceiro Mundo[6]. No século XXI, um novo patamar da cooperação Sul-Sul tem sido estabelecido, tornando esse conceito ainda mais alcançável na realidade. A principal razão para isso é que, nas décadas recentes, diversos países em desenvolvimento na Ásia, África e América Latina foram capazes de se industrializar ou quase se industrializar ao “subir na escada emprestada”, aproveitando as oportunidades da onda de globalização. Entre esses países, um novo sistema global de produção e circulação material tomou forma, e está a caminho de eclipsar a “escada” original da globalização construída pelos países ocidentais. Esse novo sistema global tem se manifestado em dois aspectos importantes.

Em primeiro lugar, a participação dos países em desenvolvimento na economia mundial mudou significativamente. Em 1980, os países desenvolvidos correspondiam a 75,4% do PIB mundial, enquanto os países em desenvolvimento representavam menos de 25%. No entanto, em 2021, o percentual do primeiro grupo caiu para 57,8% do PIB mundial, enquanto o segundo ampliou sua participação para 42,2%[7]. O PIB combinado dos países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), somados com Turquia, Coreia do Sul e Indonésia, em termos de paridade de poder de compra (PPC) saltou de 21% da economia global em 1992 para 37,7% em 2021, enquanto a participação combinada os países do G7 declinou de 45,8% para 30,7% no mesmo período[8].

Em segundo lugar, o comércio e investimento recíproco entre os países em desenvolvimento também se tornaram cruciais. De 1997 a 2010, o comércio entre a China e países da África cresceu 22,4 vezes, e o comércio com os países da América Latina aumentou aproximadamente 22 vezes. Entre 2010 e 2021, o comércio China-África e China-América Latina cresceu novamente, 2 e 2,5 vezes, respectivamente[9]. De 2000 a 2018, o comércio entre China e países árabes saltou de 15,2 bilhões para 244,3 bilhões de dólares, um aumento de 16 vezes em menos de 20 anos[10]. Outras economias emergentes, como Brasil e Índia, aumentaram acentuadamente seu comércio com países em desenvolvimento. De 2003 a 2010, o comércio do Brasil com os países árabes aumentou quatro vezes, enquanto seu comércio com os países africanos quintuplicou, totalizando 26 bilhões de dólares, um valor superior ao comércio do Brasil com parceiros tradicionais como Alemanha e Japão. E, de 2010 a 2019, o comércio do Brasil com países árabes e africanos aumentou 98% e 68% respectivamente[11]. De maneira semelhante, desde 2001, o comércio da Índia com os países africanos tem crescido a uma taxa média anual de 17,2% e, de 2011 a 2021, aumentou 2,26 vezes[12]. O comércio da Índia com os países da América Latina, assim como com a região do Norte da África e Oriente Médio, experimentou crescimento similar. O volume de comércio entre os países em desenvolvimento está crescendo a uma taxa mais rápida que a média global, enquanto o comércio com os países desenvolvidos continua diminuindo.

No mundo em desenvolvimento, uma rede particularmente importante de desenvolvimento econômico emergiu na Ásia, em torno da China. Isso é demonstrado pelas quatro tendências a seguir:

  1. A Ásia é novamente o centro de gravidade da economia mundial. Em 1980, os países em desenvolvimento da Ásia correspondiam a 13,7% do PIB mundial. Contudo, sua participação cresceu para 24,7% em 2010 e alcançou 35,8% em 2021[13]. No caso dos países do leste asiático (incluindo China, Japão, Coréia do Sul e dez países do sudeste asiático), em 1980 sua participação no PIB mundial era em torno de apenas 16,2%, mas em 2020 esse percentual quase dobrou, alcançando 30%[14]. Enquanto isso, em 2020, a população total dos quinze países membros do RCEP chegou a 2,27 bilhões, o PIB acumulado atingiu 26 trilhões de dólares e o total de importações e exportações superou 10 trilhões de dólares, correspondendo a 30% do total mundial[15]. Segundo o HSBC, a estimativa é de que o tamanho acumulado das economias do RCEP se expanda para 50% da economia mundial até 2030[16].
  2. O comércio e investimento mundiais também estão se direcionando para a Ásia. O crescimento consistente da participação asiática no comércio mundial passou de 15,7%, em 1980, para 22,2% em 1990, 27,3% em 1995, 26,7% em 2000, 25,6% em 2001, avançando para 36% em 2020. Atualmente, a Ásia é a principal região comercial do mundo[17].
  3. O nível de comércio intra-regional é muito superior ao do comércio extra-regional na Ásia. Entre 2001 e 2020, o comércio interno total da Ásia saltou de 3,2 trilhões para 12,7 trilhões de dólares, com taxa média de crescimento anual nominal de 7,5%. Durante o mesmo período, a participação da Ásia no comércio mundial cresceu de 25,6% para 36%[18]. Em 2020, o comércio intra-regional da Ásia correspondeu a cerca de 58,5% do total de seu comércio exterior[19].
  4. O Leste e o Oeste da Ásia estão se aproximando economicamente. Os principais destinos da energia do Oriente Médio se deslocaram dos Estados Unidos e Europa para o Leste e Sul da Ásia.

Atualmente, os países em desenvolvimento conformam a estrutura preliminar para um novo sistema econômico global, mas uma sinergia ainda maior entre eles é necessária para alcançar um patamar mais elevado de conectividade econômica, assim como maior influência política na arena internacional para se libertarem do controle e coerção ocidental. Nesta última década, a China se tornou a maior economia real do mundo (considerando a produção e comercialização de bens e serviços) e a segunda maior economia em geral, assim como o maior parceiro comercial da maioria dos países no mundo. Em 2021, a participação mundial do setor manufatureiro da China era de quase 30%. Sendo o país que produz a maioria dos bens materiais no mundo, a China está em posição similar a dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial (no auge, em 1953, os Estados Unidos representavam aproximadamente 28% da produção industrial global). O que a China pode e deve fazer é tomar a iniciativa de conduzir uma estratégia global que melhore o sistema global de intercâmbio material entre os países em desenvolvimento, ou seja, concretizar verdadeiramente a cooperação Sul-Sul.

No entanto, as deficiências persistem. O comércio e investimento entre os países em desenvolvimento ainda dependem fortemente dos sistemas financeiro e monetário dirigido pelo Ocidente. Para que os países em desenvolvimento possam elevar ainda mais sua autonomia política e econômica, e para que as economias emergentes atinjam níveis de influência política no sistema mundial correspondentes a suas escalas econômicas, devem superar sua dependência monetária e financeira do Ocidente. Assim, para construir um novo sistema internacional de “três anéis”, os países em desenvolvimento devem considerar não só os fatores geopolíticos tradicionais, mas também os sistemas mundiais de informação e finanças. Nos últimos anos, a China começou a fazer isso ao desenvolver swap cambial com diversas economias de mercado emergentes. Mecanismos mais abrangentes e de alto nível para a cooperação monetária e financeira devem ser criados entre os países em desenvolvimento. Para isso, é importante aproveitar os mecanismos e plataformas existentes que podem fortalecer a cooperação Sul-Sul, incluindo: a atualização e transformação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII) e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) criado pelo BRICS para impulsionar um sistema autônomo de pagamentos internacionais; fortalecer a cooperação financeira e em matéria de segurança no âmbito da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), particularmente a cooperação entre China, Rússia, Índia e Irã (ressalte-se que a Rússia também é um país em desenvolvimento e que as economias chinesa e russa são altamente complementares); promover ainda mais a integração econômica do leste asiático no âmbito da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), com esforços especiais para consolidar as realizações do RCEP; a construção de um mercado comum de energia na Ásia, para que os compradores no leste e sul da Ásia e os vendedores do Oriente Médio, Ásia Central e Rússia possam compartilhar o mesmo sistema de comércio e pagamento de energia; fazer uso adequado do mecanismo da Cúpula do BRICS para aprofundar, assim, a cooperação Sul-Sul; e promover a diversificação do sistema monetário internacional e a internacionalização do RMB no contexto da cooperação Sul-Sul, assim como apoiar o status internacional do euro enquanto se protege da hegemonia do dólar estadunidense.

Há cem anos, a direção do Partido Comunista da China propôs a estratégia revolucionária do “cerco das cidades pelo campo” (农村包围城市, nóngcūn bāoweí chéngshì). Na atual era de “grandes mudanças inéditas em um século”, a China e os países em desenvolvimento precisam desmantelar a ordem mundial centro-periferia, superar a hostilidade dos países ocidentais, e aprofundar a solidariedade e cooperação entre o “campo” global. O aprofundamento da cooperação Sul-Sul irá criar as condições favoráveis e mobilizar recursos para a construção de um novo sistema mundial de “três anéis”, que pode aliviar as tensões internacionais e permitir que os países em desenvolvimento, incluindo a China, ocupem o lugar que lhes corresponde no centro da ordem política e econômica mundial. Depois de mais de quarenta anos de reforma e abertura, a China deve ajustar sua compreensão de “abertura” e transformar seu pensamento sobre as relações exteriores. Evidentemente, a China ainda deve tentar manter sua cooperação com o Ocidente enquanto for possível, e desde que o Ocidente não tome a decisão de se opor completamente à China.

Nota: Esse artigo foi editado por Guo Jinze.

Referências bibliográficas

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Zhu, Xiaoxiong; Pan, Li. “Como a eficácia do RCEP irá beneficiar a economia mundial” [RCEP生效,世界经济受益几何], Diário de Guangming [光明日报], 4 de janeiro de 2022.

Notas do autor

1. Cheng Yawen, “Compreendendo a mudança de paradigma nas características dos tempos” [理解时代特征的范式性变革], Fronteiras Acadêmicas [学术前沿], n. 15, p. 42-53, 2022.

2. Cheng Yawen, “Limites políticos da globalização” [全球化的政治限度], Dushu [读书], n. 11, 2020.

3. Cheng Yawen, “Compreendendo a mudança de paradigma nas características dos tempos”.

4. Barry Buzan e George Lawson, The Global Transformation: History, Modernity, and the Making of International Relations [全球转型:历史、现代性与国际关系的形成], traduzido do original em inglês (2015) ao chinês por Sui Shunji e publicado na China pela Editora popular de Xangai em 2020.

5. Hong Liu, “China Engages the Global South: From Bandung to the Belt and Road Initiative”, Global Policy 13, n. S1, p. 11-22, 2022.

6. Para a edição internacional deste artigo, as estatísticas foram atualizadas para refletir os dados mais recentes.

7. Valores calculados a partir da base de dados World Economic Outlook, do FMI. Consultado em outubro de 2022, disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/NGDPD@WEO/OEMDC/ADVEC/WEOWORLD.

8. Valores calculados a partir da base de dados World Economic Outlook, do FMI. Consultado em outubro de 2022, disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/PPPSH@WEO/OEMDC/ADVEC/WEOWORLD/BRA/RUS/IND/CHN/ZAF/TUR/IDN/KOR/MAE.

9. Em 1997, o valor do comércio entre China e África totalizou 5,673 bilhões de dólares, e entre China e América Latina 8,376 bilhões, de acordo com o China Statistical Yearbook 1999. Em 2010, o valor do comércio entre China e África foi de 127 bilhões de dólares, e entre China e América Latina 183,6 bilhões, segundo o China Statistical Yearbook 2021. Finalmente, em 2021, o valor do comércio entre China e África foi 254,3 bilhões de dólares, e entre China e América Latina totalizou 451,591 bilhões, de acordo com a Administração Geral Aduaneira da China.

10. Jing Kai, “Um novo capítulo se abre para a cooperação econômica e comercial sino-árabe” [中阿经贸合作奏响新乐章], Diário de Guangming [光明日报], 5 de setembro de 2019.

11. Cálculos realizados a partir dos dados disponíveis no World Integrated Trade Solution (WITS), software desenvolvido pelo Banco Mundial em colaboração com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), que provê acesso a informações estatísticas tarifárias e não tarifárias sobre comércio internacional. “Brasil joga um papel global ambicioso” [巴西要在全球扮演雄心勃勃角色], Reference News [参考消息], 2 de setembro de 2010.

12. Sun Xiaohan, “Análise da atual situação e prospecção do investimento e comércio entre Índia e África” [印度对非投资贸易现状分析与前景展望], Investimento chinês [中国投资], Setembro 2021.

13. Valores calculados a partir da base de dados World Economic Outlook, do FMI. Consultado em outubro de 2022, disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/NGDPD@WEO/WEOWORLD/APQ/CAQ/MEQ/JPN/AZQ. Aqui, países em desenvolvimento da Ásia englobam as regiões designadas pelo FMI como Ásia-Pacífico, Ásia Central e Cáucaso, e o Oriente Médio, com exceção do Japão, Austrália e Nova Zelândia.

14. Valores calculados a partir da base de dados World Economic Outlook, do FMI. Consultado em outubro de 2022, disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/NGDPD@WEO/OEMDC/ADVEC/WEOWORLD/EAQ/SEQ. Aqui, o leste asiático corresponde às regiões designadas pelo FMI como Leste da Ásia e Sudeste da Ásia.

15. Zhu Xiaoxiong e Li Pan, “Como a eficácia do RCEP irá beneficiar a economia mundial” [RCEP生效,世界经济受益几何], Diário de Guangming [光明日报], 4 de janeiro de 2022.

16. Li Ning, “RCEP se torna oficial! A maior área de livre comércio do mundo tem início” [RCEP正式生效!世界最大自贸区启航], Diário de Negócios Internacionais [国际商报], 3 de janeiro de 2022.

17. Wing Chu e Yuki Qian, Tapping the RCEP Opportunities: Hong Kong to Maximise GBA’s Unique Edge as a Business Platform, Hong Kong Trade Development Council (HKTDC) e ACCA, 18 de novembro de 2021,https://portal.hktdc.com/resources/RMIP/20211112/67htt6r-QUNDQSZIS1REQyBSZXBvcnRfR0JBX1JDRVBfRU4=.pdf.

18. Chu e Qian, Tapping the RCEP Opportunities.

19. Boao Forum for Asia, Annual Report 2022: Asian Economic Outlook and Integration Process, abril de 2022.

Cinco séculos de transformações globais: uma perspectiva chinesa | 28.03.2023

Detalhe do Atlas Catalão (c. 1375) retratando a caravana de Marco Polo na Rota da Seda. Abraham Cresques / Wikimedia Commons.


Cinco séculos de transformações globais: uma perspectiva chinesa

Yao Zhongqiu

Yao Zhongqiu (姚中秋) é professor na Escola de Estudos Internacionais e diretor do Centro de Estudos Políticos Históricos da Universidade de Renmin da China. Publicou numerosos estudos e traduções sobre a história do pensamento e instituições chinesas, e atualmente se dedica a política histórica, teoria de vanguarda partidária, e sistemas políticos mundiais modernos. Suas últimas publicações incluem O Momento Chinês na História Mundial (世界历史的中国时刻) e Longa e Duradoura: Uma História Política da Civilização Chinesa (可大可久:中国政治文明史).

A humanidade passa por uma agitação global de escala inédita em 500 anos: principalmente, o declínio relativo da Europa e dos Estados Unidos, o ascenso da China e do Sul Global, e a consequente transformação revolucionária do cenário internacional. Embora seja usual dizer que a era do domínio global do Ocidente tenha durado cinco séculos, isso é, precisamente, um exagero. De fato, Europa e Estados Unidos ocuparam suas posições como poderes hegemônicos por cerca de 200 anos, após alcançarem suas fases iniciais de industrialização. A primeira revolução industrial foi um ponto de inflexão na história mundial, impactando significativamente a relação entre o Ocidente e o resto do mundo. Atualmente, a era da hegemonia ocidental chegou ao fim e uma nova ordem mundial está emergindo, com a China jogando um papel predominante nesse processo. Esse artigo explora como chegamos a atual conjuntura global, analisando as diferentes fases na relação entre a China e o Ocidente.

Fase I: Mudanças no equilíbrio entre a China e o Ocidente

O primeiro encontro entre a China e a Europa remonta a era das expedições marítimas nos séculos XV e XVI, quando o diplomata e almirante chinês Zhèng Hé (1371-1433) embarcou em suas Viagens Oceânicas (郑和下西洋, Zhèng Hé xià xīyáng) (1405-1433), seguido pelas expedições marítimas portuguesas e espanholas para a Ásia[1]. Desde então, a China estabeleceu contato direto com a Europa pelas rotas oceânicas.

Durante esse período, a China era governada pela dinastia Ming (1388-1644), que adotou uma visão de mundo orientada pelo conceito de tianxia (天下, tiānxià, “tudo sob o céu”)[2]. Este sistema de pensamento categorizou a humanidade em duas civilizações principais: a chinesa, que cultuava o céu, e a ocidental que, em geral, cultuava deuses no sentido monoteísta do termo[3]. É importante notar que, nessa era, os chineses tinham uma compreensão abrangente do Ocidente, considerando que este englobava todas as regiões que se estendiam ao noroeste, desde a Mesopotâmia ao Mar Mediterrâneo e, então, até a costa Atlântica, e não a noção contemporânea que, em geral, limita o Ocidente aos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Europa. Por sua vez, a civilização Chinesa se estendia para o sudeste, das margens do Rio Amarelo até a bacia do Rio Yangtze em direção à costa. As duas civilizações se encontrariam na confluência dos oceanos Índico e Pacífico e, a partir de então, pode-se falar propriamente em uma história mundial. Ao mesmo tempo, tianxia propõe uma concepção universalista do mundo, na qual considera-se que a China e o Ocidente compartilham a mesma “ilha mundial”. Separadas pelas montanhas Pamir, da Ásia Central, cada civilização era pensada como tendo sua própria história, embora ainda não houvesse uma história mundial unificada, cada uma mantendo a ordem tianxia em suas respectivas partes da ilha mundial, tendo como base seus próprios conhecimentos.

Embora a dinastia Ming tenha descontinuado as viagens marítimas após a Sétima Viagem de Zheng He, em 1433, algumas ilhas nos mares do Sul (南洋, nányáng, que corresponde aproximadamente ao Sudeste Asiático) foram incorporadas ao sistema tributário do império da China (朝贡, cháogòng). Isso constituiu uma mudança significativa na ordem tianxia, comparada com as dinastias anteriores, Han (202 AEC-9 EC, 25-220 EC) e Tang (618-907 EC), nas quais os tributos eram provenientes dos estados das regiões ocidentais (西域, xīyù, corresponde aproximadamente a Ásia Central contemporânea). Ainda mais importante foi o fato de que essa expansão em direção ao sudeste abriu o caminho da China para os mares, já que a população chinesa da costa sudeste migrou para os Mares do Sul e, com eles, produtos como seda, porcelana e chá foram introduzidos no comércio marítimo. Em comparação com os períodos de prosperidade das dinastias Tang e Song (960-1279), o comércio marítimo se expandiu, com a economia de Jiangnan (江南, jiāngnán, “sul do rio Yangtze”) majoritariamente centrada em exportações, sendo particularmente dinâmica. Consequentemente, a industrialização foi acelerada e a China se tornou, pela primeira vez, a “fábrica do mundo”.

As nações europeias não tinham vantagem no comércio com a China, no entanto, compensavam seu déficit com a prata extraída das Américas, recentemente colonizadas. Essa prata entrou na China em grandes quantidades e se tornou uma importante divisa, levando à globalização da prata. Enquanto isso, a introdução na China das sementes de batata doce e milho, nativas das Américas, contribuiu para o rápido crescimento da população nacional devido à adaptabilidade desses cultivos a condições adversas.

No entanto, o envolvimento da China na formatação de uma ordem mundial conectada pelos mares também trouxe problemas inesperados para o país, sobretudo um desequilíbrio entre a economia e as instituições políticas e militares. Enquanto a economia penetrou o sistema marítimo, as instituições políticas e militares permaneceram continentais. Essa contradição entre a terra e o mar produziu tensões internas consideráveis, levando, finalmente, ao fim da dinastia Ming. Os conflitos fronteiriços no norte e nordeste exigiam recursos financeiros significativos, porém, naquele período, a maior parte da riqueza da China provinha do comércio marítimo e estava concentrada no sudeste. Consequentemente, a educação progrediu na região costeira, levando ao domínio dos processos políticos na China por servidores públicos-acadêmicos (士大夫, shìdàfū) do sudeste, que impediam reformas tributárias orientadas a melhorar a distribuição de riqueza. Pelo contrário, o sistema tributário tradicional foi fortalecido, impondo maiores encargos ao campesinato[4]. Essas tensões eventualmente chegariam ao limite; o peso das taxações sobre os camponeses do norte, que viviam majoritariamente do cultivo da terra, levou à migração interna e, eles se tornaram migrantes que, enfim, derrubaram o regime Ming. Ao mesmo tempo, os recursos militares no norte não eram suficientes, o que levou à crescente influência de forças rebeldes Qing no nordeste e à sua ofensiva oportunista rumo ao sul, culminando no estabelecimento da dinastia Qing (1636-1912) em todo o país.

A dinastia Qing se originou entre o povo Manchu do nordeste da China, cujas raízes culturais eram agrícolas e nômades. Ao passo que as forças Qing marchavam rumo ao sul e fundavam seu império, fizeram grandes esforços para estabelecer o controle sobre as regiões fronteiriças da China no norte e oeste, um arco que se estendia do Planalto da Mongólia às Montanhas Tianshan e ao Planalto Qinghai-Tibete. Por milhares de anos, essas regiões do noroeste eram fonte de instabilidade política, com sucessivas dinastias falhando no intento de unificar o conjunto da China. Ao integrar essas áreas ao estado Chinês, a dinastia Qing se tornou capaz de alcançar seu objetivo histórico e político de unificação. Essa integração interna também teve impacto na posição internacional da China, com a Rússia se tornando, então, o país vizinho mais importante, e com o redirecionamento da Rota da Seda terrestre ao norte pelo estepe da Mongólia, através da Rússia até o norte da Europa.

Na segunda metade do século XVIII, esses dois “arcos” de desenvolvimento, por terra e por mar, tinham peso equivalente, mas diferiam em seu significado para a China: enquanto a terra provia segurança, os mares eram fonte de vitalidade. Contudo, tanto o desenvolvimento por terra como por mar continham dinâmicas contraditórias: as regiões do estepe noroeste não eram internamente muito estáveis, enquanto as relações de vizinhança com a Rússia e o mundo Islâmico permaneceram estáveis. Por outro lado, os mares do sudeste eram internamente estáveis, mas introduziram novos desafios para a China na forma das relações com a Europa e os Estados Unidos. Essas dinâmicas terra-mar historicamente são colocadas para a China como um impasse singular e, até hoje, permanecem como uma questão estratégica fundamental.

Por sua vez, os países europeus se beneficiaram mais do comércio direto com a China e ascenderam a uma posição dominante na nova ordem global. Durante o século dezesseis, sob a crescente decadência da Igreja Católica Romana, o nacionalismo étnico surgia na Europa, culminando na Reforma de Martinho Lutero na Alemanha. Na sequência, a Europa entrou em uma era de construção de Estados-Nação, conhecida como o início do período moderno, caracterizado pelo rompimento da autoridade da Igreja Católica e o estabelecimento da soberania das monarquias seculares, superando algumas das hierarquias e divisões criadas pelos senhores feudais e tornando todos os indivíduos iguais perante a lei do rei. O primeiro país a atingir essa configuração foi a Inglaterra, onde Henrique VIII baniu a Igreja da Inglaterra do pagamento do tributo anual ao Papado em 1533. No ano seguinte, aprovou o Ato de Supremacia, estabelecendo o rei como líder supremo da Igreja Anglicana, que se tornou a religião estatal. Por isso a Inglaterra é reconhecida como primeira nação moderna, ao passo que as mudanças constitucionais eram secundárias.

A Igreja Católica, enfrentando uma crise governamental, buscou abrir novas frentes pastorais e começou a pregar fora da Europa por meio das viagens do “descobrimento”. O Cristianismo gradualmente se tornou uma religião mundial, um dos mais importantes desenvolvimentos dos últimos cinco séculos, com missionários finalmente chegando à China no final do século XVI, depois de muitas reviravoltas.

Os missionários cristãos tinham se preparado para espalhar a mensagem de sua verdade aos chineses, e esperavam que estes fossem “bárbaros”. Mas, para a surpresa dos cristãos, eles descobriram que a China era uma civilização poderosa, com um sistema de governança sofisticado e tradições religiosas. Embora não acreditassem nos deuses personificados dos missionários, o povo chinês tinha um sistema de princípios morais, uma economia altamente desenvolvida e uma ordem estabelecida. Isso inspirou alguns missionários a desenvolver uma verdadeira admiração pela China, que incluiu a tradução de clássicos chineses e o envio destes textos para a Europa, onde tiveram um impacto notável no Iluminismo em Paris[5].

Durante o Iluminismo, filósofos ocidentais desenvolveram idéias de humanismo e racionalismo, incluindo as noções de que os seres humanos são sujeitos e que um “criador” não existe; de que os seres humanos deveriam buscar sua própria felicidade em vez de tentar ascender ao reino de Deus; que podem ter convicções e relações morais sólidas, independentes da religião; que o Estado pode estabelecer a ordem sem depender da religião; que o governo direto dos indivíduos pelo soberano é o melhor sistema político, e assim por diante. É importante destacar, no entanto, que esses ideais do Iluminismo, tidos como os que formaram a base da modernidade ocidental, eram conhecimento comum na China por milhares de anos. Desse modo, o fluxo de ideias e ensinamentos da China para o Ocidente por meio dos missionários cristãos pode ser uma importante, senão a única, influência no desenvolvimento da modernização ocidental. É evidente que os países ocidentais foram os principais impulsores da modernização global nos últimos dois séculos, mas essa modernidade evocada bebeu em outras culturas, incluindo a China. É preciso reconhecer e afirmar esse fato para compreender a evolução do mundo hoje.

Em suma, durante a primeira fase da história mundial, que abrangeu mais de 300 anos desde a primeira metade do século XV até a segunda metade do século XVIII, um sistema mundial integrado começou a se formar, com a China e o Ocidente ajustando, transformando e se beneficiando em suas interações. Da perspectiva chinesa, essa ordem mundial foi, em grande parte, justa.

Fase II: Reviravoltas do destino entre a China e o Ocidente

Na segunda metade do século XVIII, os elevados níveis de industrialização dos países ocidentais asseguraram sua superioridade militar, empregada de forma abusiva para conquistar e colonizar quase todo o Sul Global. Isso aproximou o mundo mais do que nunca, mas em uma relação injusta e, portanto, insustentável.

Entre os países ocidentais, a Inglaterra foi o primeiro a atingir um estágio avançado de industrialização, o que foi possível por uma razão especial: a colonização. O império Britânico se apropriou de enormes riquezas de suas colônias, que também serviam de mercado cativo para as manufaturas britânicas. Essa riqueza e demanda de mercado, combinadas com a população relativamente pequena da Inglaterra, conduziu o desenvolvimento científico e tecnológico, e, em última instância, a industrialização baseada na mineração de combustíveis fósseis (especificamente o carvão), na produção de aço e maquinário. Durante os séculos XVIII e XIX, a Inglaterra se tornaria o país mais rico e poderoso do mundo, com sua riqueza se estendendo para a Europa ocidental e suas colônias, como os Estados Unidos e a Austrália. As pujantes potências europeias conquistaram e colonizaram mundo afora com o uso da força militar, incluindo a maior parte da África, da Ásia e das Américas, chegando às portas da China na primeira metade do século XIX.

Nos séculos anteriores de comércio pacífico com a China, as potências ocidentais acumularam um déficit comercial grande, que buscaram equilibrar por meio do comércio de ópio. Entretanto, devido às graves consequências sociais deste comércio, em 1800 a China proibiu a importação de ópio. Em resposta, as potências ocidentais provocaram duas guerras contra a China – a Primeira Guerra do Ópio (1839-1842) e a Segunda Guerra do Ópio (1856-1860) – com o objetivo de reabrir violentamente esse mercado. Com a derrota da China, vários países ocidentais, entre os quais Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos, forçaram a assinatura de tratados desiguais que garantiram a essas nações concessões comerciais e territórios, incluindo Hong Kong. Como resultado, a ordem tianxia começou a se deteriorar e a China entrou no período conhecido como o “século de humilhação” (百年国耻, bǎinián guóchǐ).

O retrocesso da China se ancorava no desequilíbrio de longa data entre sua economia marítima e seu sistema político-militar continental. Em primeiro lugar, o mercado chinês dependia fortemente do comércio exterior, mas o governo Qing falhou em desenvolver uma política monetária soberana, resultando em um fluxo comercial constantemente controlado por potências exteriores. A prata importada se tornou a moeda de fato na China e, com a incapacidade do governo em exercer uma supervisão eficaz, o país perdeu a soberania monetária e se tornou vulnerável às flutuações do fornecimento de prata, o que desestabilizou a economia. Em segundo lugar, os recursos naturais da China eram super-explorados para produzir grandes volumes de exportações, resultando em uma severa devastação ambiental. Constrangida tanto pelo mercado como pelas limitações de recursos, o crescimento endógeno da China atingiu um ponto de asfixia, com a estagnação da produtividade, a diminuição do emprego e a população excedente sendo deslocada, o que levou a uma série de grandes rebeliões na primeira metade do século XIX. Esse foi o contexto no qual o Ocidente chegou às portas da China.

Sob a pressão dos problemas internos e das agressões externas, a China embarcou no caminho de “aprender do mundo exterior para se defender da intervenção estrangeira” (师夷长技以制夷, shī yí zhǎng jì yǐ zhì yí), uma questão fundamental da história chinesa ao longo de quase todo o século passado. Apesar de ter sido depreciada por muitos desde os anos 1980, com o início das reformas econômicas da China, essa formulação sintetiza a estratégia do país. Por um lado, a China estudou detidamente as principais forças motrizes do poder ocidental, a saber, a produção industrial, o desenvolvimento tecnológico, a organização econômica e a capacidade militar, assim como os métodos para a mobilização social baseada no Estado-Nação. Por outro, a China procurou aprender com outros países para avançar em seu desenvolvimento, assegurar sua independência e se construir com base em seu próprio legado.

Até a metade do século XX, no entanto, esse caminho não produziu mudanças significativas para a China, fundamentalmente devido a inadequação de sua capacidade estatal, ainda mais deteriorada após a derrocada da dinastia Qing em 1911. De fato, uma série de iniciativas levadas a cabo para fortalecer o Estado no fim do período Qing terminaram por gerar novos problemas. Por exemplo, o “Novo Exército” (新军, xīnjūn) estabelecido no final do século XIX em um esforço de modernização militar da China se tornaria uma força separatista. Enquanto isso, as teorias do desenvolvimento propostas pelos servidores públicos-acadêmicos no período, tais como o conceito de “salvação nacional pela indústria” (实业救国, shíyè jiùguó) eram impossíveis de ser implementados devido a falta de habilidade do Estado em prover suporte institucional. Assim, o comércio continuou sendo o setor econômico de crescimento mais dinâmico, o que, apesar de trazer benefícios econômicos de curto prazo, resultou em uma subordinação ainda maior da China ao Ocidente.

No entanto, no período da Segunda Guerra Mundial, que foi precedida pela Guerra de Resistência Chinesa à Agressão Japonesa (1937–1945), a posição internacional do país começou a melhorar, enquanto o Ocidente experimentou um declínio relativo. A Segunda Guerra Mundial e as lutas anticoloniais de liberação nacional infligiram um duro golpe à velha ordem imperialista, já que as potências ocidentais foram forçadas a se retirar, iniciando um declínio na medida em que não eram mais capazes de extrair dividendos coloniais. Países da Ásia, África e América Latina, incluindo a China, conquistaram sua independência. Enquanto isso, a União Soviética, que se estende pela Eurasia, emergiu como um grande rival do Ocidente. Em meio a essas turbulências globais, o peso da China no cenário internacional aumentou dramaticamente e o país tornou-se uma força importante.

Nesse contexto global, a China iniciou sua jornada rumo ao rejuvenescimento nacional com duas prioridades principais. A primeira prioridade era política. Aprendendo com a União Soviética, os partidos Nacionalista e Comunista da China estabeleceram um Estado forte, que era a pedra angular do desenvolvimento econômico ocidental, enquanto a falta de capacidade de organização e mobilização estatal era a principal debilidade da dinastia Qing frente às potências ocidentais. A segunda prioridade era a industrialização, que avançou passo a passo a partir de três fases.

O primeiro marco na industrialização teve lugar após a Revolução Chinesa de 1949 e foi possível pela ajuda da União Soviética, que exportou um sistema completo de indústria básica para a China. Embora esse sistema tivesse sérias limitações, alcançando seu ápice nas décadas de 1970 e 1980, isso permitiu que a China desenvolvesse uma compreensão abrangente da natureza sistemática da indústria, especialmente da estrutura básica da industrialização, ou seja, a indústria pesada.

O segundo marco na industrialização se deu após o estabelecimento das relações diplomáticas entre a China e os Estados Unidos nos anos 1970, quando a China começou a importar tecnologias dos Estados Unidos e de países europeus. Durante essa fase, a China concentrou seu desenvolvimento na costa sudeste, uma região com longa trajetória de indústria e comércio rurais. Apoiando-se no maquinário e conhecimento obtidos na primeira rodada de industrialização, o setor de bens de consumo nas regiões da costa sudeste puderam se desenvolver rapidamente em âmbito municipal, a esfera de governo com maior flexibilidade. Ao absorver um grande volume de trabalhadores, o sistema industrial intensivo em trabalho melhorou significativamente as condições de vida da população.

O terceiro marco da industrialização começou na virada do século, e foi impulsionado pela ênfase tradicional de um Estado forte e pelo desejo de continuar a revolução. O governo dedicou sua capacidade para a construção de infra-estrutura e a condução do desenvolvimento industrial. Como resultado, a China experimentou crescimento continuado da produção industrial e seguiu avançando ao longo da cadeia industrial, criando o maior e mais abrangente setor manufatureiro do mundo. Assim, o cenário econômico internacional mudou drasticamente.

Hoje a China está em seu quarto marco de industrialização, que gira em torno da aplicação de tecnologias de informação à indústria. No atual período, a preocupação dos Estados Unidos é a de ser superado pela China, o que desencadeou uma mudança fundamental nas relações bilaterais e inaugurou uma era de transformações globais.

Em suma, as mudanças nas dinâmicas entre a China e o Ocidente estiveram no centro da segunda fase da história mundial. Por mais de 100 anos desde o início do século XIX, as potências ocidentais ascenderam, enquanto a China experimentou um declínio. No entanto, desde a Segunda Guerra Mundial, as tendências se inverteram, com a China em ascensão e o Ocidente em declínio. Agora, parece que o ponto crítico dessa relação se aproxima, onde ambos os lados alcançarão posições equivalentes, exaurindo os limites da velha ordem mundial.

Fase III: O declínio da ordem liderada pelos Estados Unidos

Na esteira da ascensão da China, a velha ordem mundial dominada pelo Ocidente foi abalada. No entanto, o detonador de seu colapso é a instabilidade resultante da incapacidade dos Estados Unidos em assegurar o domínio global unipolar que perseguiram após o fim da Guerra Fria.

Historicamente, o império Romano não conseguia alcançar a Índia, muito menos aventurar-se além das Montanhas Pamir. Por outro lado, as dinastias Han e Tang dificilmente conseguiriam manter seu poder, mesmo que tivessem conseguido atravessar essa cordilheira. A estabilidade estrutural do mundo é que as nações se mantenham em equilíbrio, ao invés de que sejam governadas por um único centro.

Mesmo os imensos avanços tecnológicos em transportes e guerras foram incapazes de mudar essa lei de ferro. Antes da Segunda Guerra Mundial, as potências ocidentais penetraram quase todos os cantos do mundo, apesar de seus interesses concorrentes e da necessidade de uso da força para manter suas colônias, esse sistema de governo foi, em certo sentido, mais estável que a atual ordem, por ter distribuído o poder de forma mais ampla entre diferentes países. Enquanto isso, no período do pós-guerra, a União Soviética e o Ocidente formaram dois blocos opostos na Guerra Fria, com cada um dos campos tendo seu próprio espectro de influência e, em alguma medida, sendo equilibrados um pelo outro.

Em contraste, com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se tornaram a única superpotência a dominar todo o mundo. Os Estados Unidos, como o país ocidental mais recente a ser estabelecido, o último “Novo Mundo” que foi “descoberto” pelos europeus, e o mais populoso dentre tais potências, estava destinado a ser o último capítulo nos esforços do Ocidente por dominar o mundo. Os Estados Unidos anunciaram com convicção que sua vitória sobre a União Soviética constituía o “fim da história”. No entanto, a ambição não pode superar os duros constrangimentos da realidade. Sob domínio exclusivo dos Estados Unidos, a ordem mundial imediatamente se tornou instável e fragmentada. A chamada Pax Americana foi muito curta para ser escrita nas páginas da história. Depois da breve euforia do “fim da história”, sob as administrações de Bush e Clinton, a era Obama viu os Estados Unidos iniciarem uma “contração estratégica”, buscando aliviar, pouco a pouco, seus fardos de governo global.

Somados aos custos externos, a busca fugaz de Washington pela hegemonia global também induziu tensões internas. Embora os Estados Unidos tenham obtido muitos dividendos de seu domínio imperial, com o desenvolvimento de um sistema financeiro que permite a alocação global de capital, isso veio com um custo. Como diz o ditado chinês, “uma bênção pode ser um infortúnio disfarçado” (福兮祸所依, fú xī huò suǒ yī). O boom do setor financeiro dos Estados Unidos, junto com a especulação volátil que o nutre, provocou a desindustrialização do país, cujos efeitos foram sentidos pelas condições de vida da classe trabalhadora e da classe média. Devido às medidas de autoproteção dos países emergentes, como a China, tornou-se impossível que esse sistema financeiro extraísse integralmente os ganhos externos para cobrir as perdas provocadas pela desindustrialização, sofridas pelas classes populares. Como consequência, os Estados Unidos desenvolveram níveis extremos de desigualdade de renda e se tornaram uma sociedade altamente polarizada, com divisões e antagonismos crescentes entre diferentes classes e grupos sociais.

A desindustrialização está na raiz da crise dos Estados Unidos. Durante o século XIX, as potências ocidentais puderam exercer sua tirania sobre o mundo, incluindo o assédio à China, devido principalmente a sua superioridade industrial, que os permitiu produzir os mais poderosos navios e canhões. A desindustrialização faz com que o fornecimento desses “navios e canhões” se torne insuficiente. Mesmo o sistema industrial-militar dos Estados Unidos se tornou fragmentado e excessivamente custoso dado o declínio das indústrias que o sustenta. As elites estadunidenses compreenderam a gravidade desse problema, mas os sucessivos governos enfrentaram dificuldades para lidar com a questão. Obama defendeu a reindustrialização, mas não obteve nenhum progresso devido aos impasses entre republicanos e democratas, em uma dinâmica que inibe ações efetivas do governo, denominada por Francis Fukuyama uma “vetocracia”. Trump seguiu essa linha com o slogan oportuno “Torne a América Grande Novamente” (em inglês, “Make America Great Again”), prometendo fazer com que os Estados Unidos fossem novamente a potência industrial mais forte do mundo. Essa intenção também pode ser vista no impulso da atual administração de Biden pela implementação da “lei dos Chips” (em inglês, CHIPS and Science Act) e outras iniciativas que objetivam impulsionar o desenvolvimento industrial interno. Os Estados Unidos teriam que minar o poder dos magnatas do capital financeiro para reviver sua indústria, mas como isso seria possível?

Ao contrário da desindustrialização que tem tido lugar nos Estados Unidos, a China está avançando consistentemente em seu quarto marco da industrialização, ascendendo rumo ao topo da indústria manufatureira global, apoiando-se nas fundações sólidas de uma cadeia industrial completa. Sentido a ameaça de que serão ultrapassados em termos de “poder duro” (em inglês, “hard power”), a elite estadunidense declarou a China como um “concorrente”, e a natureza da relação entre os dois países mudou fundamentalmente.

A elite estadunidense há tempos se refere a seu país como “Cidade na Colina”, uma noção cristã segunda qual os Estados Unidos teriam um status excepcional no mundo e seriam um “farol” a ser seguido por outras nações. Essa profunda crença de superioridade significa que Washington não pode aceitar a ascensão de outras nações e civilizações que há milhares de anos tem seguido seu próprio caminho, como a China. A ascensão econômica da China e, consequentemente, sua crescente influência na reformatação da ordem global liderada pelos Estados Unidos não é nada mais do que um retorno do mundo a um estado de maior equilíbrio. Isso é, no entanto, um sacrilégio para Washington, comparável à rejeição da conversão religiosa para os missionários. É evidente que a boa vontade das elites dos Estados Unidos com relação à China já se esgotou, e que agora estão unidas na construção de uma estratégia hostil contra o país. Irão usar todos os meios para a disrupção do desenvolvimento da China e sua influência no cenário internacional. Por sua vez, a abordagem agressiva de Washington fez com que a China fortalecesse sua determinação em se desprender dos limites do sistema global liderado pelos Estados Unidos. A Pax Americana só permite que a China se desenvolva de forma subordinada aos ditames dos Estados Unidos, e por isso a China não tem escolha senão trilhar um novo caminho e atuar para estabelecer uma nova ordem internacional. Essa disputa entre Estados Unidos e a China certamente irá dominar as manchetes de todo o mundo no futuro próximo.

Ainda assim, há uma série de fatores que diminuem as possibilidades de que essa disputa se desenvolva em termos catastróficos. Em primeiro lugar, os dois países estão separados geograficamente pelo oceano Pacífico. Em segundo lugar, embora os Estados Unidos sejam uma nação marítima adepta ao equilíbrio offshore, é muito menos capaz de empreender incursões por terra, particularmente contra um país como a China, uma potência de mar e terra com grande profundidade estratégica. Como resultado, os esforços dos EUA em lançar uma guerra total contra a China não seriam viáveis. Mesmo se Washington instigasse uma guerra naval no pacífico ocidental, as chances não estariam a seu favor. Além destas duas considerações, os Estados Unidos são, essencialmente, uma “república comercial” (definição inicial do país por um de seus Pais Fundadores, Alexander Hamilton), o que significa que suas ações são fundamentalmente baseadas em cálculos de custo-benefício. A China, pelo contrário, tem longa experiência em lidar com forças externas agressivas[6]. Somados, esses fatores indicam que uma guerra total entre os dois países pode ser inteiramente evitada.

As mudanças nas posições da China e dos Estados Unidos diferem muito das dinâmicas similares no passado, como a evolução da hegemonia no continente europeu nos últimos séculos. Neste contexto, os estreitos confins da Europa não comportam múltiplas potências, ao passo que o vasto oceano Pacífico certamente o permite. Esse é o elemento principal da relação entre os dois países. Assim, uma vez que China e Estados Unidos irão competir em todas as frentes, contanto que a China continue a incrementar suas forças econômicas e militares, e nitidamente expresse sua disposição de usar este poderio, os Estados Unidos irão recuar, da mesma forma como fez seu suserano anterior, a Inglaterra. Uma vez que os Estados Unidos se retirem do Leste Asiático e do Pacifico Ocidental, uma nova ordem mundial começará a tomar forma.

Nos últimos anos, os esforços da China nesse aspecto surtiram efeito, resultando em que alguns setores nos Estados Unidos reconheçam o poder e a determinação da China e, de acordo com isso, ajustem sua estratégia, pressionando países aliados a assumir custos maiores na defesa da ordem liderada pelo Ocidente. Apesar da postura dos países ocidentais, não existe, de fato, uma “aliança das democracias”. Os Estados Unidos sempre basearam seus sistemas de aliança em interesses comuns, entre os quais o mais importante é trabalhar juntos não para alcançar qualquer ideal superior, mas sim para sugar o sangue de outros países. Uma vez que esses países não consigam mais assegurar lucros externos juntos, eles terão que competir entre si e seu sistema de alianças rapidamente será rompido. Em tal situação, os países ocidentais retornariam a uma situação similar ao período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, enfrentando-se uns contra os outros, em vez de dividir o mundo em colônias. Essa batalha de nações, embora não aconteça necessariamente por meio de uma guerra “quente”, pode fazer com que os países ocidentais retornem à situação em que se encontravam no início do período moderno.

A disposição dos Estados Unidos de fazer qualquer coisa em busca de lucro levou a uma rápida degeneração de seu sistema de valores. Desde que o ex-presidente Woodrow Wilson conduziu o país à posição de líder do sistema mundial, os “valores” estão no centro do apelo estadunidense. Naquela época, Wilson tinha grande influência entre muitos intelectuais chineses, embora isso tenha rapidamente se transformado em desilusão. Entretanto, hoje o mito do “sonho Americano” e dos valores universais dos Estados Unidos permanecem cativando uma proporção considerável das elites chinesas, mas a presidência de Trump desmascarou esses supostos valores. Os Estados Unidos retornaram abertamente à crueza e brutalidade da conquista colonial e da expansão para o oeste.

Além disso, a atual geração das elites ocidentais sofre de um déficit em sua capacidade de pensamento estratégico. Muitos dos principais estrategistas e táticos da Guerra Fria estão mortos, e no bojo de duas décadas de arrogância e dominação que marcaram a era do “fim da história”, os Estados Unidos e países europeus não foram capazes de produzir uma nova geração de intelectuais afiados. Consequentemente, diante de seus dilemas atuais, o melhor que essa geração das elites pode oferecer não passa de reformulações de velhas soluções e do retorno à banalidade do período colonial.

Esse tipo de banalidade pode chocar alguns, mas tem raízes profundas na história dos Estados Unidos: do genocídio contra os povos indígenas provocado pelos colonos puritanos para construir sua chamada “Cidade na Colina” até os Papéis Federalistas que desenharam um complexo sistema de separação de poderes para garantir liberdade, mas discutiram superficialmente sobre comércio e guerra entre países, chegando a obsessão com o direito de portar armas, que dá a cada indivíduo o direito de matar em nome da liberdade. Assim, podemos ver que Trump não trouxe a banalidade aos Estados Unidos, apenas revelou a tradição escondida da “república comercial” (é válido notar que, na tradição ocidental, os comerciantes também tendem a ser piratas e saqueadores).

Atualmente os Estados Unidos quase completaram esta transformação de sua identidade: de uma república de valores para uma república de comércio. Essa versão de país não possui a vontade unitária de retomar sua posição de líder da ordem mundial, como tem sido evidenciado pela contínua e forte influência da retórica “América Primeiro” (em inglês, “America First”). O crescente apoio a essa banalidade política entre algumas parcelas da população dos EUA irá encorajar mais políticos a seguir esse exemplo.

A ordem mundial continua sendo liderada por um número de Estados poderosos, mas em meio a instabilidades significativas, uma vez que os esforços de fortalecimento da União Europeia fracassaram, a Rússia tende a continuar em declínio, a China está ascendendo, ao Japão e à Coréia do Sul faltam real autonomia, e os Estados Unidos, devido a pressões financeiras, têm rapidamente se desresponsabilizado de apoiar a rede de alianças e instituições multilaterais do pós-guerra, passando a construir sistemas bilaterais que maximizem seus interesses específicos. Em termos mais simples, a ordem mundial está desmoronando, e as questões relevantes do momento estão relacionadas com quão rápido será esse processo, como uma ordem mundial alternativa deveria ser, e se essa nova ordem pode emergir e ser efetiva no tempo para evitar a proliferação de graves instabilidades globais.

O papel da China na reformatação da ordem mundial

Uma nova ordem internacional começou a emergir em meio a desintegração do velho sistema. A principal força geradora nessa dinâmica é a China, que já é a segunda maior economia no mundo e cuja civilização é distinta do Ocidente.

A China é um dos maiores países do mundo e sua longa história a dota de experiências relevantes em matéria de governança global. Com sua diversidade e imenso tamanho, a China contém em si uma ordem mundial e, historicamente, desempenhou um papel de liderança no estabelecimento de um sistema tianxia que se estendeu por terra e mar, da Ásia Central aos Mares do Sul. Ao lado de sua rica história, a China também se transformou em um país moderno ao longo do último século, tendo aprendido das experiências ocidentais e de sua própria tradição de modernidade. Ao compartilhar a sabedoria de sua história antiga e de seu desenvolvimento moderno, a China pode desempenhar um papel construtivo nos esforços globais para responder aos desequilíbrios na ordem mundial e construir um novo sistema a partir de três caminhos principais.

1. A restauração de um desenvolvimento global equilibrado. A ordem clássica na “ilha do mundo” (世界岛, shì jiè daǒ, que corresponde aproximadamente à Eurásia) se apoiou nas nações continentais, enquanto a ordem mundial moderna foi amplamente dominada por poderes marítimos ocidentais. Como resultado, a ilha do mundo foi fraturada, com o antigo centro de civilização sendo tornado um lugar de caos e guerras intermináveis. A Pax Americana foi incapaz de estabelecer uma forma estável de governar a ilha do mundo, já que os Estados Unidos estavam separados dessa região pelo mar e foi incapaz de construir relações com os países não-ocidentais. Assim, os Estados Unidos só foram capazes de manter a ordem marítima, em vez de uma ordem mundial. Essa ordem se apoiou em intervenções militares brutais no centro da ilha do mundo, se retirando às pressas depois de provocar danos e deixar a região em um estado de ruptura permanente.

Ao contrário, a abordagem da China para a construção de uma nova ordem internacional é a de “escutar os dois lados e escolher o caminho do meio” (执两用中, zhí liǎng yòng zhōng). Historicamente, a China foi bem sucedida em equilibrar terra e mar. Durante as dinastias Han e Tang, por exemplo, a China acumulou experiência na interação com civilizações baseadas na terra, enquanto, desde as dinastias Song e Ming, o país se envolveu profundamente no sistema de comércio marítimo. Foi com base nessa experiência histórica que a China propôs a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), cujo mais importante aspecto é a incorporação da ilha do mundo e dos oceanos, acomodando ambas as ordens antiga e moderna. A ICR oferece uma proposta de desenvolver um sistema mundial integrado e equilibrado, com o “Cinturão” buscando recuperar a ordem na ilha do mundo, enquanto “Rota” está orientada para a ordem nos mares. Junto com essa iniciativa, a China construiu instituições correspondentes, como a Organização de Cooperação de Xangai (OCX).

2. Superar o capitalismo e promover o desenvolvimento centrado no povo. O poder e a prosperidade ocidentais foram construídos no sistema capitalista, ancorado nos legados europeus de dualidade comerciante-saqueador e na colonização, impulsionada pela busca de lucros monetários, gerenciando o capital com um sistema financeiro monstruosamente desenvolvido, e dependente do comércio. No capitalismo, os países do Sul Global são vistos pelas potências ocidentais como “outros”, sendo tratados como territórios de caça por recursos baratos ou mercados. Ainda que as potências ocidentais tenham sido capazes de ocupar e espalhar o capitalismo para a maior parte do mundo, não conseguiram cultivar amplamente a prosperidade, com frequência tendendo ao oportunismo malicioso: para os países que não lucraram com o colonialismo, mas sofreram com sua opressão brutal, o sistema é inviolável. Como resultado, desde que as potências ocidentais tomaram conta do mundo no século XIX, a ampla maioria dos países não-ocidentais não conseguiu atingir o desenvolvimento industrial ou moderno, um registro que prova a falácia da suposta universalidade do capitalismo.

Os antigos sábios chineses propunham um modelo socioeconômico que o Dr. Sun Yat-sen, liderança da revolução de 1911 que derrotou a dinastia Qing e foi o primeiro presidente da República da China, chamou de “Princípios das Condições de Vida do Povo” (民生主义, mínshēng zhǔyì) que pode ser parafraseado como “a filosofia de beneficiar o povo” (厚生主义, hòushēng zhǔyì). Essa filosofia, que valoriza a produção, utilização e distribuição material para permitir ao povo viver melhor e de modo sustentável, data de mais de 2 mil anos, aparecendo tão cedo como no Livro de Documentos Históricos (尚书, shàngshū), um antigo texto confuciano. Orientada por essa filosofia, uma política de “promover o fundamental e suprimir o supérfluo” (崇本抑末, chóngběn yìmò) foi adotada na China antiga para orientar atividades comerciais e financeiras para a produção e as condições de vida da população. Hoje, a China rejuvenesceu esse modelo e começou a compartilhá-lo com outros países por meio da ICR, que incorporou a abordagem de “ensinar a pescar” enfatizando a melhoria de infraestrutura e o avanço da industrialização.

A China, que hoje é a fábrica do mundo e continua a aprimorar suas indústrias, também está impulsionando uma reconfiguração na divisão internacional do trabalho: no topo da cadeia de produção, aceita componentes produzidos pela indústria de ponta dos países ocidentais; na base, transfere capacidade produtiva e manufatureira para países menos subdesenvolvidos, particularmente na África. Como maior mercado consumidor do mundo, a China poderia acessar energia de diferentes partes do globo de forma justa e equivalente, e promover políticas globais que enfatizem a produção (“o fundamental”) e minimizem a especulação financeira (“o secundário”).

3. Em direção a um mundo de unidade e diversidade. Quando os poderes europeus estabeleceram a atual ordem mundial, em geral buscavam a “homogeneização”, inclinando-se ao uso da violência para impor seu sistema a outros países e, inevitavelmente, criando inimigos. Os Estados Unidos, influenciados pelo Puritanismo Cristão, tendem a acreditar na uniformidade de valores, impondo ao mundo seus supostos “valores universais”, e denunciando toda nação que diverge de suas concepções como inimigo e “mal”. Durante o período do “fim da história”, essa tendência foi exemplificada pela chamada Guerra ao Terror, que invadiu e lançou mísseis pelo Oriente Médio. Apesar dessa preocupação com a homogeneização, a ordem liderada pelos EUA tem sido perturbada pela crescente polarização e por divisões políticas e culturais que se intensificam.

A China, por outro lado, conta uma história diferente. Durante milênios, tendo como base o princípio de “múltiplos deuses unidos em um céu” ou “uma cultura e múltiplos deísmos”, diversos grupos étnicos e religiosos foram integrados na China através da cultura ou do culto ao céu, desenvolvendo, assim, a nação e o sistema tianxia de unidade e diversidade. Harmonia, ou uma ordem universal, não podem ser alcançadas por meio de uma conquista violenta, tampouco por pregação e imposição de valores para transformar o “outro” em um “reflexo de si”, ao invés de reconhecer a autonomia do “outro”. Conforme exposto nos Analetos de Confúcio (论语·季氏, lúnyǔ jìshì), “…todas as influências da cultura civil e da virtude devem ser cultivadas para atraí-los para que sejam assim, e quando tiverem tão atraídos, devem se tornar contentes e tranquilos” (修文德以来之,既来之,则安之, xiūwén dé yǐlái zhī, jì lái zhī, zé ānzhī). De modo geral, é ao longo desse caminho de harmonia e diversidade que a China conduz, hoje, as relações internacionais.

A China deveria compreender a construção de uma nova ordem internacional pelas lentes da revitalização da ordem tianxia, e sua abordagem deveria ser guiada pela forma sábia de “harmonizar todas as nações” (协和万邦, xiéhé wànbāng) para pacificar a tianxia. O processo de construção de uma nova ordem internacional, ou uma ordem tianxia revitalizada, deveria aderir às seguintes considerações:

1. A ordem tianxia não será construída de uma vez, mas sim progressivamente. O idioma chinês pode ser usado para descrever o processo liderado pela China de construir um novo sistema global: “Apesar de Zhou ser um país antigo, o encontro (favorável) o iluminou recentemente” (周虽旧邦,其命维新, zhōu suī jiù bāng, qí mìng wéixīn). Zhou era um antigo reino governado pela edificação moral. Sua influência se expandiu gradualmente, primeiro para os estados vizinhos e depois, foi além, até que dois terços da tianxia prestassem lealdade ao reino, e a então dinastia Yin (1600-1045 AEC) foi substituída pela dinastia Zhou (1045-256 EC). Ao abordar a construção da nova ordem internacional e revitalizar o conceito de tianxia, a China deve seguir esse enfoque progressivo para evitar uma colisão com o atual sistema hegemônico. O conceito de tianxia se refere a um processo histórico que não termina.

2. Virtude e propriedade são as primeiras prioridades na manutenção do sistema emergente tianxia. Um sistema tianxia tem como objetivo “harmonizar todas as nações”, e não estabelecer alianças fechadas ou demandar homogeneidade. A China deveria promover a moralidade, decência e prosperidade econômica compartilhada nas relações entre as nações e o direito internacional. O que distingue essa abordagem do atual sistema jurídico internacional é que, além de estabelecer os direitos e deveres de cada parte, também enfatiza a construção de afeição mútua nas relações entre as nações.

3. Uma ordem tianxia não buscará monopolizar o mundo inteiro. O mundo é grande demais para ser governado efetivamente por somente um país, qualquer que seja ele. Os sábios compreenderam isso e, assim, sua ordem tianxia nunca tentou se expandir por todo o mundo naquele tempo, nem nas gerações posteriores. Zheng He, por exemplo, passou por muitas nações durante suas viagens para os Mares Ocidentais, mas a dinastia Ming não as colonizou nem as conquistou, assim como não incluiu tais nações em seu sistema tributário. Ao invés disso, permitiu que fizessem suas próprias escolhas. Hoje, a China não busca impor nenhum sistema a outros países, e, com essa moderação, a luta por hegemonia pode ser evitada.

4. Uma nova ordem internacional irá consistir em diversos sistemas regionais. Ao invés de um sistema mundial governado por um país dominante ou por um pequeno grupo de potências, uma nova ordem global será composta por diversos sistemas regionais. Por todo o mundo, os países com geografias, culturas, sistemas de crenças e interesses comuns já começaram a formar suas próprias organizações regionais, como na África, Ásia, América Latina, Oriente Médio e os Estados atlânticos. A China deve focar no Pacífico Ocidental e na Eurásia.

O conceito de sistemas regionais compartilha algumas semelhanças com a divisão de civilizações de Samuel Huntington. No entanto, o mais importante é que requer nenhum conflito entre eles. Como um grande país e uma potência de terra e mar, a China provavelmente irá se justapor a múltiplos sistemas regionais, incluindo tanto sistemas marítimos como continentais. A China, que significa literalmente “o país do meio” (中国, Zhōngguó), deveria servir como um harmonizador entre os diferentes sistemas regionais e atuar para mitigar conflitos e confrontações. Dessa forma, uma nova ordem internacional de unidade e diversidade poderá emergir.

Uma nova arquitetura de governança global deverá ser construída gradualmente, com camadas aninhadas uma sobre a outra, de dentro para fora. Com essa finalidade, os esforços da China deveriam começar na camada mais interna a qual pertence, o Leste Asiático. Tradicionalmente, a China, a península Coreana, Vietnã, Japão e outros países nessa região formaram uma esfera cultural confucionista. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, apesar de que tais nações tenham se modernizado exitosamente, as relações entre elas se deterioraram devido a pressões de potências estrangeiras, como Estados Unidos e União Soviética. Aqui devem começar os esforços da China para reorganizar a ordem mundial, revitalizando esse legado compartilhado e demonstrando padrões aperfeiçoados de prosperidade e civilidade para o mundo. Na medida em que os resultados e a força desses esforços regionais cresçam, o poder dos Estados Unidos e sua ordem internacional irão desaparecer, e o processo de transformação global será rapidamente acelerado.

Depois da camada interna do Leste Asiático, a próxima camada mais familiar ─ ou camada média ─, na qual a China deveria focar, está no coração da ilha do mundo, a Eurasia. A OCX é central para esse esforço, e já têm como Estados membros a China, Rússia, Índia e Paquistão, como Estados observadores Irã e Afeganistão, e Turquia e Alemanha podem ser convidadas. Devido a seu declínio econômico e enfraquecimento de sua influência global, a Rússia provavelmente irá aumentar seu foco em suas regiões vizinhas, notadamente a Ásia Central, e participar mais ativamente da OCX, incluindo o auxílio nos esforços para promover relações harmoniosas e o desenvolvimento na região, minimizando conflitos. A estabilidade da Eurásia é chave, não apenas para a segurança e prosperidade da China, particularmente em suas regiões ocidentais, mas para a paz global de forma geral.

Finalmente, a camada mais externa para a China é a ICR institucionalizada, que conecta nações e regiões ao longo do mundo. Proposta pelo presidente Xi Jinping em 2013, até o momento a China assinou mais de 200 acordos de cooperação da ICR com 149 países e 32 organizações internacionais.

Considerações finais

A evolução e a direção futuras da ordem mundial não podem ser entendidas sem a análise das mudanças nas relações entre a China e o Ocidente nos últimos cinco séculos. No início da era moderna, os poderes Ocidentais se inspiraram na China em sua busca por modernização. No século passado, a China aprendeu com o Ocidente. A reemergência da China abalou as fundações da velha ordem mundial, dominada pelo Ocidente, e é uma força impulsionadora na formação de um novo sistema internacional. Em meio a mudanças importantes no cenário global, é preciso reconhecer as forças e limites da modernidade ocidental, suas ideologias e instituições, enquanto também se considera a tradição chinesa de modernidade e seus desenvolvimentos na era atual. Para a China, isso requer uma reestruturação de seu sistema de conhecimentos, orientada por uma nova visão inspirada pela sabedoria clássica chinesa: “Aprendizado chinês como substância, aprendizado ocidental para aplicação” (中学为体,西学为用, Zhōngxué wèi tǐ, xīxué wèi yòng).

Referências bibliográficas

Hamilton, Alexander, John Jay, e James Madison. Os Artigos Federalistas, 1787-1788. Nova Fronteira, 1993.

Yao, Zhongqiu. O caminho de Yao e Shun: o nascimento da civilização chinesa [尧舜之道:中国文明的诞生]. Editora de Hainan, 2016.

Zhu, Qianzhi. A influência da filosofia chinesa na Europa [中国哲学对欧洲的影响]. Editora popular de Hebei, 1999.

Notas do autor

1. No início do século quinze, a dinastia Ming (1388-1644) patrocinou uma série de Sete Viagens Oceânicas conduzidas pelo diplomata e almirante Zheng He (1371-1433). Em um período de trinta anos, essas expedições marítimas viajaram da China para o Sudeste Asiático, Índia, Chifre da África e Oriente Médio.

2. Tianxia é uma visão de mundo tradicional Chinesa que data de mais de quatro mil anos e tem como tradução aproximada “tudo sob o céu”, ou a Terra e os seres vivos sob o céu. Ao incorporar elementos morais, culturais, políticos e geográficos, tianxia tem sido um conceito central na filosofia, civilização e governança chinesa. De acordo com esse sistema de pensamento, o objetivo ideal é alcançar harmonia e paz universal para tianxia, onde todos os povos e Estados compartilham a terra em comum (天下为公 tiānxià wèi gōng).

3. Ver Yao Zhongqiu, O caminho de Yao e Shun: o nascimento da civilização chinesa [尧舜之道:中国文明的诞生] p. 64-74, Editora de Hainan, 2016.

4. Servidores públicos-acadêmicos eram intelectuais indicados pelo imperador da China a postos políticos e de governo. Esse grupo altamente escolarizado formou uma classe social distinta que dominou a administração governamental na China imperial.

5. Para mais leituras sobre esse tema, ver Zhu Qianzhi, A influência da filosofia chinesa na Europa [中国哲学对欧洲的影响], Editora popular de Hebei, 1999.

6. Alexander Hamilton, John Jay, e James Madison, Os artigos federalistas [联邦党人文集], traduzido do original em inglês para o chinês por Cheng Fengru, Han Zai e Xun Shu e publicado na China em 1995.

A crise na Ucrânia e a construção de um novo sistema internacional | 28.03.2023

Destruição de um edifício residencial em Kyiv de Ales Ustinov / Pexels.


A crise na Ucrânia e a construção de um novo sistema internacional

Yang Ping

Yang Ping é um destacado intelectual e editor da comunidade ideológica e cultural da China contemporânea. Em 1993, fundou Estratégia e Gestão (战略与管理), uma importante revista que se contrapôs à influência do liberalismo na cultura e ideologia chinesa. Em 2008, fundou a Wenhua Zongheng (文化纵横 ), revista que foca na construção do sistema de valores fundamentais da sociedade chinesa, levantando sistematicamente a bandeira do socialismo. Nos últimos quinze anos, a revista tornou-se uma das plataformas de pensamento mais importantes da China.

“A Crise na Ucrânia e a construção de um Novo Sistema Internacional foi originalmente publicado como artigo principal da edição de Junho de 2022 da Wenhua Zongheng (文化纵横). Diante da eclosão do conflito Rússia-Ucrânia, o artigo propõe que a China considere os perigos do atual sistema internacional ao qual se esforça para integrar e as possibilidades de construção de um novo sistema internacional.

A eclosão da crise na Ucrânia não apenas alterou o cenário geopolítico, mas afetou drasticamente a atual ordem internacional. Particularmente, a imposição de extensas sanções dos Estados Unidos e outros países ocidentais à Rússia comprometeu as regras do sistema internacional vigente, revelando sua verdadeira natureza coercitiva. Essa crise deve servir como um forte alerta para a necessidade de que a China aprofunde sua “análise de pior cenário possível” (底线思维, dǐxiàn sīwéi) e considere seriamente a construção de um novo sistema internacional, paralelo a atual ordem dominada pelo Ocidente, como um objetivo primordial.

Preparação para crises iminentes

O atual sistema internacional é dominado pelos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, e é capitalista liberal por natureza. Nos períodos em que o capitalismo liberal funciona sem problemas aparentes, esse sistema se expande globalmente e parece ser justo e baseado em regras, sendo capaz de incluir a maior parte dos países e regiões do mundo. No entanto, em períodos de crise, o capitalismo liberal se deforma, abandona as regras internacionais estabelecidas ou procura criar novas, o que pode ser exemplificado pela crescente desglobalização, quando a nação hegemônica renuncia a seus supostos deveres de liderança e retorna a política do poder.

Em meio a crise na Ucrânia, os Estados Unidos e os países ocidentais desrespeitaram as normas internacionais, ao expulsar a Rússia da arquitetura financeira internacional, a saber, do sistema SWIFT (abreviação, em inglês, de Sociedade para Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais), confiscar ativos russos – pessoais e do Estado – e congelar as reservas cambiais do país. Tais medidas extrapolam os meios não violentos de confrontação tipicamente empregados pelos Estados-nação, como guerras comerciais, bloqueios tecnológicos, embargos ao petróleo, e contradizem abertamente os princípios liberais atemporais segundo os quais “as dívidas devem ser pagas”, “a propriedade privada é sagrada”, entre outros. Essas violações flagrantes da chamada “ordem baseada em regras” revelaram o caráter arbitrário, ilegítimo e parcial do sistema internacional, bem como o modo pelo qual o mesmo é manipulado pelos Estados Unidos e seus aliados para disciplinar violentamente outros países.

De uma perspectiva chinesa, a crise na Ucrânia é um alerta de que a China deve se preparar para cenários no qual será alvo de medidas hostis como as mencionadas anteriormente. É preciso reexaminar a atual ordem internacional para obter uma compreensão precisa tanto sobre seus benefícios como sobre suas desvantagens, abandonando quaisquer ilusões sobre sua justiça e viabilidade de longo prazo. E, ao passo que a China participa e maximiza a utilidade do sistema atual, é necessário simultaneamente preparar-se para a construção de uma nova ordem internacional.

Considerando o tamanho da China, a tarefa de rejuvenescimento da nação chinesa requer muito mais do que uma estratégia de “circulação doméstica” (内循环, nèi xúnhuán). Para alcançar industrialização e modernização, a China deve se engajar com o mundo e desenvolver uma “circulação internacional” (外循环, wài xúnhuán) mais abrangente, por meio do acesso a recursos, tecnologias e mercados externos. A tarefa central da política de reforma e abertura[1] nas últimas quatro décadas tem sido abrir o país para o exterior e participar no sistema global para promover um ambiente internacional mais favorável à busca pela modernização. Ao mesmo tempo, a China teve que tomar medidas necessárias quando aspectos hostis do atual sistema ameaçavam os interesses fundamentais do país. Na situação atual, é preciso, por um lado, que a China enfrente com firmeza a manipulação do atual sistema pelos Estados Unidos e os países ocidentais, e, por outro, que comece a construir um novo sistema internacional, mais justo e democrático, em parceria com os países em desenvolvimento.

O destino histórico da China é estar com o Terceiro Mundo

A ordem mundial vigente não foi formatada apenas pela China, Rússia, Estados Unidos e Europa. Países e regiões da Ásia, África e América Latina também criaram uma diversidade de redes regionais em meio ao declínio do poder dos Estados Unidos. Trabalhar junto a outros países em desenvolvimento é necessário para que a China fortaleça os esforços para construir um novo sistema internacional. Desde que foi proposta pelo presidente Xi Jinping, em 2013, a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR)[2] tem criado, de fato, as bases para tal cooperação e para a concretização de um novo sistema.

Desde que a República Popular da China foi fundada em 1949, o Terceiro Mundo consistentemente proporcionou novos espaços para a China sobreviver e crescer, assim como novas fontes de fortalecimento, sempre que o país enfrentou pressões de grandes potências. Nisso estão incluídos os movimentos de libertação nacional da Ásia, África e América Latina nas décadas de 1950 e 1960, a Conferência de Bandung de 1955 e o Movimento dos Não-Alinhados (MNA), a teoria dos Três Mundos de Mao Tse-Tung, desenvolvida nos anos 1970, a ênfase na cooperação Sul-Sul durante as primeiras fases da reforma e abertura nos anos 1980, a criação do mecanismo dos BRICS no início do século XXI e, mais recentemente, o desenvolvimento da ICR na última década. Ao longo dos últimos 70 anos, a China adotou uma ampla gama de política externa, desde a política de “pender para um lado”[3] (一边倒, yībiāndǎo) com a União Soviética nos anos 1950, à política de “integração com o mundo”[4] (与国际接轨, yǔ guójì jiēguǐ) (ou com os Estados Unidos, para ser exato) na virada do século. No entanto, consciente ou inconscientemente, a China recorreu sistematicamente ao Terceiro Mundo sempre que percebeu sua independência e soberania ameaçadas.

Essa relação com o Terceiro Mundo é o destino histórico da China. Na medida em que se torna um importante polo mundial e enfrenta a estratégia hostil de contenção do poder hegemônico dos Estados Unidos, hoje a China não pode seguir a política de alianças estabelecida pelos Estados Unidos e a União Soviética durante a Guerra Fria. A divisão do mundo em blocos antagônicos conduziria a humanidade à beira da guerra e a uma catástrofe global. Em vez disso, a China deveria perseguir uma política externa independente e não alinhada, focada em reunir os diversos países do Terceiro Mundo – que constituem a maioria global – para forjar novas formas de parceria, estabelecer novas redes multilaterais e criar um novo sistema internacional.

Refletindo sobre as práticas e experiências da ICR até agora, e considerando os desafios colocados pela crise na Ucrânia, a abordagem da China em direção a construção de um novo sistema internacional deveria ser guiada pelas seguintes considerações:

Em primeiro lugar, a orientação da China deve se basear em interesses estratégicos, mais do que comerciais. A China não pode se preocupar apenas com a exportação de sua capacidade produtiva e capital, ou com assegurar o acesso das empresas chinesas a recursos e mercados externos. Em vez disso, deve priorizar o que é necessário para garantir sobrevivência estratégica e desenvolvimento nacional. Ao adotar essa perspectiva estratégica, fica evidente que a abordagem de muitas empresas chinesas e governos locais em direção a outras nações e regiões[5], como parte da Iniciativa Cinturão e Rota, não é sustentável, porque priorizam interesses comerciais e tendem a ignorar objetivos políticos e estratégicos.

Em segundo lugar, a criação de um novo sistema internacional requer o desenvolvimento de uma nova visão, filosofia e ideologia que guiem e inspirem os esforços para tal construção. Nesse sentido, são insuficientes os princípios da ICR de “consulta extensa, contribuição conjunta e benefícios compartilhados” (共商共建共享, gòngshāng gòngjiàn gòngxiǎng). Enquanto os Estados Unidos mobilizam o campo ocidental com a bandeira de “democracia versus autoritarismo”, a China deve levantar com firmeza a bandeira da paz e do desenvolvimento, unindo e liderando o vasto mundo em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, deve apelar e persuadir os estados europeus a se somarem a esta causa. O chamado global de Xi Jinping para construir uma “comunidade de futuro compartilhado para a humanidade”, (人类命运共同体, rénlèi mìngyùn gòngtóngtǐ) deve ser adaptado à nova situação internacional. O conceito chinês de “prosperidade comum e desenvolvimento comum” deveria ser compartilhado com o mundo e promovido como valor fundamental na construção de um novo sistema internacional.

Em terceiro lugar uma “Internacional do Desenvolvimento” (发展国际, fāzhǎn guójì) deve ser institucionalmente estabelecida para criar um novo sistema global. Diferente dos mecanismos ocidentais de aliança, como o Grupo dos Sete (G7) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que são dominados por uma minoria de países ricos, um novo sistema global deve responder a questão fundamental enfrentada pela grande maioria do mundo: como os países em desenvolvimento podem se organizar mais efetivamente sob o princípio do não alinhamento. Iniciativas pouco organizadas e não vinculantes, como conferências e declarações, são totalmente inadequadas para essa tarefa. Um mecanismo institucional, como uma “Internacional do Desenvolvimento”, deveria ser promovido e construído para impulsionar ações organizacionais mais poderosas e desenvolver redes de conhecimento e cultura, de comunicação e mídia, de cooperação econômica, entre outros projetos. Em síntese, formas de ações organizadas sob o mandato da paz e do desenvolvimento, devem ser estabelecidas e experimentadas.

A relação entre os dois sistemas

A construção de um novo sistema não significa o abandono do atual.

Nos quarenta anos de reforma e abertura, a direção e objetivo da China foi a integração à ordem internacional existente. Tendo desenvolvido tardiamente sua industrialização e modernização, a China não teve escolha senão aprender com os países ocidentais e absorver suas experiências e conhecimentos avançados. Romper com esse sistema inevitavelmente conduziria a China de volta ao velho caminho da política de “portas fechadas”[6] (闭关锁国, bìguānsuǒguó) dos anos 1960 e 1970, isolando o país das economias avançadas do mundo contemporâneo.

Ultimamente, a China percorreu um longo caminho no sentido da globalização e se beneficiou disso. A reforma e a abertura se uniram aos interesses básicos do povo chinês. Por isso, não é viável e nem desejável abrir mão dos benefícios proporcionados pela participação no sistema vigente.

Mas isso não significa, absolutamente, negar a necessidade urgente de preparação para a ameaça de sabotagem ao sistema global vigente pela aliança ocidental liderada pelos Estados Unidos. O desenvolvimento de um novo sistema internacional e a participação ativa no atual sistema são dois processos que podem ser implementados simultaneamente, e sem conflitos. Ambos os sistemas irão se sobrepor e interpenetrar um ao outro. Quando as mudanças quantitativas acumuladas pelo novo sistema se transformarem em mudanças qualitativas, uma nova ordem surgirá naturalmente.

Notas do autor

1. “Reforma e abertura” se refere a era de reforma econômica da China iniciada em 1978 sob a liderança de Deng Xiaoping.

2. A Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) é um projeto de desenvolvimento de infraestrutura global proposto pelo presidente da China, Xi Jinping, em 2013. Até o final de julho de 2022, a China assinou mais de 200 acordos de cooperação da ICR com 149 países e 32 organizações internacionais.

3. Nos anos seguintes à sua fundação, a República Popular da China adotou a política externa de “pender para um lado”, declarando que se aliaria com outros países socialistas contra as forças do imperialismo.

4. Durante os anos 1990 e 2000, a China seguiu a política de “integração com o mundo”, aumentando seu envolvimento político e econômico em âmbito global. Particularmente, China e Estados Unidos aprofundaram sua interdependência econômica; em 2000, os Estados Unidos normalizaram as relações comerciais com a China, concedendo ao país o status de parceiro comercial permanente e, no ano seguinte, a China se tornou membro da Organização Mundial do Comércio.

5. Ao lado do governo central e das empresas, os governos locais da China também são atores importantes da ICR.

6. O termo “portas fechadas” se refere à política da Dinastia Ming (1368-1644) e do início da Dinastia Qing (1644-1911) de limitar as interações econômicas, científicas e culturais da China com o mundo, o que contribuiu para que o país ficasse para trás das nações ocidentais industrializadas.